Criminalização Tributária e Salsichas: é melhor não saber como são feitas - Por Paulo Henrique Helene

28/10/2017

Imaginemos os seguintes casos para a compreensão do problema que será tratado – antes, advirto que qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência:

1. Tício, empresário bem-sucedido, pai de família, rico, querido no meio social, na condição de único administrador de sua empresa, suprimiu tributos federais devidos: a) mediante a apresentação de declaração de imposto de renda da pessoa jurídica - DIPJ 2008, referente ao ano-calendário 2007, com os valores relativos à receita bruta zerados; e b) omitindo-se no ano-calendário de 2008, deixando de apresentar as diversas declarações fiscais acessórias. Além disso, Tício deixou de recolher aos cofres públicos o imposto de renda retido na fonte, incidente sobre o pagamento de trabalho assalariado e sobre o pagamento de trabalho sem vínculo de emprego, nos anos-calendário de 2006 e 2007. Com efeito, apurou-se o débito tributário de R$ 8.203.914,42 (oito milhões, duzentos e três mil, novecentos e quatorze reais e quarenta e dois centavos).

2. Mévio, reincidente, indigente, desempregado, viciado em drogas, subtraiu para si dois pares de chinelos da marca Havaianas, avaliados em R$ 65,98 (sessenta e cinco reais e noventa e oito centavos).

Compreendido o descomunal antagonismo fático retratado, de imediato passamos a uma rápida análise das referidas situações, dialogando entre os saberes criminológicos e os saberes os jurídicos-penais.

Não há dúvida que o sistema penal é impotente perante os delitos do poder econômico (os chamados crimes “do colarinho branco”)[1]. A esse propósito, em recentíssimo informativo de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, destacou-se que o pagamento do débito tributário, a qualquer tempo (até mesmo após o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória), é causa de extinção da punibilidade do acusado.[2]

Sob o argumento da particularidade do bem ofendido (patrimônio público), opta-se sempre por “incentivar” o contribuinte, a fim de receber o quantum devido ao invés do processo penal e a condenação, o que transforma essas práticas criminosas em investimentos lucrativos[3].

Agora, na segunda hipótese, por se tratar de pessoa desvalorada, com certeza, ser-lhe-ão atribuídas todas as cargas negativas existentes na sociedade sob a forma de preconceitos. De imediato, cria-se um estereótipo no imaginário coletivo[4], resultado de uma imagem pública de delinquente com componentes étnicos, etários, de classe social e de gênero.

Inclusive, em diversas oportunidades, o próprio Tribunal da Cidadania refutou a aplicabilidade do princípio da insignificância ao sujeito reincidente – o que é absolutamente criticável –, em casos similares ao anteriormente narrado.

Nesse cenário, sem qualquer esforço intelectual, enxerga-se a demonstração de uma cabal discrepância de tratamento.

Se deflagrada a persecução penal e Tício pagar o débito, extingue-se a punibilidade do crime tributário. Noutro giro, se até o recebimento da denúncia Mévio reparar o dano ou restituir voluntariamente a res furtiva, tem-se caracterizado o arrependimento posterior (CP, art. 16).

Se entre o lapso temporal do recebimento da peça acusatória até a prolação da sentença condenatória o agente sonegador satisfazer o tributo devido, extingue-se a punibilidade; ao passo que o agente surrupiador beneficia-se – modestamente – com uma circunstância legal atenuante de pena (CP, art. 65, III, “b”).

Prosseguindo com o mesmo raciocínio, após o trânsito em julgado da condenação, para o empresário, adivinhe: extingue-se a punibilidade! Já, ao desempregado, só lhe resta à masmorra.

É nítida, de um lado, a lógica sistemática do in dubio pro reo e, de outro, a matriz inquisitória do in dubio pro hell[5]. Ao primeiro, uma estrutura normativa – legislativa e jurisprudencial – de contenção do poder punitivo; ao segundo, o processo penal do inimigo fundado na lógica, não outra, de perseguir o resultado desejado: a condenação.

Àqueles mais ricos se reserva um “clube” de garantismo privativo. Agora, ao trabalhador pacato e todos quantos se veem submetidos a formas espoliativas de trabalho, que se abrigam em sub-habitações, não há como negar sua posição vulnerável frente à criminalização secundária (aplicação e execução de penas criminais)[6], restando-lhes em voga o discurso – rasteiro e pífio – da bandidolatria. Chega-se ao extremo (desrespeito intelectual) de tentar fulminar sofisticadas teorias, como ocorre na coculpabilidade, adjetivando-a como “mera idiotice”[7]

Então, fica a pergunta: todos, realmente, são iguais perante a lei?

Dia após dia, o que se vê é uma enxurrada de tratamentos anti-isonômicos que aparelham uma máquina estatal de moer a carne mais fraca; um verdadeiro tsunami de lama que varre a ordem constitucional e a lógica do Estado Democrático de Direito.

Talvez a vida do operador do Direito – sério, coerente e responsável – fosse mais feliz se não soubesse como são feitas as criminalizações, as leis e as “salsichas”.


[1] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 47.

[2] Informativo nº 611. HC 362.478-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, por unanimidade, julgado em 14/9/2017, DJe 20/9/2017.

[3] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 165-167.

[4] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 46.

[5] ROSA, Alexandre de Morais da Rosa; KHALED JÚNIOR, Salah H. In dubio pro hell I, profanando o sistema penal. 2 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 15.

[6] SANTOS, Juarez Cirino dos. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 5.

[7] PESSI, Diego; SOUZA, Leonardo Giardin de. Bandidolatria e democídio: ensaio sobre o garantismo penal e criminalidade no Brasil. São Luís: Livraria Resistência Cultura Editora, 2017, p. 37. 

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