CRIME DE FUGA E DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO    

29/11/2018

 

 

O crime de fuga do local do acidente vem previsto no art. 305 da Lei nº 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro, punindo com detenção de 6 meses a 1 ano ou multa a conduta de “afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída.”

Trata-se de crime que visa tutelar a administração da justiça, somente podendo ter como sujeito ativo o condutor do veículo automotor envolvido em acidente.

A celeuma que se estabeleceu na seara penal cinge-se especificamente à possível inconstitucionalidade do dispositivo, ou seja, a saber se o disposto neste artigo, obrigando o condutor do veículo responsável pelo acidente a permanecer no local, não estaria ferindo o princípio da não autoincriminação, já que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (“nemo tenetur se detegere”).

Isso porque qualquer criminoso pode fugir do local do crime, menos o autor de delito de trânsito, que seria obrigado a permanecer no palco do acidente para ser responsabilizado criminalmente e civilmente.

O Setor de Recursos Extraordinários e Especiais Criminais da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo já há muito tempo editou a Tese 333 a respeito do assunto, do seguinte teor: “Crimes de Trânsito – Fuga à responsabilidade – Artigo 305 da Lei 9.503/97 – Constitucionalidade – O crime de fuga à responsabilidade não ofende o inciso LXIII, do artigo 5º, da Constituição da República, eis que o suposto direito à fuga não pode prevalecer sobre o interesse do Estado na identificação dos envolvidos no evento de trânsito” (DOE, 4-5-2011, p. 137).

O Supremo Tribunal Federal também, em recente julgamento, enfrentou a questão ora ventilada, que, desde 2016, já tinha repercussão geral reconhecida (tema 907) nos autos do RE 971959/RS, tendo como relator o Ministro Luiz Fux.

No recente julgamento, o Plenário do STF, por maioria, deu provimento ao recurso extraordinário para reformar o acórdão recorrido que declarou a inconstitucionalidade do referido tipo penal e, consequentemente, absolveu o réu. O entendimento foi o de que “a regra que prevê o crime do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro é constitucional, posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e ressalvadas as hipóteses de exclusão da tipicidade e da antijuridicidade.”

Efetivamente, no caso sob análise, o réu havia sido denunciado pelo Ministério Público estadual e condenado como incurso nas sanções do crime previsto no art. 305 do CTB. Ao julgar a apelação, o juízo de segundo grau a proveu para declarar a inconstitucionalidade do crime de fuga, com a consequente absolvição do réu. Baseou-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no art. 386, III, do Código de Processo Penal, entendendo que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo.

O Ministério Público estadual recorreu, sustentando que o crime de fuga não ofende os direitos a não autoincriminação e ao silêncio, uma vez que o objetivo dessas garantias não abarca a simples exigência de permanência no local do acidente do agente que o tenha provocado. Não há obrigação legal de prestar declarações ou assumir culpa, mas apenas de evitar o uso de subterfúgios à ação do poder de polícia administrativo, viabilizando a identificação dos envolvidos em acidente de trânsito, inclusive para o fim de evitar futuras punições ou responsabilizações judiciais injustas.

Para o STF, “é admissível a flexibilização do princípio da vedação à autoincriminação proporcionada pela opção do legislador de criminalizar a conduta de fugir do local do acidente.” Isso porque a criminalização da conduta não afeta o núcleo irredutível daquela garantia enquanto direito fundamental, qual seja, jamais obrigar o investigado ou réu a agir ativamente na produção de prova contra si próprio. O tipo penal do art. 305 do CTB apenas obriga a permanência do agente no local para garantir a identificação dos envolvidos no sinistro e o devido registro da ocorrência pela autoridade competente.

Como bem ressaltado pelo STF, o bem jurídico tutelado é a administração da justiça, prejudicada pela fuga do agente do local do evento, uma vez que tal atitude impede sua identificação e a consequente apuração do ilícito, para fins de se promover a responsabilização cível ou penal de quem, eventualmente, provocar um acidente de trânsito, dolosa ou culposamente. Essa diligência administrativa, aliás, transforma-se em meio de defesa do próprio acusado.

Em suma, ao decidir pela constitucionalidade do polêmico artigo, estabeleceu o STF que a exigência de permanência no local do acidente e de identificação perante a autoridade de trânsito não obriga o condutor a assumir eventual responsabilidade cível ou penal pelo sinistro nem tampouco enseja que contra ele se aplique qualquer penalidade caso não o faça. O condutor, após sua identificação pela autoridade de trânsito, pode optar, quando indagado, por permanecer em silêncio e não prestar nenhum esclarecimento acerca das circunstâncias do acidente. E, concluiu a Suprema Corte, o princípio da não autoincriminação pode ser relativizado pelo legislador justamente por possuir natureza de direito fundamental, que, no contexto da teoria geral dos direitos fundamentais, implica a valoração do princípio da proporcionalidade e seus desdobramentos como critério balizador do juízo de ponderação, inclusive no que condiz com os postulados da proibição de excesso e de vedação à proteção insuficiente.

 

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