CRIANÇAS NO FRONT: os prejuízos do cenário de violência política e do recrudescimento de ideais neonazistas para os direitos da criança e do adolescente

30/05/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

No mês de abril, uma diversidade de ataques a creches e escolas foram realizados e arquitetados ao redor do Brasil e de Santa Catarina com a finalidade de assassinato de crianças. Um cenário de pavor tomou conta dos lares brasileiros no que tange à segurança nas escolas, de pais e mães tementes pela vida dos filhos, de irmãos mais velhos tementes pela vida de seus irmãos mais novos, de professores tementes pela vida dos seus alunos. E na medida em que se viu aumentar as ameaças de novos ataques, bem como o medo dos pais, mães, irmãos e professores, também se viu recrudescer os questionamentos: o que leva alguém a tirar a vida de uma criança? De onde vem essa mentalidade doentia? Seria o assassino um psicopata? As novas ameaças seriam alarmismo de pais e mães amedrontados ou o resultado de um cenário de violência arquitetado para assassinar os filhos da nação? O ataque à creche em Blumenau seria um “caso isolado” ou o resultado de ideologias políticas de instigamento à violência e ao armamentismo?

A verdade é que a violência contra a criança é muito menos um fenômeno individual e muito mais um fenômeno político. A violência contra a criança resulta não de um indivíduo com a mentalidade doentia, mas sim de uma sociedade de mentalidade doentia que é refletida na figura de um único homem criminoso. Primeiramente, somos filhos, netos e bisnetos de homens e mulheres criados e educados de forma violenta, que receberam tratamento cruel, desumano e degradante na infância, na adolescência e na juventude, com requintes de surras com vara de marmelo, espada de São Jorge, chinelos de dedo, e cinto com fivela. Pais e mães de antigamente criaram seus filhos com base na violência porque existiu todo um fator histórico-cultural que não defendia tampouco protegia a infância. A Convenção sobre Direitos da Criança e do Adolescente, 1989, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990, foram pensados, refletidos e redigidos somente nas últimas décadas do século XX, e não foram suficientes para consertar os séculos e séculos de dano e estrago justamente porque o contexto social ignorava a existência da infância. Na Revolução Industrial, a criança era vista como adulto em miniatura, e era aproveitada como mão-de-obra barata, sendo exposta a acidentes, insalubridades, perigos e abusos. E essa mentalidade doentia e violenta não vem da Revolução Industrial, mas sim de milênios anteriores: registros históricos documentam que na Roma Antiga, crianças de sete anos, filhas de escravos, eram sujeitas à morte por crucificação, que era o modelo de pena de morte mais cruel e doloroso de sua época. E a pergunta que não quer calar é: como consertar estes errantes milênios em menos de meio século?

No que tange à educação violenta e o motivo pelo qual ela se impregnou em nossa cultura, podemos relembrar a afirmação de Sigmund Freud (2010) na obra “O Mal-estar da Civilização”, que nos remete à reprodução e perpetuação do ciclo de violência e hostilização dos seres humanos entre si, que perpassa as gerações e se instaura no tempo:

Em consequência dessa hostilidade dos homens entre si, a sociedade aculturada está constantemente ameaçada pela ruína. O interesse da comunidade de trabalho não a manteria unida; as paixões determinadas por impulsos são mais fortes do que os interesses racionais. (FREUD, 2010, p.125) 

A perpetuação da violência na história tornou-se o fator que vulnerabiliza o direito da criança e faz com que crianças sejam colocadas em situações de violação, assim como torna adolescentes e jovens adultos vulneráveis à reprodução dos discursos e atitudes violentas que se retroalimentam até culminar na conduta criminosa.

Seja na Idade Medieval, na Cruzada dos Inocentes, em que crianças eram colocadas na linha de frente de batalha e acabavam sendo sequestradas, vendidas e escravizadas, ou mesmo nos campos de concentração do Holocausto da Segunda Guerra Mundial, em que crianças eram separadas dos pais, escravizadas, assassinadas, ou mesmo abortadas, ou queimadas em fornalhas logo depois de nascer; a situação política de violência colocava em situação de vulnerabilidade o direito da criança e do adolescente. O recrudescimento das ideias nazistas e fascistas no campo político europeu foi um fator decisivo para colocar as nações em situação de guerra e as crianças no front. Crianças perderam seus pais, seus irmãos e outros familiares, crianças perderam a dignidade, a liberdade e até mesmo a própria vida.

