[…] três traços já podem ser identificados na estrutura religiosa do capitalismo. Em primeiro lugar, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez até a mais extremada que já existiu. Nele, todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto; […] O capitalismo é a celebração de um culto sans rêve et sans merci [sem sonho e sem piedade]. Para ele, não existe “dias normais”, não há dia que não seja festivo no terrível sentido da ostentação de toda a pompa sacral, do empenho extremo do adorador. Em terceiro lugar, esse culto é culpabilizador. O capitalismo presumivelmente é o primeiro caso de culto não expiatório, mas culpabilizador. Nesse aspecto, tal sistema religioso é decorrente de um movimento monstruoso. Uma monstruosa consciência de culpa que não sabe como expiar lança mão do culto, não para expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para martelá-la na consciência e, por fim e acima de tudo, envolver o próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela expiação.
– Walter Benjamin em Capitalismo como religião.
Mesmo a meia boca é preciso falar, o Direito brasileiro sofre sua maior crise. “Nunca antes vista”. Quem diz não sou eu, e sim, o crítico radical Ministro Gilmar Mendes. E se dele vem; como bom funcionário do Direito e da Justiça, cabe pensar em alto e bom tom, tentando aparar as arestas da bizarra realidade que sobressai.
Nada muito novo e tudo muito global. Primeiramente, a afirmação ocorreu semana passada[1][1] sob influência das denúncias envolvendo Deltan Dallagnol que, para o desespero do Estado democrático de Direito (e de qualquer membro do MP que se preze), tomou a liberdade de confabular com sua máfia do poder a possibilidade de levantar sem querer — querendo — dados financeiros do ministro do STF.
Bom, diante da orquestra vexaminosa, o crítico radical não hesitou: atribuiu à realidade jurídica — diante da totalidade dos eventos da Vaza-jato — a pecha — crise — aliás, a maior de todos os tempos.
Obviamente, as respostas (mal) dadas ao ataque anti-democrático da própria esfera jurídica convergem para o criminoso futurista hacker, repetidas de idas escandalizações encenadas nos EEUU desde as generalizações de traidores para com os inimigos de Estado; Assange, Manning, Snowden e agora Gleen. Sem perder tempo com pormenores de nomes como Deltan ou Moro, prefiro avançar na condição crísica, retratando pelo viés da facilmente autoritária cultura jurídica, pouco afiada no tema dos Direitos Humanos ou, então, muito dada aos afazeres mercantis do juridiquês que esqueceu-se do tema da realidade humana.
Enquanto o cenário da crise jurídica é arquitetado para os jogos eleitorais, a narrativa anti-sistêmica da direita dita cristã vai se transforma em possibilidade de exploração. Da racionalidade moderna, a cultura jurídica (autoritária) importa mitos fundacionais funcionalizando-os em “novos” sistemas burocráticos. Assim, o contínuo giro desfalcado de ética, pôs as condições destrutivas necessárias para o funcionamento do maquinário totalizador em terras brasilis, não é à toa que nomes familiares se repetem em condecorosas capas e longos hectares de terras[2][2]. Pois, se já não bastasse repetir as hierarquias colonizadoras, raciais, patriarcais… resolveu — por si só — copiar e colar nomes gravados nos sistemas de propriedade fundiária para o sistema de funções jurídicas.
O culto sem sonho e sem piedade
Para além do copia e cola, a construção da suposta modernidade jurídica não está livre de mistificações. Pelo contrário, os mitos da modernidade remontam a aparição do cristianismo no império romano e na cultura greco-romana. O grande mito central se impõe na seguinte narrativa: Deus se fez ser humano revelando ser parte do humano desde a eternidade[3]. Há um aspecto próprio da universalidade de Deus que se materializa invariavelmente nas preocupações, no índice da culpa da humanidade universalizada. Essa ausência de solução diante dos pobres, dos mendigos, ou então dos atuais (i)migrantes, é mesmo necessário responder por toda miséria e injustiça?
A culpa cristã introjetada nas veias do capitalismo é expiada apenas no pagamento da dívida — aquela paga por Jesus Cristo para expiar todos de todo o mal. Entretanto, a questão da culpa e dívida atualmente é melhor traduzida pelos Conselhos (ao jovem de negócios) de Benjamin Franklin lidos por Max Weber. Para ele, não corresponder pela culpa é assassinato do dever de dedicar-se ao aumento de suas poses.
