Por Marco Aurélio Nunes da Silveira - 28/08/2016
Uma fria noite de terça-feira, em uma aula de graduação, cujo tema era o procedimento ordinário, durante um breve debate promovido pelo professor em relação às vantagens e desvantagens da adoção, no processo penal brasileiro, de um modelo de audiência fundado na oralidade. Os fatos ocorrem alguns meses depois da “minirreforma de 2008”. Um aluno toma a palavra e afirma que é estagiário em uma vara criminal e pretende participar da discussão. Assim, com alguma dose de ironia, declara que “esta coisa de oralidade funciona muito bem lá na vara”, pois quase todos os casos eram resolvidos no ato, com debates orais e sentença em audiência! O professor estimulou o aluno a continuar. Explicou, então, que, após a designação da audiência de instrução e julgamento, seu trabalho de estagiário consistia em “analisar o inquérito policial” e preparar, com base nele, a sentença. Se o caso fosse muito complexo, embora normalmente fosse simples, deixava para alguém mais experiente. E, deste modo, a sessão já começava com o destino selado, réu condenado ou absolvido, tudo a despeito das provas produzidas em contraditório ou dos debates conduzidos pelas partes. Tudo segundo o juízo do jovem estudante ou de alguém mais experiente. O docente pediu ao aluno que não continuasse. Todavia, era evidente a perplexidade de todos os presentes – professor incluído –, manifestada por um breve e eloquente silêncio geral.
Uma audiência de procedimento ordinário, num canto qualquer do Brasil, acontece de maneira muito costumeira. Crime patrimonial, réu preso, defensor dativo, sem testemunhas defensivas. Aquela coisa de sempre. A novidade foi o anúncio, pelo magistrado, de que a sentença seria proferida na própria sessão. O jovem advogado foi muito preparado para os debates orais e acreditava muito na capacidade de demonstrar ao julgador que tinha boas teses absolutórias. Produzidas as provas, o juiz pede às partes que indiquem os requerimentos que pretendem fazer. A palavra é dada ao Ministério Público, que afirma num par de minutos que pedirá a condenação do réu. O novato advogado se prepara, pois, para fazer um discurso digno do próprio Cícero. Por sinal, principia com alguma figura da mitologia greco-romana. Mal começa e o juiz já lhe corta a voz, eis que “agora deve apenas dizer quais são os requerimentos, doutor”. Sem entender, mas pressionado pelas circunstâncias do momento, o causídico declina atropeladamente os seus requerimentos. O magistrado de tudo toma nota, agradece, diz que se retirará para fazer a sentença e pede que as partes, agora sim, façam os seus discursos, diante da câmera, “para que fiquem gravados os debates”. Depois de o promotor repetir as palavras ditas anteriormente, agora para a posteridade, o defensor, a esta altura já sem saber onde estava, apresentou uma fala muito sem graça, sem vontade, tendo por plateia o promotor e a câmera. Doze minutos depois, volta o juiz com a sentença condenatória.
Os fatos acima narrados são caricaturas de acontecimentos supostamente reais, chegados ao autor deste texto por fontes diferentes (por sua própria experiência ou por terceiros, nas conversas do fórum e das salas de aula). Podem ter acontecido segundo a maneira narrada ou por outra forma. De fato, isto não tem nenhuma importância, razão pela qual não há a indicação de nomes ou lugares. Aliás, poderiam ter acontecido em qualquer lugar do Brasil e certamente o leitor conhece histórias semelhantes. Quem preferir, pode considerar os fatos como fictícios.
De tais histórias – que não são novidades, mas seguem existindo – o que importa é o pretexto para discutir os rumos da reforma processual penal brasileira, além de situar certos obstáculos que se opõem ao câmbio em sentido acusatório (adversary), do qual a oralidade é característica essencial.
A “minirreforma de 2008” prometeu modificações importantes para os procedimentos processuais penais, principalmente para o rito ordinário. Da fragmentação da instrução processual (que se desdobrava em várias curtas audiências) para a instrução e o julgamento concentrados em única audiência. Do processo predominantemente escrito, marcado por atos reduzidos a termo nos autos, para o processo fundado na oralidade e na identidade física do juiz.
A oralidade é inerente à estrutura acusatória, de modo que alguém poderia acreditar que a mudança projetaria um processo penal mais próximo daquilo que quer a Constituição. Entrada em vigor, todavia, poucos meses foram necessários para se perceber que o câmbio nada mudou ou, paradoxalmente, produziu algo pior. De fato, na maioria dos casos, tudo ficou como antes, na medida em que a excepcional substituição dos debates orais pelas alegações escritas (art. 403, § 3º, do CPP) virou uma espécie de regra.
Em alguns casos, porém, como mostram as narrativas feitas acima, a oralidade serviu para arrancar o véu da face inquisitória do processo penal tupiniquim. Duas décadas de Constituição democrática não foram capazes de promover a evolução cultural necessária para que os sujeitos do direito processual penal (todos eles, juízes, membros do MP, advogados, delegados) passassem a agir de forma democrática.
Semelhantemente, no ano de 1964, ao tratar da reforma do CPP italiano e do papel probatório do juiz e das partes na vigência do Codice Rocco (1930), Franco Cordero declara: “A este respeito não há qualquer dúvida de que o nosso ordenamento contenha institutos de feição inquisitória; mas a ligação com o passado não se limita às normas e ao que prescrevem: inquisitório é o espírito em que as normas são frequentemente concebidas”[1].
Mudou a lei, mas não mudou a cabeça de quem faz o processo penal, não mudou o DNA inquisitório, que aniquila o papel das partes (da defesa, mais do que tudo) e faz com que a investigação preliminar tenha mais importância do que deveria ter.
