CRÔNICA: DONA MARIA

01/12/2019

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Dona Maria tinha olhos castanhos cor de mel. Nos dias ensolarados, chuvosos ou neblinados, sentava na sua cadeira verde, já um pouco gasta pela continuidade do uso. Punha as mãos, cheias de anéis de metal, sobre o colo e, com seus colares coloridos, o cabelo quase arrumado, a pele maltratada pelo tempo e o olhar de quem já viu demais, observava o Tiago brincando alegremente com a bicicleta velha e sem correia, a Aninha, cheia de afeto, com as bonecas muitas vezes sem braços e a Dudinha, se aventurando num patinete que andava apenas na sua imaginação, as crianças cresceram ali, no mesmo local que ela havia crescido, seus netos. Na paisagem que Dona Maria via do local que chamava de lar tinha algumas árvores, cercas de madeira e um espaço grande, alguns porcos no quintal e cachorros, amados como Pedro Bala amou Dora, e talvez carregados do mesmo fim. Já no meio da tarde, a voz da vó doce chamava a todos para desfrutar do almoço achado, hoje tem carne com macarrão, gritava ela, e, como numa convocação para o baba, corriam, sentavam na sua roda e desfrutavam da sorte que tiveram naquele dia. Sorte que podia ser rotina, presente que devia ser normal.

Muitas vezes encontravam livros já esquecidos e mergulhavam naquele desconhecido mundo de letras, algumas figuras, e páginas coloridas, muitas vezes manchadas, de café, óleo, poeira, mofo…Mas coloridas, como o mundo em que viviam, e desse jeito passavam os dias, numa aventura única, onde não é preciso, nem mesmo possível, qualquer cobertura de cetim, algodão ou lycra no corpo, mas há os melhores sorrisos servindo de adorno. Adorno de corpos suados, de um trabalho detalhado, cuidadoso, não infantil, sujo, como seus corpos, com manchas de graxa aqui e ali, uma sujeira qualquer nos cabelos e algum arranhão.

Ao anoitecer, suas camas eram as mais simples, se assim pudessem ser chamadas; chão frio, alguns lençóis sujos e qualquer travesseiro descartado por alguém que nesse exato momento está com outro ainda melhor. A casa também era a mais simples, se assim pudesse ser chamada; quatro pedaços de lona esticada, madeira nos cantos e o que o bom Deus tivesse mandado para ajudar a protegê-los da chuva, do vento e da morte. Da Terra. Do chão. Do lixão que tiravam o seu sustento. Eram sacolas incontáveis, vindas dos carros que chamavam carinhosa e alegremente de comedeira, caçamba ou mesmo caminhão, sacolas que traziam os 40 reais por semana, o brinquedo quebrado, o livro velho e a roupa usada, qualquer coisa que ninguém quis antes. Sob o sol quente e sobre as montanhas de descartados, catavam, reviravam, gritavam: Achei! ...E choravam por terem tanto. E entre os cheiros de estrume, comida estragada e vasos de perfume quebrados, respiravam, viviam. Criaram um lar sem casa, singular numa época onde existem tantas casas sem lar.

Essas crianças são os heróis mais carregadas de sonhos que se pode ver, e no meio do que outros chamam de nada, brilham, protegidas por Dona Maria, já cansada, mas que todos os dias chama para se alimentarem, nem sempre na mesma hora, quase nunca farto, não nutritivo, mas unidos, extraordinários, eles são lar, alegria da Dona, que hoje já não sonha com amores da vida ou a novela das 7, talvez ela não sonhe, mas brilha pelas crianças, gosta é de ver cada guri brincar, vai que eles estudam, tiram a sorte grande ou são vistos por Deus, ali, no sertão da Bahia, nos dias ensolarados, chuvosos neblinados onde ela pensava “um dia a vida melhora”, entre sacolas, restos, brinquedos descartados, moscas e lixo havia uma ilha das flores, onde Dona Maria tinha esperança e observava o dia e as crianças com seus olhos castanhos cor de mel.

 

Foto de Bismarck Araújo, doada para o projeto Retratos de Esperança.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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