“La experiencia de la pobreza, el día a día de no saber cómo vas a pagar el alquiler, no saber qué vas a hacer con tus hijos, no saber cómo vas a poder alargar el dinero para una compra que te llegue hasta el viernes, es algo increíblemente duro. Es angustioso para los adultos que viven en este mundo, y es aún peor para los hijos que crecen en una familia así, con padres que viven abrumados por este miedo constante… Ser pobre es una mierda”. R. Senserrich
O mais cínico dos personagens do Retrato de Dorian Gray, Lord Henry, asseverou que «Definir é limitar»[1]. Pôr significado implica cerrar portas. Intentar fixar algo com claridade, exatidão e precisão, que é como amiúde entendemos o termo «definir», não deixa de parecer um projeto demasiado ambicioso, para não dizer descabelado: «¡Oh, cuán insuficiente es la palabra y cómo es débil para expresar mi concepto!», se lamentava Dante. Não há que enfrascar-se em devaneios filosóficos para questionar que se possa descrever com claridade, exatidão e precisão a alegria, a angustia, o mar, o medo, a vida, o amor, a felicidade, o tempo, a desigualdade...
Por certo que nas vicissitudes do mundo a distância mais curta entre dois pontos quase nunca é uma linha reta, mas, no que à desigualdade se refere, já faz algum tempo que compartimos uma definição bastante limitada e ingênua do que significa, quer dizer, que nos limitamos a utilizar o termo «desigualdade» (com seus distintos significados e matizes, e sempre rodeado de polêmica e ambiguidade) como mera premissa para professar elegantes teorias e sofisticadas opiniões sobre como edificar uma sociedade mais próspera e livre e ao mesmo tempo mais solidária e igualitária.
Não resta a menor dúvida de que uma das vantagens das humanidades consiste em que, como não afetam muito a ninguém, é possível ganhar a vida com elas ainda que não se cumpra os requisitos mínimos: alguém com “síndrome de baixo rendimento crônico” (estupidez) ou afetado pelo patológico desejo narcisista de crer que é especial pode se fazer passar por intelectual. E não são poucos os iluminados que veem o céu aberto para explicar como pode haver tanta desigualdade em meio de tanta abundância.
O único inconveniente é que por esta via não se outorga a devida importância à evidência de que a contundência incômoda e vertiginosa da «desigualdade» está levando ao fracasso da convivência e à paulatina supressão do «direito de ser»[2]. Na verdade, a forma como habitualmente tratamos a desigualdade leva-nos a olvidar de acentuar a tragédia de seu acelerado crescimento, de expor suas causas reais, de ponderar suas consequências, de repudiar o inaceitável, de estar atento ao cuidado que devemos aos demais e, mais ainda, de refutar categoricamente as falsas e falaciosas justificações ideológicas oferecidas pelos habituais peritos em legitimação.
Como uma espécie de seres guiados pela mão invisível de Lúcifer, concomitantemente nos esforçamos por ignorar e/ou dissimular deliberadamente o fato de que já faz algum tempo que em questão de desigualdade se rebaixou o nível do social, do ético e do esteticamente tolerável: nunca na história da humanidade houve tão poucos ricos e nem tantos pobres tão pobres; nunca na história da humanidade denegrimos tanto o cuidado humano ao converter o «outro» em pura abstração, um ente etéreo, amputado, alienado e desvinculado de sua concreta e distinta existência pessoal, corporal e social.
Dá a impressão de que a ética (a moralidade, a empatia, o altruísmo, a cooperação, a solidariedade...) de que tanto nos orgulhamos como espécie não passa um triste relato de ideais maravilhosos que ninguém cumpre, porque as deslumbrantes teorias e os discursos afetados por um tipo de «platonismo incurável» («moral universal», «dignidade humana», «ética do cuidado», «igualdade plena», «justiça global» e um longo etcétera) que tomamos à tort et à travers como referência estão assentados sobre circunstâncias completamente fora da humanidade, sem qualquer relação direta com o que em nosso dia a dia experimentamos. Parece que nos custa demasiado assimilar que as teorias e os discursos são nada mais que isso, «teorias» e «discursos», hipóteses e palavras em sua grande maioria elaboradas por alguém opinando sobre algo e/ou intentando “hacer historia desde el sofa”, como disse Camus de Sartre.
