O art. 147 do Código Penal enquadra o crime de ameaça “Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”.
Esse crime se consuma no momento do conhecimento da conduta pelo ameaçado, independentemente da efetiva intimidação. Por essa razão, é considerado um crime de perigo, não exigindo um resultado, ou seja, não é necessário que a vítima sofra realmente a pressão moral, e que daí se turbe a tranquila segurança do indivíduo. (GRECO, 2017)
Em suma, para o crime de ameaça, basta a conduta idônea para gerar o temor. (NUCCI, 2020). Assim, em trazendo ao presente estudo o “temor” no crime de ameaça, faz-se imperioso mencionar o medo do desconhecido, abstrato e supersticioso, antes de abordar a criminalização da ameaça supersticiosa.
Acerca da superstição, André Menezes Rocha[1] traz uma interessante citação de “Cúrcio, livro 5, parágrafo 4” que: “O medo é pois a causa que origina, conserva e alimenta a superstição.” Em seu artigo - “Espinosa e o conceito de superstição” - Rocha (2008) aborda o entendimento do Filósofo Espinosa frente o medo e a superstição - “a causa da superstição é o medo”.
Na interpretação do autor supracitado em comparação ao entendimento do Filósofo, a superstição se trata de “um medo particular, cuja origem remonta a outras paixões, quais sejam, aos amores imoderados por bens da fortuna” (ROCHA, 2008, p. 82). O que colhe, portanto, é que o núcleo do delírio supersticioso é onde o supersticioso crê, sem saber, talvez, o alcance, é quase que um delírio a olhos abertos.
Dito isso, questiona-se, como a superstição religiosa pode ser utilizada como uma ameaça?
Primeiro, os elementos que constituem a ameaça supersticiosa são os mesmo de qualquer outra modalidade de ameaça. A diferença está na caracterização por meio utilização de “palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico” (art. 147) canalizada na crença, fé e, principalmente, ao sobrenatural na intenção de causar mal injusto e grave. (GRECO, 2017)
O indivíduo, ao fazer menção à magia negra, prática de macumba e rituais de passagem, feitiçarias e bonecos de vodu, entre outros, está utilizando de conteúdo de crença mística para consumar a ameaça. Melhor dizendo, todo e qualquer meio com conteúdo místico e sobrenatural se enquadra na modalidade de ameaça supersticiosa, não sendo necessário um vínculo com alguma religião já conhecida. (BITTENCOURT, 2011).
A ameaça de trabalhos espirituais já foi objeto de análise em crime de extorsão mediante ameaça, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, o qual abriu precedente para tal interpretação e futuras aplicações da lei nesse mesmo sentido:
[…]3. A alegação de ineficácia absoluta da grave ameaça de mal espiritual não pode ser acolhida, haja vista que, a teor do enquadramento fático do acórdão, a vítima, em razão de sua livre crença religiosa, acreditou que a recorrente poderia concretizar as intimidações de “acabar com sua vida”, com seu carro e de provocar graves danos aos seus filhos; coagida, realizou o pagamento de indevida vantagem econômica. Tese de violação do art. 158 do CP afastada.[…] (REsp 1299021/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 14/02/2017, DJe 23/02/2017)
No caso em comento, a “ameaça espiritual” com objetivo de “obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica” (art. 158), foi diagnosticada no crime de extorsão. O que se leva a crer na criminalização da ameaça supersticiosa.
Como se vê a análise da criminalização da ameaça supersticiosa ficou a cargo do julgador, pois o legislador ainda não estabeleceu seus contornos, e, a doutrina, tão somente, a interpretação do dispositivo legal sob a ameaça de um mal concretizável. Nesse sentido:
Deve-se levar em consideração a capacidade de interferência na psique da vítima, a agitação que a ameaça desperta no íntimo, restringindo assim, a faculdade de refletir placidamente e deliberar por livre vontade. E então se a vítima por meio desse tipo de ameaça sentir-se fortemente constrangida, nos moldes já explicitados, poderá o autor ter sua conduta configurada no tipo penal de ameaça (PRADO, 2019).
Em um primeiro momento, o conteúdo proferido mediante gestos, expressões verbais ou escritos que contenha um teor fundado em crenças ao sobrenatural, pode ser confundido com liberdade religiosa, no entanto, detém significativo potencial lesivo à vítima, pode gerar grave medo do misterioso e desconhecido. (PRADO, 2019).
