Crítica à ideologia da defesa social

16/07/2015

Por Bartira Macedo de Miranda Santos - 16/07/2015

O festejado professor Alessandro Baratta apresenta – em seu livro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal, traduzido para o português pelo eminente professor Juarez Cirino dos Santos, e publicado pela Editora Revan como o primeiro volume da Coleção “Pensamento Criminológico”[1] – a teoria criminológica moderna, confrontando as aquisições das teorias sociológicas sobre crime e controle social com os princípios da ideologia da defesa social, que constituem a base do discurso repressivo dos sistemas penais.

Desde que, no início do século XX, as ciências penais se separaram, cada uma seguiu um curso epistemológico: o direito penal, como ciência normativa e dogmática; a criminologia, como ciência das causas do crime, estudo do delinquente, da sociedade criminógena e, já no final do século XX, como estudo do sistema punitivo; e a política criminal, como pesquisa das melhores opções científicas ou políticas que devem orientar a elaboração da legislação. Ainda há pouco diálogo entre o direito penal e a criminologia, pois as duas disciplinas seguiram caminhos bastante díspares, com objetos de estudo e métodos bem diferentes. Enquanto o direito penal, de modo geral, desenvolveu-se como conhecimento dogmático-jurídico (a-histórico) sobre o crime e a pena, a criminologia abandonou o paradigma causal-explicativo do crime para questionar o aparato do controle social penal, convertendo o sistema punitivo em seu objeto de estudo.

A Criminologia Crítica marca essa mudança paradigmática da criminologia a partir da década de 1960, que deslocou o foco de análise do fenômeno criminal, do sujeito criminalizado para o sistema penal, os processos de criminalização e o sistema de reação social ao desvio. A criminologia tradicional preocupava-se com as causas do crime, com a pessoa do criminoso e com os fatores sociais que levavam ao crime. Era uma visão limitada, que enxergava no criminoso e em seu meio social as causas da criminalidade. A Criminologia Crítica, por sua vez, empreenderá um olhar para além das causas individuais do crime.

A partir dela há, portanto, um novo enfoque no estudo do fenômeno criminal, com uma completa mudança de paradigma. Não se trata mais de investigar as causas da criminalidade para combatê-la, mas, sobretudo, investigar o próprio sistema penal, seus mecanismos de controle e de seleção das condutas e dos indivíduos rotulados como “criminosos”. A Criminologia passa, então, a se indagar sobre o processo de criminalização e de etiquetamento.

Disso resultou um abismo teórico entre o direito penal e a criminologia. Segundo Alessandro Baratta, “o atraso da ciência jurídica em face do pensamento criminológico contemporâneo mais avançado é tal que, de fato, obriga a pensar que o mesmo não pode ser hoje recuperado através de uma crítica imanente, ou de uma autocrítica situada no interior da ciência jurídica” (p. 45).

Se, de um lado, a defesa social raramente é objeto de análise dos juristas, havendo uma aceitação acrítica, e o seu uso é acompanhado de uma “irrefletida sensação de militar do lado justo”, por outro as teorias sociológicas da criminalidade empreenderam uma relevante crítica da ideologia penal da defesa social.

No livro Criminologia Crítica e crítica do direito penal, Alessandro Baratta realiza um confronto entre a teoria jurídica da defesa social e a teoria sociológica da criminalidade, visando à superação dos elementos míticos e ideológicos que ainda pesam sobre o direito penal como uma “mal digerida herança do passado”. O objetivo de Baratta é mostrar o quanto algumas perspectivas sobre as contemporâneas teorias sociológicas da criminalidade estão criticamente mais avançadas em confronto com a ciência penal e oferecer importantes pontos de vista para uma crítica e superação do conceito de defesa social (p. 44-45).

Baratta mostra que tanto a escola clássica como a escola positivista, se bem que de maneiras diferentes, sustentavam a ideologia do sistema penal baseado na defesa social. Ainda que suas concepções de homem e sociedade sejam profundamente distintas, em ambos os casos – na escola clássica e na positiva – nos encontramos diante da afirmação de uma ideologia da defesa social, como nó teórico e político fundamental do sistema científico penal.

