Crítica social à deriva: Uma ode à civilização – Por Jorge Alberto de Macedo Acosta Junior

13/01/2017

Coordenador: Marcos Catalan

Capitaneada por Horkheimer (1885-1973), diretor da Escola de Frankfurt, a teoria crítica foi desenvolvida por Theodor Adorno (1903-1969), Herbert Marcuse (1898-1978), Walter Benjamin (1892-1940), Erich Fromm (1900-1980) e Friedrich Pollock (1894-1970), inspirada pelo marxismo, preocupou-se, inicialmente, com a análise social a partir de um método dialético que possibilitasse a exposição da realidade capitalista alemã pós-primeira guerra mundial. Dadas as perseguições aos seus intelectuais – todos judeus –, a teoria crítica se ocupou tanto da realidade social fascista como da racionalidade do capitalismo americano, após a fuga do regime nazista. Assim, principalmente nas mãos de Adorno e Horkheimer, desenvolveu-se pela observação de uma sociedade dominada pela indústria cultural, reduzida às distrações reproduzidas por uma socialização reificada. A teoria, então, ficou conhecida por destacar o individualismo e as contradições sociais numa percepção carregada de pessimismo[1].

O “olho maligno”[2] da teoria crítica parece ainda assombrar a realidade social, em especial a sociedade brasileira. Em Adorno, arte e sociedade estão intimamente imbricadas, “arte é a antítese social da sociedade”[3], ou seja, embora a indústria cultural desfaça a autonomia da arte num gênero musical ligeiro e efêmero, por vezes é possível experimentar lampejos de autonomia artística, onde a arte expressa sua realidade de não-autonomia, sendo o reflexo negativo do real, expondo as contradições da realidade que lhe refuta, que nega a própria produção da arte.

Em 2015, Derivacivilização, álbum de Ian Ramil, traz uma ode ao homem unidimensional, preso ao labirinto do consumismo, imerso nas tentações egocêntricas e completamente deslocado, perdido, à deriva no mar da indústria cultural. Nesse ritmo, Ian prepara um retrato musicado da sociedade contemporânea, bem próximo ao “estilo da negação”[4] característico da teoria crítica. O preço do progresso é o triunfo da racionalidade objetiva, a submissão total ao formalismo lógico, o homem em si é integralmente capturado pela civilização, restando como elemento da inumanidade da socialização planejada, inculcada pelos valores mercadológicos. Sobressai o medo da perda do eu[5], em coro a derivacivilização[6] canta “já vai passar”, mesmo menosprezados e alegres como um cocar – ou uma coisa qualquer –, o medo “já vai passar”, mas se “o medo é mãe da solidão/Por que fugir do que se é?”.

A hipnose da civilização toma forma na indústria cultural para Adorno, em Ian um eu-lírico é atormentado pela voz da indústria[7]:

Martelo você Pra você se perder Eu quero te ver me ouvindo sem pensar em nada Eu pelo você de um jeito que você vai se gostar Neném Quando a madruga vem É duro, é foda, eu sei A massa aperta o play E eu sempre enfio um [...]Você vem dizer Que escolhe o que ouvir Bobinho você que acha que a escolha existe (é livre) Esmago você de um jeito que você nem vai notar Neném [...]A massa engole (Indústria templo vazio Ralo pensamento donos de Deus Império de homem só Danada. Danada Teu barco ta furado tem água no convés) Martelo você martelo você Martelo você martelo você martelo você

Na base de marteladas a indústria cultural impõe a unicidade, não há escolha. O ludibrio comporta a “espontaneidade” dos níveis sociais, das escolhas mais “fashions”, dos carros altamente diferenciados, do “hatch” ao “sedan”, das novas capacidades aos “gadgets”, mais escolhas, mais possibilidades, mais concorrência e a mesma – ou cada vez maior – ilusão do “mais” ou da “diferença”. Ao mesmo tempo em que todas as categorias ilusórias e tabelas de acessórios automobilísticos ou gêneros musicais são criadas, o consumidor é alocado em categorias, tabelas de rendimento e estatística, no mais, reduzido aos mapas de pesquisa, consumido pela indústria.

O coquetel molotov[8], de Ian, explode de lucidez lúdica e queima as barreiras da indústria cultural, expondo mais a fundo a civilização:

dinheiro, corpo farto, social, sangue-frio, opaco eu compro um tênis novo e morre alguém corro, paro, olho, choro, grito, eu ando a cada dia mais vulgar e aflito o mundo é um skinhead eu sou um gay quem vem lá? quem vem lá? lilibido-eterno-cio se buceta eu sou uma vadia, se piroca, vem sentar na minha só quero preencher o meu vazio ah, ah, ah, eu vou meter até me acabar ah, ah, ah, eu vou meter até me acabar querem te botar nos eixos, querem te amarrar e te manter por perto ninguém quer liberdade pra ninguém  

Não há reconhecimento. Perdidos no mar do consumo, no prazer raso. Em Marcuse[9], a sociedade mecanizada impede que a libido transcenda as zonas erógenas, a liberdade sexual é integrada ao trabalho, onde a satisfação é controlada nas regras da troca e da produção de mercadorias. “Eu vou meter até me acabar” reflete o quadro onde a liberação da sexualidade, também é liberação da agressividade, é o que sobra de satisfação nas condições de infelicidade generalizada e mal-estar.

