Por Marco Aurélio Nunes da Silveira - 08/08/2016
Sexta-feira, quase duas horas da tarde, fórum criminal de um município da Região Metropolitana de Curitiba, ano 2008. O pedido de relaxamento de uma prisão ilegal, realizada na noite anterior, é protocolado na Vara Criminal. O estagiário encarregado da tarefa é orientado a aguardar por uma decisão imediata do juiz; este procedimento deve tramitar com urgência e, caso não seja apreciado, importará ao preso experimentar um fim de semana numa das piores delegacias de polícia da região. Para tanto, pede a atenção de um assessor do juiz e explica brevemente a situação. O servidor, sem maiores explicações, assegura que não será possível analisar o pedido no mesmo dia. Bom estagiário, combativo: insiste e demonstra que não arredará pé sem saber o motivo. Tudo em vão. Sem escolha, a advogada – que gentilmente autorizou esta narrativa – se dirige ao Fórum e pede para falar com a juíza, jovem juíza, ainda a caminho dos 30 anos. Então, a causídica é informada que a magistrada está muito ocupada e não poderá atender. Advogada combativa: invoca o Estatuto da Advocacia e ameaça tomar providências em face daquela acintosa omissão. Como resultado, inusitadamente, a juíza se apresenta no balcão do cartório, e, de forma insolente, quase aos berros, afirma que está irremediavelmente impossibilitada de apreciar o pedido, não importa o tamanho da ilegalidade do flagrante. É porque foi convidada para uma cerimônia de formatura, logo mais à noite, e tem horário marcado no salão de beleza. Não diz qualquer outra coisa e deixa o local. Resignada, ainda que sentindo um misto de perplexidade e indignação, a advogada pede o cancelamento do protocolo e se prepara para reiterar seu requerimento, depois do expediente, no plantão judiciário. Mesmo assim, seu cliente só é libertado na segunda-feira.
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O borracheiro Anderson Moura Lopes encontrou a morte no laço de uma forca, após o Natal de 2003, em Curitiba. Assim relatou o jornal Gazeta do Povo em 27.12.2003: “Dois homens e um adolescente presos por engano há nove dias. Dois homens e um adolescente estão presos há nove dias em uma cadeia de Curitiba, por engano. O borracheiro Anderson Moura Lopes, de 28 anos, o catador de papel Marcelo Godim, de 25, e um menor foram confundidos com assaltantes que mataram o comerciante Éderson Maciel no bairro Sítio Cercado, no dia 17. Na sexta-feira, a polícia conseguiu prender um homem que confessou fazer parte da quadrilha que matou o comerciante. O trio preso por engano continua na cadeia, pois ainda falta a assinatura do juiz para que eles possam ser libertados.” O desfecho da história se fez conhecido pela edição de 06.01.2004 do mesmo diário: “Mãe de borracheiro culpa polícia pela morte do filho. A mãe do borracheiro encontrado morto dentro de casa em Curitiba, Araci de Paula Moura, de 56 anos, afirmou na tarde desta terça-feira que a polícia foi a responsável pela morte de seu filho. De acordo com Araci, Anderson de Moura Lopes, de 28 anos, estava transtornado desde que voltou para casa, após ter sido preso injustamente por onze dias no 10º Distrito Policial. ‘Depois que saiu da cadeia ele nunca mais foi o mesmo’, afirma a mãe de Anderson. Araci contou que seu filho não podia ouvir uma conversa próxima dele que achava que estavam falando dele. Além disso, Anderson dizia para a mãe que iam matá-lo ou prendê-lo novamente.|| Segundo relatos da mãe do borracheiro, ele afirmou ter sido ameaçado de morte pelos presos do 10º DP e que não conseguia mais trabalhar em virtude do que havia passado nos últimos dias. A mulher de Anderson foi internada na última sexta-feira, de acordo com Araci, com depressão pela situação ocorrida com o marido. A mãe de Anderson afirmou que pretende entrar na Justiça contra o poder público.|| O borracheiro Anderson Moura Lopes foi preso por engano em 16 de dezembro, sob a acusação de matar o dono de uma padaria, durante a tentativa de assalto no bairro Sítio Cercado. Segundo Anderson, seu carro foi confundido pela polícia com o do assaltante da padaria. Com ele, também foram detidos o catador de papel Marcelo dos Santos Godim, 23, e um adolescente de 16 anos. A inocência dos três só foi comprovada no dia 26, quando a polícia prendeu dois homens que confessaram o crime. Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo um dia após ser solto, o borracheiro afirmou: ‘Foram os piores dias da minha vida.’ Ele contou também que não pretendia processar o Estado por causa dos dias em que esteve preso por engano. ‘Agora, só quero ficar sossegado com a minha família’, afirmou.|| Anderson foi encontrado morto, enforcado, às quatro horas da madrugada desta terça-feira. O motivo ainda é desconhecido pela Delegacia de Homicídios, responsável pelas investigações, mas foi comprovado suicídio. Segundo o superintendente Paulo Roberto Knupp, o laudo do Instituto Médico Legal (IML) deve ficar pronto em 30 dias. Testemunhas e familiares devem ser chamados nos próximos dias para prestar depoimento”.[2]
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Os dois fatos apresentados, que não são obra de ficção, ocorreram em circunstâncias e momentos distintos, mas representam situações corriqueiras na crônica policial e judiciária. Num esforço criativo, convidamos o leitor a fingir que se trata do mesmo caso. Deste modo, poderíamos imaginar que a omissão da juíza em conceder imediatamente a liberdade em face de uma prisão injusta, como todo cidadão merece, teria acarretado um drama de proporções tão trágicas quanto o abalo psíquico – decorrente da violência sofrida no cárcere – que determinou a morte de um inocente. Neste caso, seria difícil não imaginar que a magistrada tenha sido, de certo modo, responsável pelo suicídio.
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Esta fantasia baseada em fatos reais poderia ilustrar possíveis sintomas e consequências do que Jean-Pierre LEBRUN chamou de “uma nova economia psíquica”, estruturada pelo gozo e não pelo recalque.
Em sua obra A perversão comum: viver juntos sem outro (publicada no Brasil pela editora Companhia de Freud, em 2008), que deriva de abordagem feita em livro anterior (O mundo sem limite, Companhia de Freud, 2004), LEBRUN afirma que se vivencia uma mutação no laço social, marcada pelo perecimento da interação entre o indivíduo e a coletividade.
O autor procura demonstrar como a sociedade ocidental contemporânea sofre uma severa crise de legitimidade desde quando os laços sociais deixam de ser organizados pelos mecanismos morais repressivos operados pela religião. Se, por um lado, a emancipação da razão humana promoveu evolução cultural, por outro, a modernidade, nela (razão) fundada, rompe com o modelo hierarquizado de sociedade, projetando uma horizontalidade livre de qualquer transcendência. (Des)Ordenada pela “lei do mercado”, a vida contemporânea é regida por uma pretensa regulação espontânea calcada em interesses particulares. Em suas palavras, esta mutação do laço social foi provocada “pela conjunção de três forças: o discurso da ciência, a deriva da democracia em democratismo[3], o desenvolvimento do liberalismo econômico. É sob o impulso dessas três forças convergentes que toda noção de limite tende a ser abolida. E por aí mesmo desaparece a negatividade que a esta cabia tornar perceptível”.[4]
É neste panorama que o lugar da autoridade, da transcendência, é perdido. De fato, a crise de legitimidade engendrou a deslegitimação da autoridade e, como consequência, do regime paterno, fundado nesta transcendência. LEBRUN afirma que, até recentemente, a sociedade tomava por “sua conta a transmissão do menos-de-gozar referindo-se ao patriarcado, a uma sociedade construída em torno do lugar prevalente do pai, daquele que ocupa o lugar de exceção na família. Com efeito, era através do papel e da autoridade do pai de família, sustentado pela aura que lhe atribuía o patriarcado, que se representava a necessidade de renunciar a possuir a mãe. Mas esse patriarcado, como sabemos, reinava ao preço do silêncio das mulheres e da repressão do sexual”.[5]