Notas e Referências:
[1] Este texto, dividido em quatro partes, corresponde a um fragmento, ligeiramente modificado, do artigo elaborado pelos autores (Cuidado e «direito de ser»: O que fazer com a desigualdade?) para o livro "CUIDADO E O DIREITO DE SER: RESPEITO E COMPROMISSO” - Projeto Brasil/Portugal 2017-2018; Coordenação: Tânia da Silva Pereira (UERJ), Guilherme de Oliveira (Univ. Coimbra/Portugal) e Antônio Carlos Mathias Coltro (TJSP), Editora GZ, 2017.
[2] Nota bene: Para a finalidade deste artigo consideramos o «direito de ser» como um conceito disposicional: exerço ou pratico o «direito de ser» quando sou livre, e sou livre quando disponho de condições materiais de existência para exercitar a capacidade (real) de resistir à interferência arbitrária de outros (não somente do próprio Estado, senão também de todos os demais agentes sociais) e, em igual medida, para resistir (como o homem enkratico de Aristóteles) a interferência arbitrária do “inimigo” que todos nós levamos dentro. Dito de outro modo, usufruo do «direito de ser» quando não estou baixo a mão ou potestade de ninguém, quando ninguém poderá – faça de fato ou não – imiscuir-se caprichosamente em meus planos de vida. Não é livre neste sentido ou está minguado em seu «direito de ser» quem, podendo ser interferido por outros, não se vê interferido de fato, por exemplo, por pura casualidade, debilidade ou artimanha: desfruto dessa «não interferência» só pela muito contingente razão de que, estando rodeado de agentes que me dominam (agentes com poder de interferência arbitrária), sou demasiado cauteloso, renuncio impotentemente a satisfação de alguns de meus desejos e necessidades ou sou muito “astuto” e cuido de manter-me afastado ante a ameaça de problemas. Por outro lado, sem a garantia do direito aos meios materiais de existência (do direito mais essencial de existência material) não pode existir «direito de ser» e a liberdade se converte em mera palavra para descrever um fenômeno sem qualquer conteúdo ou significado absoluto. Desse modo, se tenho que pedir permissão a X para poder viver cotidianamente, minha existência material depende de X; se dependo de outra pessoa para poder sobreviver, não sou plenamente livre. Por isso não tem sentido falar de «direito de ser» e de liberdade se o indivíduo não dispõe das condições e as bases de sua existência material garantidas (sem independência material); quer dizer, se os indivíduos não podem articular seus planos de vida, se não podem levá-los à prática de uma maneira efetiva, o «direito de ser» resulta impraticável e a liberdade uma quimera. Depois de tudo, há algo que possa resultar mais desgarrador e nocivo, em termos igualitários, do que uma situação em que não está garantida a existência material de algumas pessoas e suas possibilidades de viver de acordo com seus próprios planos de vida? Há algo mais atentatório ao «direito de ser», à liberdade, à igualdade e à própria cidadania que umas circunstâncias de existência que permite a uns poucos afortunados fazer que a vida seja miserável para muitos desafortunados?. Sobre o «cuidado»: Fernandez, A. e Fernandez, M. “Dignidade: «cuidar» da natureza humana”, in Cuidado e Afetividade - Projeto Brasil/Portugal 2016-2017, Coord.: Pereira, Tânia da Silva; Oliveira, Guilherme de e Coltro, Antônio Carlos Mathias, São Paulo: Ed. Atlas, 2017.
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