Por Cyro Marcos da Silva - 04/04/2015                                                                                                                                       
“O que as pessoas mais temem? Dar um novo passo ou usar uma nova palavra que elas mesmas inventaram?”

Raskólnikov, um pobre e ex-estudante de direito, assassina uma velha agiota e sua irmã, esta porque teve a má sorte de ali chegar em lugar e hora “errados”. Matou por dinheiro? Ou porque tinha uma racionalizada teoria, segundo a qual, estaria autorizado ao ato criminoso, porque seria uma exceção, pertencendo a um segmento social superior onde o crime se legitimava dependendo de seus nobres fins. Uma vez que era cliente da agiota, torna-se fácil para ele chamar a atenção da polícia. Não bastasse isso, o tempo todo após o crime, provoca e recua, age e anula, fica num confessa -não confessa, totalmente perturbado por estar diante de seu ato consumado. Enfim, “dá a maior bandeira” o que não escapa ao arguto Porfiri, que para isto nem precisaria gastar sua inteligência. Enquanto isso, sua mãe e irmã também vêm à cidade seguidas por dois homens mais velhos que estão em busca da mão de sua irmã. Quando tais pretensões passam por ele, demonstra-se um verdadeiro paladino da moralidade. Um dia encontra um funcionário bêbado que vem a ser morto em um acidente de trânsito de charretes, e esta é sua chance de mostrar-se desprendido e magnânimo. Tendo diante de si a filha deste homem, a Sônia pobre, prostituta e agora, ainda por cima, órfã, tem diante de si o prato ideal para o enamoramento por parte de um neurótico obsessivo. Capturada e capturando, ela o aconselha a se confessar, prometendo até mesmo ir para a prisão ou para a Sibéria com ele. Mais uma vez, já no final do filme, ele vai á delegacia para confessar e, sabendo do suicídio de um dos pretendentes da sua irmã, novamente recua. Quando sai da delegacia, lá estava Sonia, pronta para o quer der e vier e aí, então, munido de um último e sempre primeiro fio e feixe de coragem, ele confessa. Finalmente. Deixa o medo, porque dá o passo e fala a palavra temida.

Em 1928, quando Freud escreve “Dostoievski e o parricídio”, ele avisa aos psicanalistas para que deponham as armas diante do criador literário. Enfim, o saber que os psicanalistas vão construindo gota a gota, está lá, não sabido, já na escrita dos grandes escritores.

O que li de Crime e Castigo, foi há muitos anos. E por uma terrível coincidência, li a história num livro que me foi emprestado pelo marido de uma promotora, quando eu era juiz no interior de Minas. Fiquei pouco tempo nessa comarca, de lá me mudei e o livro foi comigo. Algum tempo depois, o dono desse livro foi assassinado em outra cidade para a qual essa promotora também tinha se mudado. Nunca esqueci este fato, encapando esse livro. Possivelmente, pelo que girava em torno dele, tinha me esquecido completamente da história. Não pararam aí as minhas formações inconscientes em torno desse livro: eu o perdi. Não sei onde foi parar.

O que temos diante de nós? Um verdadeiro manancial de ensino sobre a neurose. Fez-me lembrar, de imediato, três tipos de caracteres encontrados nas análises, conforme Freud disto nos falava em um escrito de 1916. O nosso protagonista apresenta seu retrato falado nas três situações:

a) Colocando-se como exceção. Como escreve Freud, “dizem que sofreram e se privaram bastante, que têm direito a que se os escuse de ulteriores exigências, e que não se submetem mais a nenhuma necessidade desagradável, pois eles são exceções e pensam que continuam sendo”.

b) Outra situação. Não tendo dado nem mesmo sequência à conquista feita no campo profissional do direito, continua a se fazer pensionar por sua mãe ( sobre o pai ninguém diz coisa alguma ), parecendo subscrever-se naqueles que estão no segundo caso de “alguns caracteres encontrados na psicanálise. É o caso dos que fracassam quando têm algum sucesso. Diz Freud: “a contração da enfermidade subsegue ao cumprimento do desejo e aniquila o gozo deste”.

c) Finalmente, também se enquadra bem entre aqueles que delinquem por consciência de culpa. Volto a citar Freud: “sofria de uma aguda consciência de culpa, de origem desconhecida, e depois de cometer uma falta essa pressão se aliviava. Pelo menos, a consciência de culpa ficava ocupada por algum tempo” Estamos, com este protagonista, a meu ver, ao que tudo indica, diante não de uma psicose, mas de uma neurose obsessiva, o que sempre tem, fenomenologicamente, muitos matizes que podem nos trazer confusão.