Segundo a obra O Diário de Anne Frank (2014), a adolescente Anne Frank descreve várias proibições nazistas impostas aos judeus que nitidamente a prejudicam na sua condição de adolescente, fazendo com que uma simples atividade cotidiana se torne uma situação desumanizadora e criminalizadora, como se pode observar no seguinte trecho:

Os judeus deveriam usar uma estrela amarela, os judeus eram proibidos de andar nos bondes, os judeus eram proibidos de andar de carro, os judeus deveriam fazer suas compras entre três e cinco da tarde, os judeus só poderiam frequentar barbearias e salões de beleza de proprietários judeus, os judeus eram proibidos de sair na rua entre as oito da noite e às seis da manhã, os judeus eram proibidos de comparecer a cinemas ou teatros, os judeus eram proibidos de frequentar piscinas, quadras de tênis, campos de hóquei, os judeus eram proibidos de permanecer em seus jardins após as oito da noite, os judeus eram proibidos de visitar casas de cristãos, os judeus deveriam frequentar escolas judias.(FRANK, 2014, p.18)         

Da mesma forma que eram tolhidos os direitos dos judeus no Holocausto, numa situação político-jurídica que colocava em situação de vulnerabilidade não somente adultos judeus, mas também crianças e adolescentes, criminalizando suas condutas a sangue frio, vemos ao redor do Brasil inteiro o direito à vida, à segurança e à educação das crianças e adolescentes brasileiros sendo tolhido pela violência de terceiros, que foi legitimada por um processo histórico, político e cultural que violenta e vulnerabiliza os filhos e filhas da nação.

Segundo os dados da ONG Anti-Defamation League, o número de células e grupos neonazistas cresceu em 270% no Brasil nos últimos três anos, com a ascensão de líderes políticos de extrema-direita e a eleição de um presidente de extrema-direita. Esses grupos de extrema-direita neonazistas espalhados pelo Brasil são responsáveis por difundir ideais armamentistas, segregacionistas e com alto teor de violência, atacando as populações de minorias sociais e principalmente os grupos mais vulneráveis como crianças e adolescentes. Nesse processo, há uma dicotomia ululante: ao mesmo tempo em que visam ao assassinato de crianças na fase de primeira infância, esses grupos atraem adolescentes de extrema-direita com jogos e desafios que objetivam a realização desses assassinatos. O governo federal afirmou nos últimos dias que existem cerca de 100 pessoas presas e investigadas por envolvimento nos massacres em escolas. A previsão de um massacre para o dia vinte de abril tem maior relação com o recrudescimento neonazista de violência política do que somos capazes de imaginar: vinte de abril é o aniversário de Adolf Hitler, o líder nazista, o ídolo dos skinheads, simpatizantes do neonazismo.

No prefácio da obra “As Últimas Testemunhas” (2018), a autora Svetlana Aleksievich invoca a afirmação de Dostoiévski: “se em nome da harmonia eterna for derramada somente uma lagrimazinha de uma criança, essa única lagrimazinha não legitimará nenhum progresso, nenhuma revolução, nenhuma guerra, ela sempre pesa mais”. Se uma lágrima de criança não legitima progressos, revoluções e guerras, podemos imaginar o que Dostoievski afirmaria sobre mortes de crianças no desabrochar da sua primeira infância.

A violência contra a criança passou a existir não só quando governantes de extrema-direita se elegeram, mas ela existe desde sempre, porque a eleição de presidentes de extrema-direita que fazem discursos apologéticos ao armamento como uma necessidade do cidadão, e dizem que o Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990, deveria “ser jogado numa latrina”, não torna uma sociedade violenta do dia para a noite, mas é útil para revelar, aflorar e legitimar os maus sentimentos essa sociedade violenta que acredita (im)piamente que uma criança deve ser maltratada e violentada para ser bem educada. É preciso se atentar que a mentalidade por trás de uma “mísera tapinha” pode fluir para um espancamento, que pode levar a um assassinato. Os atuais assassinos fazem o mesmo desserviço, porém de maneira mais rápida e imediata. Os arquitetos desse cenário de violência somos todos nós, que criamos e educamos crianças com base na violência que é reproduzida e alimentada na adolescência e na juventude, levando à morte pessoas inocentes em fase de desenvolvimento que somente precisavam de tempo, cuidado e dedicação.