Este fim da primazia do lugar do pai,[6] aliado a fatores como a inversão da prevalência entre as gerações e a dissociação entre sexo e reprodução, denota que o “limite” não é mais o que amarra as relações sociais. “Assim, estaríamos de agora em diante numa economia coletiva perversa, outra maneira de dizer que a negatividade não tem mais seu lugar reconhecido como constitutivo da vida coletiva. A negatividade – ou a castração em Forget – não é mais o que funda o laço social, mas o que, ao contrário, os sujeitos renegam”. Agora, os laços sociais constituem-se no que o autor chama de entodamento, como uma “simples aderência a um todos completo”.[7] ADORNO e HORKHEIMER, de certa forma corroboram esta percepção quando, ao tratar do isolamento pelos meios de comunicação, percebem que o afastamento em relação aos demais não prejudica sua uniformização. Nas palavras daqueles autores: “A ferrovia foi substituída pelos automóveis. (...). As pessoas viajam sobre pneus de borracha, rigorosamente isoladas umas das outras. Em compensação, só se conversa num carro o que se discute em outro; a conversa da família isolada está regulada por interesses práticos. Assim como toda família com uma renda determinada gasta a mesma percentagem com alojamento, cinema, cigarros, exatamente como a estatística prescreve, assim também os temas são esquematizados segundo as classes de automóveis. Quando se encontram, aos domingos ou viajando, em hotéis onde as acomodações e os cardápios são idênticos em cada faixa de preços, os hóspedes descobrem que se tornaram, com o isolamento, cada vez mais semelhantes. A comunicação cuida da assimilação dos homens isolando-os”.[8]
Neste ambiente, a relação familiar, antes vertical, agora apresenta uma horizontalidade que não admite qualquer limite ao gozo, sem negatividade. Se, antes, os pais se ocupavam de educar seus filhos, ainda que em detrimento da afetividade, hoje, os pais (ou uma parcela deles), antes de tudo, preferem ser amados por seus filhos, a qualquer custo, de modo que cedem à maioria das exigências para não correr o risco de serem desamados. Os filhos, aqui, experimentam a grande vantagem de não serem forçados, pelo confronto com a figura do pai, a renunciar ao todo-poder infantil. Não precisam assumir o dever de crescer. LEBRUN os denomina “neossujeitos”; sujeitos “sem outrem”.
De fato, enquanto o neurótico clássico se orienta pelo recalque, o neossujeito tem seu psiquismo regido pela renegação (recusa à percepção de situações que o perturbam), e, assim, evita a subjetivização. A alteridade do outro é, deste modo, sequer conhecida.
Nesta “nova economia psíquica”, os neossujeitos têm em comum o fato de que renegam a falta, ou qualquer coisa que lhes impeça ou limite o gozo. A consequência é um “desaparecimento do outro”, razão pela qual são chamados de sujeitos “sem outrem”.
Assim, pela rejeição da transcendência, os neossujeitos estão imunes à alteridade; o lugar do outro está desligado. Esclarece LEBRUN que não se trata propriamente do mecanismo tradicional da perversão, como estrutura, eis que não há um desafio ao regime paterno, mas uma pseudoperversão, que é fruto da ausência de confronto com o regime paterno; uma espécie de neurose de aspecto perverso, que ele chama de “perversão comum”. Sentencia o autor: “A ausência de encontro com o outro, repetidas vezes evitado, só pode deixar intacto o todo-poder infantil do sujeito. E portanto deixa-lo também sem meios psíquicos de metabolizar a alteridade”.[9]
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Voltando aos fatos narrados no início deste texto, sem pretensão de fazer uma análise clínica dos casos, tarefa muito além de nossa capacidade, poder-se-ia imaginar que a magistrada simplesmente não conseguia realizar o fato de que a dignidade, a segurança, a saúde e a incolumidade de outro ser humano dependia do exercício de seu poder. O “outro” simplesmente não existe, é invisível. No âmbito da economia psíquica do recalque, decidir entre a necessidade de se preparar para uma festa e a permanência injusta de um cidadão inocente no deletério ambiente do cárcere é provavelmente uma escolha simples. A juíza, todavia, parece não perceber a necessidade de uma escolha; ela não enxerga o “cidadão” escondido debaixo daquela folha de papel, a petição. Não ousaremos afirmar que se trata de um sintoma do que LEBRUN chamou de nova economia psíquica (“perversão comum”), mas esta possibilidade, de fato, aponta perspectivas desastrosas, especialmente quando o neossujeito exerce uma dimensão do poder estatal. O trabalho de ficção que fizemos no início do texto, mesclando os dois casos reais, pretende indicar possíveis desfechos para esta evolução nas relações sociais.