Ainda segundo Baratta, a ideologia da defesa social (ou do “fim”) nasceu contemporaneamente à revolução burguesa e assumiu o predomínio ideológico no setor penal. A escola positiva herdou a ideologia da defesa social da escola clássica, transformando-a em algumas de suas premissas. O conteúdo dessa ideologia passou a fazer parte da filosofia dominante na ciência jurídica e das opiniões tanto dos representantes do aparato penal como do homem de rua.

O conteúdo da ideologia da defesa social é reconstruído, nesta obra, por Alessandro Baratta, por meio dos seguintes princípios (p. 42):

a) Princípio de legitimidade. Significa que o Estado, como expressão da sociedade, está legitimado para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos, por meio de instâncias oficiais de controle social (legislação, polícia, magistratura etc.);

b) Princípio do bem e do mal. É identificado com a ideia de que o delito é um dano para a sociedade, sendo um elemento negativo e disfuncional do sistema social. O desvio criminal é, pois, o mal; a sociedade constituída, o bem;

c) Princípio de culpabilidade. O delito é a expressão de uma atitude interior reprovável, porque contrária aos valores e às normas presentes na sociedade mesmo antes de sancionadas pelo legislador;

d) Princípio da finalidade ou da prevenção. A pena não tem somente a função de retribuir, mas de prevenir o crime (exercendo uma contramotivação ao comportamento criminoso) e de ressocializar o delinquente;

e) Princípio de igualdade. A lei penal é igual para todos. A reação penal se aplica de modo igual aos autores de delitos;

f) Princípio do interesse social e do delito natural. Os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos.

Se você, leitor, concorda com esses princípios, precisa ler, com urgência, o livro. Vera Malaguti Batista[2] afirma que os intelectuais e operadores do direito dividem-se entre os que leram e os que não leram Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Poderíamos dizer que por esses princípios seria possível medir o nível de criticidade dos penalistas. Eles retratam o senso comum teórico de todos que militam na área criminal.

A superação da ideologia da defesa social, ou ao menos uma atitude crítica em relação a ela, poderia ser alcançada, no pensamento penalista, por meio do encontro da mais avançada criminologia e da teoria social da criminalidade. No entanto, esse encontro não se realizou até o momento atual. Segundo Baratta, ainda não existe uma verdadeira interação entre a dogmática do delito e a teoria sociológica da criminalidade, embora se assinale, em quase todos os países europeus, a necessidade de se (re)construir um (novo) modelo de ciência penal integrada: um modelo de ciência que promova uma integração entre a dogmática jurídico-penal e o conhecimento criminológico crítico, vale dizer, em que o conhecimento jurídico penal não fosse divorciado ou alheio à realidade social.

Em Criminologia Crítica e crítica do direito penal, Baratta examina as teorias sociológicas que destroçaram os princípios da ideologia da defesa social. O autor leva em conta as pesquisas sobre crime e pena, que já em 1920 e 1930 apresentavam um ângulo novo, incluindo a sociedade no universo explicativo do fenômeno criminal, até o novo enfoque do etiquetamento ou da reação social (labeling approach), que provocaram a completa inversão da perspectiva da investigação criminológica, com o surgimento da Criminologia Crítica, a partir das décadas de 1960 e 1970.

Alessandro Baratta demonstra, com o confronto entre a teoria social e os princípios da ideologia da defesa social, o atraso significativo da ciência jurídico-penal e as aquisições das ciências sociais. Para ele, esse atraso não pode ser vencido pelo direito penal sem uma transformação no seu modelo de ciência, por meio da qual se obtenha uma nova relação de colaboração com a ciência social, se supere a ideologia da defesa social e se encontre uma estratégia de controle dos comportamentos socialmente nocivos ou problemáticos, que seja alternativa ao atual sistema repressivo. Baratta não acredita que o direito penal possa superar esse atraso, pois para a construção dessa nova estratégia político-criminal a ciência penal também está dependente da contribuição da ciência social. Enfim, “não é mais possível reconstruir um modelo integrado de ciência penal fundado sobre o caráter auxiliar da ciência social em face da ciência jurídica, ou, em todo caso, sobre o caráter científico dos dois discursos, tomados na sua autonomia: o discurso do cientista social e o discurso do jurista” (p. 155).