Ao interpretar a legislação penal ante essa dogmática, deve-se tomar todo um cuidado necessário na aplicação de direitos fundamentais previsto na Constituição Federal, no entanto, não se pode afastar o caráter valorativo ao caso concreto, de modo que, atos como ameaça espiritual, devem sim, ser examinados aos olhos da criminalidade. (NUCCI, 2020).
Dessa feita, para que a ameaça supersticiosa possa ser compreendida como crime, é necessário que o meio utilizado seja um mal e que esse mal seja injusto e grave, ou seja, o conteúdo da promessa deve ser entendido pela vítima como medo. (ROSA, 2003).
Não é o evento injusto e danoso, mas sim a intimidação que se manifesta no sujeito passivo, e que, por si só lhe cause mal injusto.[2]
Ou seja, o modo de transmissão da ameaça deve influir no seu medo e, portanto, nas suas consequências efetivas ou imaginadas pela vítima que por muitas vezes desconhece a força das palavras empregadas. Isso realça a natureza essencialmente psicológica do crime de ameaça. Onde a pessoa na qualidade de vítima vive acuada e na certeza de um mal abstrato maior. (NUCCI, 2020).
Não obstante, o desconhecimento popular pode, por vezes, distorcer a realidade das palavras. Diz-se isso, pois a interpretação criminal só será dada quando as expressões tratarem de macumba ou vodu, entre outros meios supersticiosos, na intenção negativa e ofensiva da palavra. Todavia, Rogério Greco (2017) afirma que, ao se verificar a ignorância e desconhecimento da vítima acerca do alcance religioso das palavras, aquele que as proferiu deve ser responsabilizado.
Do contrário, já havia se posicionado a doutrina que, caso a vítima venha a ser pessoa cética e, por isso, não se sinta intimidada por meio da ameaça desse conteúdo, o crime não se constitui, pois, o instrumento da livre razão é necessário para a sua caracterização. (BITTENCOURT, 2011)
No caso da ameaça supersticiosa é quase impossível afirmar com precisão, que esse mal será concretizado, de forma que independe do emprego da força humana, apenas ao sobrenatural. (PRADO, 2019).
À vista disso, o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt admite que “a ameaça pode materializar-se através da exibição de bonecos perfurados com agulhas”.[3]
E, no mesmo sentido Rogério Greco (2017), se posiciona que “é razoável que ameaçar alguém, valendo-se das condições particulares da vítima, por meio de forças espirituais, rituais de magia, ou qualquer outro fato supersticioso, constitua crime de ameaça conforme expõe o art. 147 do Código Penal”[4].
Assim, conclui-se que, é possível a criminalização da ameaça supersticiosa, quando, em análise ao caso concreto, a ameaça espiritual desconhecida ao homem médio, atingir a vítima em sua intimidade, ao ponto de causar-lhe amedrontamento. Não somente isso, para análise da criminalização pontual dessa ameaça, a vítima deve ser vista de modo individualizado, pois, o simples entender que o ofensor interfirá de modo causal nesse mal, bem como, o acreditar na concretização do mal injusto e grave a sua vida ou de sua família, caracterizará o crime.
Notas e Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial II (dos crimes contra a pessoa). 11ªed 16., São Paulo: Editora Saraiva, 2011. 2016
BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Especial. Tomo 4º (crimes contra a pessoa). 1ªed., Rio-São Paulo: Editora Forense, 1966.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. 2ªed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, p. 1631.
GRECO, Rogério: Curso de Direito Penal: parte especial: artigo 121 ao 212. 19. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017, v. 2.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 711).
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
ROCHA, A. M. Cadernos de Ética e Filosofia Política 12, 1/2008, p. 81-99
ROSA, Felipe: A intimidação como Violência, Revista da EMERJ, v. 6, n. 21, 2003 p. 175-17
[1] Rocha, A. M. Cadernos de Ética e Filosofia Política 12, 1/2008, p. 81-99
[2] Rosa, Felipe: A intimidação como Violência, Revista da EMERJ, v. 6, n. 21, 2003 p. 175
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial II (dos crimes contra a pessoa). 11ªed., São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 408
[4] GRECO, Rogério: Curso de Direito Penal: parte especial: artigo 121 ao 212. 19. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017, v. 2. p. 519.
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