Aliás, o próprio autor aponta um paradoxo: “desde a noite dos tempos nenhuma sociedade jamais deu tanta importância à singularidade do sujeito, mas nenhuma, igualmente, tão pouco preparou o sujeito para sustentar essa posição cujo advento ela no entanto torna possível. É esse paradoxo que atesta a crise atual da sociedade”.[10] Se é assim, até que o sujeito de hoje desenvolva um meio de devolver legitimidade ao lugar da exceção, da transcendência (para o que LEBRUN não apresenta um prognóstico concreto), podemos concluir que o fenômeno da vitimização do cidadão entregue à arbitrariedade estatal será brutalmente observado.
O discurso jurídico – e especialmente o discurso constitucional – é pretensamente construído de forma a preservar os laços sociais, mas o dia-a-dia do fórum (e da vida) ensina que, embora tenham um papel simbólico, a lei e a Constituição têm pouca eficácia quando o assunto é orientar as condutas das pessoas, inclusive (ou principalmente?) dos detentores do poder estatal. Apenas o próprio sujeito poderia submeter seu agir a um compromisso ético, fundado na alteridade, como, por exemplo, queria Enrique DUSSEL; quiçá o discurso da ética poderia assumir o vácuo que se apresenta. Nada obstante, o neossujeito parece ser imune a este discurso, que tende a ser aniquilado pelo mecanismo da perversão social; especialmente ante a ausência de uma instituição capaz de restaurar a legitimidade do lugar da exceção, do limite.[11]
Depois de tudo, este texto não poderia ter uma conclusão esperançosa e crente no futuro das relações entre os seres humanos. Ficará, apenas, uma pergunta: será que nos resta apenas perplexidade e resignação iguais as sentidas pela advogada quando conheceu o motivo da omissão da juíza?
Notas e Referências:
[1] Texto apresentado nas JORNADAS DE DIREITO E PSICANÁLISE, do ano 2011, do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná.
[2] Narrado em: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Manifesto contra os juizados especiais criminais: uma leitura de certa “efetivação” constitucional. Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005
[3] Segundo o autor, “é uma ilusão de ótica que deixa crer ao cidadão da modernidade democrática consumada que sua autonomia é dada de imediato. Mas a ilusão funciona e ele quer o tempo todo ser reconhecido em sua singularidade por um coletivo ao qual acha que não deve mais nada. No máximo, aceita não pisar o mesmo direito que reconhece ao vizinho. É essa leitura simplista, pelo cidadão, de sua nova condição que conduz ao democratismo, a saber, a crença nisto: a democracia se resumiria no fato de que cada um faz o que quer, contanto que não incomode o outro!”(p. 103)
[4] LEBRUN, Jean-Pierre. A perversão comum: viver juntos sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008, p. 94.
[5] Id. ibid., p. 90.
[6] Aqui, não se trata necessariamente da figura do pai biológico, antes, de qualquer pessoa que desempenhe o papel designado como a função paterna, especialmente no tocante a “tomar” do filho a mãe.
[7] LEBRUN, J-P. A perversão comum... op. cit., p. 39.
[8] ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985, pp. 206-207.
[9] LEBRUN, J-P. A perversão comum... op. cit., p. 299.
[10] Id. ibid., p. 31.
[11] A família é excessivamente permissiva, os professores não têm mais o respeito e a deferência devidos, o mercado é (não)regido pela lei do mais forte, as esferas de poder estatal estão desacreditadas, a mass media prega a total ausência de limites, como em slogans publicitários do tipo: “o mundo é seu”, “você sem fronteiras” e “seu mundo sem limites”, a internet é uma terra sem lei, e vai por aí. Pode-se dizer que o “outro”, eticamente considerado, não tem mais espaço nas instituições contemporâneas..
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