Enquanto não seja possível a construção de uma ciência penal integrada, o caminho proposto por Baratta é estabelecer uma relação entre ciência e técnica. Por técnica jurídica se entende, com efeito, a preparação de instrumentos legislativos (técnica legislativa), interpretativos e dogmáticos em vista de finalidades e de opções político-criminais conscientemente perseguidas no âmbito da correção lógico-argumentativa e da discricionariedade valorativa atribuída ao jurista, nesses diversos níveis da própria atividade, pelo sistema jurídico-político. Este deve ser considerado não somente na realidade normativa existente, mas também em sua ampla transformabilidade no quadro constitucional e, pois, na dinâmica das relações sociais de produção que prevê e indica (p. 156).

Para Alessandro Baratta, a alternativa que se coloca aos juristas é tomar consciência da sua natureza técnica, reencontrando, em uma visão científica da realidade, o fundamento teórico das escolhas práticas de que ele é o instrumento. Caso contrário, permanecerá enredado na ideologia da defesa social, perpetuando as desigualdades sociais e a atuação seletivamente injusta do sistema penal.

A ciência que deve orientar o jurista é uma ciência social comprometida (e não uma ciência social neutra) com a transformação da realidade, uma vez que somente ela pode desenvolver um papel de controle e de guia em relação à técnica jurídica, capaz de reverter as relações de hegemonia. Conforme Baratta, “Na atual fase de desenvolvimento da sociedade capitalista, o interesse das classes subalternas é o ponto de vista a partir do qual se coloca uma teoria social comprometida, não na conservação, mas na transformação positiva, ou seja, emancipadora, da realidade social” (p. 158).

Enfim, o livro de Alessandro Baratta é imprescindível para uma visão crítica do sistema penal, visto que “a história do sistema punitivo – conforme escreve Ruche – é mais que a história de um suposto desenvolvimento autônomo de algumas ‘instituições jurídicas’. É a história das relações das ‘duas nações’, como chamava Disraeli, das quais são compostos os povos: os ricos e os pobres” (p. 171).

Adverte Nilo Batista: “ou bem o jurista pensa o sistema penal do qual participa, ou bem se converte num jurista-objeto, reprodutor mecânico das funções concretas do controle social penal numa sociedade determinada” (p. 3).


Notas e Referências:

[1] A primeira edição italiana é de 1982 pela Società Edittrice Il Mulino, de Bologna, e somente em 1987 foi traduzido para o vernáculo por Juarez Cirino dos Santos. Aqui, nesta resenha, utilizamos a edição da Editora Revan, de 2003. A propósito, vide os dois volumes da coletânea de artigos em homenagem a Alessandro Baratta, “Verso e reverso do controle penal: (des)aprisionando a sociedade da cultura punitiva”, organizado pela Professora Vera Regina Pereira de Andrade, publicados pela Fundação Boiteux, 2002.

[2] BATISTA, Vera Malaguti. Duas ou três coisas que sabemos (por causa) dele. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Verso e reverso do controle penal: (Des)Aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis, 2002, p. 189.


Resenha de:

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002. 254p.


Bartira

Bartira Macedo de Miranda Santos é professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Federal de Goiás, é Pós-doutoranda pela PUC-GO e bolsista Capes. Autora do livro Defesa Social: uma visão crítica, 2015, pela Coleção Para Entender Direito (www.paraendetenderdireito.com.br).

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Imagem Ilustrativa do Post: 23º BPM // Foto de: André Gustavo Stumpf // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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