Na América Latina, no entanto, os aspectos teológicos da dívida tornam-se aparentes a partir de 1985, quando Fidel Castro inicia campanha pública dizendo de que se trata de uma dívida impagável. O que não era novidade para os bancos internacionais tornou-se o anúncio de sua vitória completa, eis que não há nada de errado para o emprestador tal condição. A partir desta clareza, a dívida impagável passa a submeter os governos latino-americanos, corroendo-os. Estabilidade social inexistente. Governo executor da vontade externa, com táticas de contra-autonomia social. O direito dos povos de escolher e determinar sua própria maneira de viver e seu futuro tolhido. Corroída pela dívida e pela culpa, a sociedade não pode fazer surgir democracia[4]. Tudo isto, sob vigência da lei.
A consciência monstruosa
Para a expansão da culpa e da dor pela dívida eternizada na união de Deus com o humano, a conscientização monstruosa vem driblando os limites dos bons sentimentos cristãos. A alma e a espiritualidade guiadas no âmbito da lei força a reprodução de uma abstração que coadune com o mito de que a morte pode trazer vida. Eis o ponto central da mistificação da consciência monstruosa. Empreende esforços para retirar o aspecto humano do cristianismo, no intuito de repetir a constante implementação do Estado de Cristandade.
Destaque para os novos esforços americanos recém-chegados ao Brasil e bem recebidos pelo ministro-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni. Os pastores de Trump avançando com altos estudos bíblicos em aceitação da miséria e ostentação do ódio autolegitimado[5]. No nível jurídico, a exportação destas novas missões evangelizadoras governamentais rompe com o princípio de separação entre Estado e igreja, tanto no EEUU quanto no Brasil. Além disso, avança o lobby dos juristas evangélicos[6] para ampliação dos valores cristãos no Governo.
Uma outra interessante reflexão que fica é sobre a posição das instituições quanto a vida. Pois terão de enfrentar o sério compromisso de olhar para baixo — aquelas que se querem democráticas. Este efeito de redimensionamento que ocorre no campo jurídico tem a condição de amplificar os horizontes imaginativos sobre o Direito. Entretanto, vai ser preciso sair da confortável posição do logo logo passa; postura tão fácil de adotar no lado salariado entre Direito e Estado. A democracia estadocentrica parece sempre guardar uma posição ao jurista mais comedido.
Enquanto o vai-e-vem ideológico parece ‘redistribuir’ privilégios e atacar a própria estrutura jurídica, os mortos de sempre seguem sua marcha. A pergunta histórica de Franz J. Hinkelammert pensada para a década de 70 no contexto latino americano não perde sua força crítica imanente: como governos que se autoqualificam como “religiosos” e “cristãos” massacram o povo explorado que é também, em sua maioria, cristão?[7] O círculo da dependência repete-se não só em termos econômicos, mas na constante dignificação crucificadora e ideologizada, em que a dignidade está em sofrer a dominação. A consciência monstruosa ciente deste mecanismo desfaz a espiritualidade humana e concebe sob a vigência da lei a desumanização da vida.
Notas e Referências
[1] https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2019/08/e-linguagem-de-criminoso-diz-gilmar-mendes-sobre-dialogos-atribuidos-a-lava-jato-cjz1bpfzf002601patv2calf3.html.
[2] https://deolhonosruralistas.com.br/2019/07/21/familia-dallagnol-obteve-400-mil-hectares-de-terras-no-mato-grosso-durante-a-ditadura/.
[3] HINKELAMMERT, Fraz J. Hacia una crítica de la razón mítica. El laberinto de la modernidad. Materiales para la discusión. Arlekín. San José (Costa Rica), 2007.
[4] HINKELAMMERT, Franz J. A dívida externa da América Latina: o automatismo da dívida. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1989, p. 58.
[5] Os pastores de Trump chegam a Brasília. El país: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/12/politica/1565621932_778084.html.
[6] Associação de juristas evangélicos fundada por Damares Alves amplia lobby no Governo: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/15/politica/1565869021_409047.html.
[7] HINKELAMMERT, Fraz J. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Edições Paulinas. 1983, p. 8.
**Foto do arquivo pessoal do Autor do texto.