CRÔNICA DE UMA FORÇA OCULTA

12/07/2024

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Não sei se era dia ou noite, havia uma mulher na cama, tinha ela saído de um acidente. Dizem que era por amor, viu o primo com outra e imaginou tê-lo perdido. A mulher em coma foi ao baile da morte, mas regressou na brisa do chão partido em que líquida escorria a vida.

Alguém apareceu no quarto. Há sombra de um homem sem amor a fazê-la mãe.

A mulher violada no atropelamento da vida esconde uma criança no ventre. Não se sabe o sexo dos anjos. Tenta esconder a barriga mais algo cresce e já não encolhe no cantinho da placenta. A menina precisa de espaço, mas não se pode ser mãe solteira.

No tititi das comadres a notícia se espalha feito pluma, mulher - não podes mais recolher os estilhaços do chão partido – embala-te o vento.

Começam a chegar soluções tem ali uma erva, a Catinga de Mulata pode lhe salvar da ferida e abortar-te o feto.

Calma não chores sozinha tem ali uma mãe que só tem meninos e adoraria a criança que já tem um quarto rosa para o anjo que carregas.

Pensa-lo querer tu tua cria é uma mancha, envergonhas a família, sempre a verão como puta sem nunca ter sido. Pobre sociedade medíocre!?

Acalma-te e regressa a ti a consciência do bem que gera.

Acorda, corre, vá depressa, chegou tua hora. Nasceu sozinha a menina a cuidar que não se machuque mais.

Não a entregue, a menina também se partirá.

Lutei mãe para não me dares, me dei por mim mesma sem papel passado.

Vivi muitas aventuras e peripécias só minhas, encontrei pessoas pelo caminho, me respeitei para que me respeitassem, fui e sou livre como um passarinho, ganhei o tamanho do mundo.

Sou igual a ti, temos a mesma força e dei-te liberdade por a ver sofrida e dependente dos homens de tua família.

Tenho asas e só fico onde me encanto. Nunca o medo me paralisou, sobrevivemos em qualquer lugar. Falo-te com propriedade, ando por terras outras, me imponho quando necessário.

Sou mulher e cuido bem da menina que não abortaste, confesso-te que tu vives nela.

A quem diga horrores por aí e como é complexo o tabuleiro de xadrez da vida real.

Tu foste mãe de três, hoje no ninho vazio acuada pode até te sentir frágil, com medo, sem rumo, a viver novas experiências perto de quem pra ti substitui a presença de tua mãe. Ter irmãs deve ser diferente de ter irmãos, mas tê-los é ter memórias.

Peço-te cuidado com as substituições, porque, ter uma irmã é mais divertido, podem namorar, falar das fofocas, rir no parque, ir no baile sem sair pela janela, contar histórias do tempo que criavam os filhos e não restava nenhum segundo para jogar conversa fora ou ter aquele olhar de quem sabe que o outro já viu, assistir um filme ou andarem nuas pela casa.

Agora senti a mulher maravilhosa que ainda é e vive, seja tão independente como a força que teve em ter a menina contra tudo e contra todos.

Vou contar-te um segredo, uma história de verão com ritmo vulcânico.

 

A menina quebrou

Enganava atrás de uma estrutura frágil

Pois, há força dentro dela

Parece impenetrável, ágil, assertiva

Numa imensidão de interioridade

Ela quebrou!

Os pedaços estão a cair

Já não se encaixam nela

Quebrou a menina bem ali.

Estava com o olhar brilhante

Encantada com o homem novo

Tão igual ao homem velho

Tinha ele todas as idades

Foi criança com ela, lhe deu a mão,

Aquele menino

Com tantas histórias

E peripécias só dele e da mente

Habitada por memórias

A tece-los no Douro

Arredores e jardins

Dum mar profundo e íntimo

De sê-los amigos de infância

E a menina gritou quebrando inteira.

Ela quebra é igual a mim, então, também quebro

A gente quebra,

Depois, fica quebrada?

Ela caiu

Não cabia mais naquele corpo

Ficou exposta do lado de fora da pele

E o homem das memórias,

Atravessado pelo menino quebrado,

Dentro do novo e do velho

A roubar lhe a voz

Ficaram no silêncio caindo quebrados

Mais ainda respiram sem ser inteiros a sério

São pedaços de uma sociedade

São ainda iguais a mim!

Têm liberdade.

Tens liberdade, mãe, e total capacidade de cuidar do que conquistou com o teu suor. Ter a tua terra e casa foi um mérito teu, nunca ninguém cuidou daquilo por ti sem olhar como herança, desfrute, viva. Lembre teus filhos que não existem herdeiros de pais vivos e que cuidado ou ajuda é muito diferente de mendicância. Seja você, viva por você, seja feliz por se dar o direito de ser feliz, não existem culpas (nunca as tenha deste o teu melhor e se erraste teve o direito de errar).

Com a idade precisamos de lugares que nos acolhem com carinho, já não aturamos brutalidades e enxergamos cegos a puxarem cegos. Te dei a liberdade que tens e embora a quem diga em alto e bom som que você não tem capacidade ou seja capaz de chegar aqui nunca deixe de acreditar em você e na destreza que teve em aprender a mexer nas novas tecnologias, pela saudade de ter memórias além do Atlântico. Eles não conhecem nem tua cor preferida, ou a comida predileta, ou as cicatrizes que tem, ou os desejos que te habitam. São só as sombras de um homem no vulto fosco da lente embaçada pela qual te olham.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Gonzales // Foto de: Ana Patricia Gonzalez // Sem alterações

Disponível em: Arquivo pessoal

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