Além disso, nesse enredo de violência contra a vida, a dignidade, a segurança e a educação escolar das crianças, há um grupo específico que se torna ainda mais vulnerável: as crianças com deficiência. Seja por fatores comunicacionais, visuais, cognitivos ou locomotivos, crianças possuidoras de uma condição de existência diversa do padrão acabam por estar sujeitas a uma vulnerabilidade maior, correndo mais riscos de perder a vida num cenário de ataques e massacres.

É sabido que, apesar do Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelecer a vida, a dignidade, a liberdade e a educação como direito e oportunidade de vida para pessoas diversamente condicionadas em seu âmbito existencial, as escolas públicas e privadas não oferecem acessibilidade necessária para garantir a sobrevivência das crianças com deficiência num cenário emergencial como esse. Pessoas adultas com deficiência já são historicamente segregadas e não são ensinadas a se defender, tampouco possuem seu livre-arbítrio levado com a devida seriedade, e quando se trata de uma criança com deficiência a possibilidade de escapar com vida de um cenário aterrorizante como o de um massacre é ainda mais reduzida, visto que já é difícil para uma criança sem nenhuma condição existencial específica ou diversa do padrão escapar ilesa deste panorama violento.

O processo de violação do Direito da Criança e do Adolescente tem início com o fator histórico-cultural de criação, construção, educação e comunicação violenta entre pais e filhos. E continua com a eleição de representantes simpatizantes ao fascismo político, ao armamentismo e à violência. E culmina com o assassinato de crianças inocentes de até sete anos. Negacionistas alegam alarmismo e politização da tragédia. Entretanto, não há politização da tragédia: existe uma tragédia política e um cenário histórico, social, cultural, político e jurídico trágico e falho na proteção e na defesa das infâncias. Negacionistas afirmam que o armamento nas escolas seria a possível solução para o cenário violento, presos à ideia de que violência é combatida com armas, e pouco rememoram sobre a violência contra a criança que se concretiza quando uma criança presencia brigas armadas e assassinatos num ambiente feito para estudar e interagir socialmente como é o caso da escola.

Observemos o trecho de “As Últimas Testemunhas” (2018), em que a autora Svetlana Aleksievitch redige um depoimento de Guena Iuchkiévitch, que tinha somente doze anos na época da Segunda Guerra Mundial na Antiga União Soviética:

Os primeiros mortos… vi um cavalo morto… Depois…Uma mulher morta…Isso me surpreendeu. Eu imaginava que na guerra só se matavam homens. Eu acordava de manhã…Queria levantar, mas depois lembrava: guerra, e fechava os olhos. Não queria acreditar.         

Na coletânea de depoimentos ‘As Últimas Testemunhas” (ALEKSIEVITCH, 2018), a autora reúne memórias traumáticas de pessoas que viram o cenário da Segunda Guerra Mundial diante dos próprios olhos quando eram crianças. Essas crianças, cujos pais foram designados para o front, passaram fome, enfrentaram a miséria, viram suas mães enfrentarem a doença, a insegurança e a morte. Enquanto os pais de família foram designados para o front, eram as próprias crianças que estavam no front, de uma maneira não tão literal, mas enfrentando e sendo expostas ao cenário de guerra, fome, miséria, violência e violação de direitos humanos.

Uma criança perde a vida, a segurança e o direito à educação num cenário inseguro e violento como este que se apresenta para nós diante de nossos olhos. Da mesma forma, a criança perde a infância, a dignidade e a saúde psicológica ao presenciar cenas violentas em seu espaço de estudo e interação. Qual seria a solução para esse problema que não parece ter remédio? Estabelecer políticas públicas de desarmamento, cuidados com a saúde mental e combate à violência, educar e criar os filhos da nação de forma humana e respeitosa, munir-se de livros em vez de armas e fortalecer a cultura da paz para que toda uma nação possa mudar de vida. Um cenário de medo e violência só se transforma quando toda a sociedade muda a sua visão sobre o mundo. A paz só se instaura quando a violência sai de cena de forma definitiva.

 

Notas e referências 

ALEKSIEVITCH, Svetlana. As últimas testemunhas. Porto Alegre: Ed. TAG Livros, 2018. 

FANTÁSTICO. Grupos neonazistas crescem 270% no Brasil nos últimos três anos. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/01/16/grupos-neonazistas-crescem-270percent-no-brasil-em-3-anos-estudiosos-temem-que-presenca-online-transborde-para-ataques-violentos.ghtml. Acesso em: 19 abr. 2023. 

FRANK, Anne. O Diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2014. 

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Porto Alegre:Ed. LPM Pocket, 2010.

 

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