Os dois casos acima têm – pelo menos – duas características em comum: o fato de que a sentença foi construída, com base no conteúdo do inquérito policial, antes da produção contraditória das provas e da manifestação das partes em audiência; e a consequente erradicação da pretendida (em processos penais democráticos) dimensão dialética da oralidade. É indispensável que a resolução do caso penal seja fruto exclusivo da reconstrução dialógica (centrada nas partes) dos fatos durante a própria audiência, para que a oralidade faça sentido e cumpra seu papel.
Neste sentido, usar um elemento cognitivo de fora da audiência (o inquérito policial) representa uma espécie de atalho que frustra o propósito de garantias como a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal.
Como antídoto, ao menos duas considerações (não originais, mas ainda muito relevantes) devem ser feitas quando se pensa, em tempos de reforma global do CPP, sobre o almejado (quase utopicamente) processo penal acusatório.
Em primeiro lugar, o conteúdo do inquérito policial deve permanecer longe da instrução processual e do juiz do processo. Este parece ser – e sempre foi – um dos maiores problemas de nosso modelo de persecução penal. A instrução processual está seriamente ameaçada de se tornar uma fraude quando o juiz aprende sobre o caso, não a partir do diálogo entre as partes, mas a partir da visão fisiologicamente parcial presente no inquérito policial. A rígida separação entre a investigação e o processo é uma das principais condições de possibilidade de um processo penal acusatório.[2]
Concretamente, isto só se faria possível com a distribuição de diferentes competências funcionais entre dois juízes, o juiz da investigação (chamado de juiz das garantias em alguns ordenamentos jurídicos, como o chileno e o argentino, entre outros) e o juiz do processo. Recebida a denúncia (juízo de admissibilidade da acusação), pelo juiz da investigação/de garantias (idealmente em audiência para tal fim, mediante a possibilidade de exercício de contraditório prévio), os autos do inquérito devem ser entregues às partes e lacrados, com exceção das provas irrepetíveis (que devem ser produzidas, na investigação preliminar, em procedimento cautelar antecipado de produção de prova, para garantia do contraditório). Os autos do processo são, então, remetidos ao juiz do processo, com nada mais do que a denúncia e as provas produzidas cautelarmente, de modo que se diminuam as possibilidades de construção da certeza jurisdicional sobre o caso penal antes da batalha processual performada pelas partes na audiência.
Em segundo lugar, importa que a divisão das funções de acusar (MP) e julgar (juiz) seja plena e englobe o aspecto probatório. A viabilidade da imparcialidade jurisdicional depende disso. Também depende disso, pois, o escopo da oralidade processual. Isto é, ao juiz não cabe produzir provas de ofício, não cabe presidir inquirições, não cabe protagonizar a reconstituição processual do fato pretérito supostamente criminoso. Eis a essência da estrutura acusatória (adversary), que valoriza o papel do Ministério Público, como ator principal da persecução penal, e confere ao juiz seu verdadeiro papel de julgador, potencialmente adjetivado pela imparcialidade.[3]
Além disso, e aqui se dirá o óbvio, importa que os sujeitos processuais (juiz e partes) compreendam os papéis constitucionais que lhe são reservados e os representem de maneira ética. Nada mais. Isto, porém, nenhuma modificação no texto legal é capaz de garantir. O uso inquisitório da lei acusatória é sempre viável. Alguma futura evolução neste estado de coisas, quiçá, poderia se tratar de um resultado do amadurecimento democrático das instâncias de poder no Brasil, coisa que – salvo engano – ainda não aparece no horizonte.
A inserção da oralidade, como se fez em 2008, em um processo ainda afundado na lógica inquisitória tornou possíveis situações como as apresentadas no início do texto. Situações que menos facilmente ocorreriam antes da mudança legislativa. Como, com razão, vem insistindo Jacinto Coutinho, em inúmeras palestras, conversas e aulas, reformar alguns pontos do Código, sem a ampla e necessária modificação sistemática, é obra que pode trazer surpresas indesejadas. Mas, complementamos nós, reformar qualquer coisa, sem reformar a mentalidade inquisitória vigente, é tarefa fadada ao fracasso.
Notas e Referências:
[1] O trecho transcrito foi extraído da fala de Cordero no IV Convegno di studio “Enrico de Nicola” su “Criteri direttivi per una riforma del processo penale”, organizado em Lecce, no ano de 1964. O texto completo merece leitura: CORDERO, Franco. Linee di un processo acusatorio. In: AA. VV. Convegni di Studio ‘Enrico de Nicola’: criteri direttivi per una riforma del processo penale, v. IV. Milão: Giuffrè, 1965, pp. 61-2.
[2] Como bem descreve Renzo Orlandi, este foi um dos pontos centrais na reforma do CPP italiano, que culminou com a aprovação de um novo código no final dos anos 80 do século passado. Para uma excelente reconstituição da evolução histórica do processo penal italiano após a queda do fascismo, recomenda-se o texto: “Diritti individuali e processo penale nell’Italia republicana”, cuja tradução para o português foi publicada na obra COUTINHO, Jacinto N. M.; PAULA, Leonardo C.; NUNES DA SILVEIRA, Marco Aurélio (org.). Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, pp. 15-55.
[3] Sobre o tema, recomenda-se o lapidar artigo “Mettere il pubblico ministero al suo posto – ed anche il giudice”, de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, cujo título está inspirado no artigo quase homônimo de Francesco Carnelutti e trata do balanço entre os papéis do juiz e das partes, principalmente do MP, no processo penal de natureza acusatória. O texto foi recentemente republicado na obra: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mettere il pubblico ministero al suo posto – ed anche il giudice. In: COUTINHO, Jacinto N. M.; PAULA, Leonardo C.; NUNES DA SILVEIRA, Marco Aurélio (org.). Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, pp. 9-14.
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