O filme já começa nos mostrando seus sonhos em que a culpa ali já estava instalada, bem antes que tivesse passado ao ato, ao crime. Enfim, a palavra temida estava ali antes do passo. Aliás, o que há, na neurose obsessiva, é a grande dificuldade que a palavra esteja fazendo ato. A distância é sempre mantida e sempre denegada. Na neurose obsessiva, dada a frouxidão do que foi recalcado, a representação de palavra e o que afeta, estão sempre se encontrando em desencontros, nos infernos dos pensamentos que não cessam e não dão sossego. Geralmente, só descansam, se é que se possa assim dizer, quando dormem para sonhar que estão sendo perseguidos e devidamente castigados. A culpa já estava a todo vapor em cima desse sujeito e o ato criminoso, dessa forma, veio ocupá-la. Ocupar o culpado, se ousamos brincar com estes significantes...

Como aparece a mulher para o protagonista? Como aquela “única” que poderia compreendê-lo. Ela só pode despontar como objeto amoroso para ele, porque para este atormentado homem, ela já até o poupa de degradá-la. Essa já vem desvalorizada como ponto de partida: pobre e puta. O que dali ele pudesse vir a fazer, já ganharia estatuto de grandeza. Por outro lado, é essa mesma mulher que, com sua posição amorosa, sustenta sua saída do impasse em que se meteu. É quando ele a vê na porta da delegacia, pronta e arrumada para o que tiver que se seguir, que ele se toma da mínima coragem necessária para minimamente subjetivar seu ato criminoso. Não dizem por aí, que “atrás de um grande homem há uma grande mulher”? Não seria por isso que Lacan disse que a mulher é o sintoma do homem, o que leio como aquela amarração que lhe dá chance de uma formação de compromisso, de modo que conte sempre com um Outro que lhe oriente e circunscreva um modo de funcionar?

Isso não fica longe do que costumamos ver nas cenas cômicas mundanas, no humano cômico, ambulante e divertido humanicômico, nosso constante teatro de costumes, sempre disposto a camuflar a miséria ética com o fausto épico.

Muitos encontros amorosos se amargam no seguinte: quando um grave e atolado neurótico obsessivo, que tudo faz para que não apareça o desejo do Outro, mantendo-o impossível, encontra uma histérica juramentada, esta, fazendo valer a ferro e fogo que o que importa é a insatisfação do desejo do Outro....tudo está pronto para o ringue. Nessa economia extremada, um degrada enquanto o outro extorque. Um se faz ferir e se desgraça, para o outro se fazer imprescindível.

Muito teria ainda a ser dito, mas acho que já estou deixando elementos suficientes para que possa ir encerrando e abrindo espaço, quando a organização assim o permitir, a fim de que venham as falas de vocês que puderem brotar disso que consegui lhes apontar, a partir dessa magnífica obra literária.

E como aqui é ocasião de nos rendermos à lucidez dos escritores, sem esquecer dos tempos que estamos vivendo, vou terminar com as letras do escritor Henri Miller, que é um tanto amaldiçoado por aí. Dele vem um bem-dizer que toca a verdade de cada um de nós.

“O estudo do crime começa pelo conhecimento de si mesmo. Tudo que vocês desprezam, tudo que lhes enoja, todo que vocês rejeitam, o que vocês condenam e procuram punir pelo castigo, tudo isto vem de vocês mesmos.”

Juiz de Fora, 28 de março de 2015 - ( Hotel Constantino )


Cyro Marcos da Silva é ex-Promotor de Justiça, ex-Professor de Processo Civil, Juiz de Direito aposentado do TJRJ e Psicanalista. Publica regularmente no Empório do Direito nas quintas-feira.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               


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