Crise penitenciária: vetor orientador indispensável ao desenvolvimento das políticas criminais - Por Bruna Guzzatti de Barros Vieira

15/12/2017

O descumprimento do dever de custódia em relação às pessoas privadas de liberdade por parte do Estado brasileiro – obrigação assumida tanto na ordem internacional como no texto constitucional – constitui uma realidade inquestionável, invariavelmente retratada no noticiário nacional.

A massiva violação de direitos diuturnamente observada, seja pela superlotação derivada de uma cultura social punitivista e emergencial, seja pela ausência de condições mínimas de habitabilidade nas unidades prisionais, salta aos olhos e impõe ao Poder Público a concretização de medidas que efetivamente contribuam para a atenuação (já que de todo fantasiosa qualquer posição tendente a um sistema carcerário ressocializador) dos danos causados pelo encarceramento.

A tal respeito, justamente em razão da persistente omissão estatal, a Corte Suprema do Estado brasileiro, tanto em sede de controle concentrado de constitucionalidade, como se verifica da medida cautelar parcialmente deferida no julgamento da ADPF nº 347/MS, quanto nas decisões proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade (RE 580252/MS; ARE 662563 AgR), vem não só reconhecendo a violação massiva de direitos das pessoas privadas de liberdade, mas sobretudo assentando o dever do Estado de prevenção, identificação e reparação dos danos causados.

Trata-se de postura que denota caráter verdadeiramente interventor do Judiciário no sentido de “superar bloqueios políticos e institucionais à efetivação dos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade”, tal como reconhecido na ADPF 347/MS.  O voto do Ministro Relator Marco Aurélio por ocasião do julgamento da medida cautelar parcialmente concedida na referida ação constitucional revela com clareza a postura estatal frente ao sistema carcerário:

[...] Há, na realidade, problemas tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal. Falta coordenação institucional. O quadro inconstitucional de violação generalizada e contínua dos direitos fundamentais dos presos é diariamente agravado em razão de ações e omissões, falhas estruturais, de todos os poderes públicos da União, dos estados e do Distrito Federal, sobressaindo a sistemática inércia e incapacidade das autoridades públicas em superá-lo. [...]

A responsabilidade do Poder Público é sistêmica, revelando amplo espectro de deficiência nas ações estatais. Tem-se a denominada “falha estatal estrutural”. As leis existentes, porque não observadas, deixam de conduzir à proteção aos direitos fundamentais dos presos. Executivo e Legislativo, titulares do condomínio legislativo sobre as matérias relacionadas, não se comunicam [...]

[...] Cabe ao Supremo catalisar ações e políticas públicas, coordenar a atuação dos órgãos do Estado na adoção dessas medidas e monitorar a eficiência das soluções (STF, ADPF 347/MS) 

Ainda no que toca ao sistema penitenciário, em sede de repercussão geral, tratou o Supremo Tribunal Federal de afastar expressamente a alegação da reserva do possível quando em pauta a responsabilidade estatal decorrente do seu dever de custódia e vigilância das pessoas privadas de liberdade.

Nesse sentido, o Ministro Relator Teori Zavascki:

Ainda que se admita não haver direito subjetivo individual de deduzir em juízo pretensões que visem a obrigar o Estado a formular e implantar política pública determinada, inclusive em relação à questão carcerária, certamente não se pode negar ao indivíduo encarcerado o direito de obter, inclusive judicialmente, pelo menos o atendimento de prestações inerentes ao que se denomina mínimo existencial, assim consideradas aquelas prestações que, à luz das normas constitucionais, podem ser desde logo identificadas como necessariamente presentes qualquer que seja o conteúdo da política pública a ser estabelecida. E ninguém pode duvidar de que, em qualquer circunstância, jamais se poderia excluir das obrigações estatais em matéria carcerária a de indenizar danos individuais de qualquer natureza causados por ação ou omissão do Estado a quem está, por seu comando, submetido a encarceramento (STF, RE 580.252/MS, repercussão geral, 16/02/2017 – grifou-se) 

Nesse sentir, diante de tais decisões, imprescindível perceber que o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal de um “estado de coisas inconstitucional” no sistema prisional brasileiro (ADPF 347 MC/DF), para além de impor o dever de reconhecer, coibir e reparar as violações histórica e sistematicamente levadas a cabo pelo Estado aos direitos das pessoas privadas de liberdade, deve impedir toda e qualquer ação de potencial encarcerador, sob pena de inegável retrocesso em sede de política criminal.

Com efeito, ações estatais como o recrudescimento das condições exigíveis ao deferimento do indulto e a extinção da comutação observados no Decreto Presidencial n 8.940/2016, a lamentável autorização ao cumprimento da pena após a condenação em segunda instância[1] e, mais recentemente, a inclusão do crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito no rol crimes hediondos[2], são posturas inadmissíveis frente ao compromisso assumido pelo Estado de minimizar o caos do sistema carcerário.

Tais medidas, em verdade, na contramão do ideal desencarcerador, revelam para além do descaso com a problemática apresentada, a persistência de um modelo de política criminal baseado no medo, o qual se vale do Direito Penal como instrumento “em favor da sociedade”, em detrimento do viés individual essencialmente necessário em um estado democrático.

Uma vez mais, não se pode aceitar que o Estado, a pretexto de salvaguardar a ordem social ou coisa que o valha, olvide responsabilidade exclusivamente sua, qual seja manter a segurança e a custódia adequada das pessoas privadas de liberdade, ignorando solenemente o dever outrora reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal de se afastar do estado de inércia e deficiência permanentes observados no sistema penitenciário.

Não há dúvidas, portanto, de que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no que tange ao sistema penitenciário brasileiro nas decisões aqui referidas precisa ser urgentemente apropriado por todas as instâncias atuantes no sistema de Justiça a fim de que suas ações, no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, estejam alinhadas com o ideal de efetivação dos direitos das pessoas privadas de liberdade, conferindo racionalidade e humanidade às políticas criminais adotadas.

 

[1] STF, HC 126.292/SP, 17/02/2016.

[2] Lei 13.497, de 26 de outubro de 2017. Altera a Lei nº 8.072/90, de 25 de julho de 1990, para incluir o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito no rol de crimes hediondos.

 

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