Para o Direito, Ian dedica a canção intitulada Artigo 5º[10], entregando a seguinte letra:

Todos são iguais perante a lei Sem distinção de qualquer natureza Garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros Residentes no país 

A inviolabilidade do direito a vida A liberdade, a igualdade, A segurança e a propriedade 

Direito a vida A liberdade, a igualdade A segurança e a propriedade 

Mas, você se quiser pode cagar neste artigo E se tiver poder pode cagar nesta Constituição, que dá nada, que dá nada Que dá nada, que dá nada...

Com a ajuda do texto constitucional fornecido pelo artigo 5º em 1988, Ian coloca em evidência o Direito da civilização à deriva, padecendo da mesma capacidade ilusória da indústria cultural, posto em prática de acordo com as conveniências do poder e em total inobservância de suas garantias. Embora, não membro da primeira geração da Escola de Frankfurt, Marcelo Neves[11], indica categoricamente o caráter simbólico da constituição que resulta numa cidadania inexiste – ilusória –, onde há subintegração das massas em relação às garantias constitucionais e a sobreintegração das elites em relação aos deveres impostos pelo sistema jurídico. Revela-se um verdadeiro cenário de patologia da normalidade, segundo Neves[12], em referência à Erich Fromm[13]. Assim, resta apenas um corpo vazio[14]:

[...] Dor descartável Calor confortável Pede por isso [...] Gesto pensado Peso calado Implora por isso 

Peito mudo Cérebro surdo E grita por isso [...] Corpo Vazio Caixa no cio Reza por isso 

É Tudo que você quer

Para continuar com Fromm, há uma descontinuidade entre pensamento e sentimento, cisão que produz uma apatia crônica, um corpo vazio, um social superficial que não luta, imóvel. O homo consumens, produto da derivacivilização, é inútil. “um dente de engrenagem da máquina de produção[15]”.

Por fim, tanto o pessimismo da teoria crítica, quanto a descrição social da arte, proposta por Ian Ramil, parecem infeliz e assustadoramente um diagnóstico contemporâneo. Embora escrita no ambiente fascista e vigorosamente capitalista de outro século, tanto a teoria quanto a obra (Derivacivilização) refletem os acontecimentos de 2016 e, muito provavelmente, o porvir.


Notas e Referências:

[1] TOMÁS, Júlia. A escola de Francforte: teoria crítica social. Univerité Paul Valéry, Montpellier. In: SILVA, Manuel Carlos (et al) (orgs.). X Congresso luso-afro-brasileiro de ciências sociais: sociedades desiguais e paradigmas em confront do Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho. V. 2. 2009. p. 103-104.

[2] FISCHER-LESCANO, Andreas. A teoria crítica dos sistemas da escola de Frankfurt. CEBRAP, Novos Estudos, v. 86, pp. 163-177, março, 2010, p. 164.

[3] ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Lisboa: Edições 70. 2015, p. 19.

[4] DEBBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 132.

[5] ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 35-37.

[6] RAMIL, Ian. Derivacivilização. In: Derivacivilização. Album disponível em: http://www.ianramil.com/, acesso 09 jan 2017.

[7] RAMIL, Ian. Voz da indústria. In: Derivacivilização. Album disponível em: http://www.ianramil.com/, acesso 09 jan 2017

[8] RAMIL, Ian. Coquetel molotov. In: Derivacivilização. Album disponível em: http://www.ianramil.com/, acesso 09 jan 2017

[9] MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: EDIPRO, 2015, p. 98-

[10] RAMIL, Ian. Artigo 5º. In: Derivacivilização. Album disponível em: http://www.ianramil.com/, acesso 09 jan 2017

[11] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 175-176.

[12] NEVES, Marcelo. Aumento de complexidade nas condições de insuficiente diferenciação funcional: o paradoxo do desenvolvimento social da América Latina. In: SCHWARTZ, Germano. Juridicização das esferas sociais e fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 206.

[13] FROMM, Erich. A Revolução da Esperança: Por uma Tecnologia Humanizada. Trad. Edmond Jorge. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 56.

[14] RAMIL, Ian. Corpo vazio. In: Derivacivilização. Album disponível em: http://www.ianramil.com/, acesso 09 jan 2017

[15] FROMM, Erich. A Revolução da Esperança: Por uma Tecnologia Humanizada. Trad. Edmond Jorge. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 54-55.


 

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