Crianças e adolescentes na era digital: Uma reflexão sobre direitos e limites

17/11/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Nasce uma criança. Automaticamente alguém lança mão de um smartphone e registra o momento em diversas imagens. Em seguida, envia para diversos grupos de Whatsapp para apresentar o novo membro à família.

Quase que imediatamente, e repleto de felicidades, todos começam a enviar as imagens para amigos, parabenizar em redes sociais. Outros mais animados já colocam as fotos em aplicativos que criam Stickers para uso até então, apenas familiar.

Ao chegar em casa, com a jornada exaustiva, algumas vezes faz-se uso de babás eletrônicas que enviam mais imagens diretamente para o aparelho celular e algumas vezes armazena em nuvem, e as fotos, também já foram armazenadas para que nenhum momento seja perdido.

Com o passar do tempo vêm as comemorações mensais, os chamados mesários, e as festas de aniversário, e durante as comemorações alguma cena inusitada é filmada e colocada nas redes sociais, por vezes vira “meme” na internet, que sempre serão lembrados.

Os aplicativos que exibem os vídeos e as músicas preferidas das crianças, já identificaram seus gostos e apresentam opções já mapeadas por algoritmos. Dessa forma, de imediato apresentam produtos e serviços que estes poderiam interessar.

Aplicativos de redes sociais dos mais diversos mostram crianças e adolescentes com páginas próprias, vendendo produtos, expert em publicidades, sem mesmo saber que já são especialistas na profissão.

Na escolinha, alguém orgulhoso tira foto das crianças ou até mesmo os próprios adolescentes postam nas suas páginas. Aqui o mundo da internet já sabe a localização deles, as preferencias e possuem históricos que nem podemos imaginar.

Nosso objetivo com este artigo não é criar pânico, esconder crianças e adolescentes do mundo e das redes sociais, mostrar que as pessoas não devem compartilhar suas alegrias com amigos, familiares ou com o mundo. Muito pelo contrário.

As crianças já nascem conectadas ao mundo virtual e é inegável que a tecnologia proporciona diversas facilidades que antes não existiam. A internet aproxima pessoas, facilita a comunicação, a educação e o compartilhamento de conhecimentos e culturas.

Estamos vivendo uma era digital e de conectividade, que traz diversas praticidades e benefícios, confortos que não se pode negar. Que não dá para voltar atrás e que nem deveriam, pois estas são sinônimos de progresso.

Contudo, como quase tudo na vida, tem o outro lado. O lado da exposição excessiva, da quebra de etapas e de uma falta de controle que têm consequências não só momentâneas, mas que podem durar uma vida. Uma falta de controle com consequências sociais e jurídicas que devem ser pelo menos minimamente observadas.

Com a velocidade em que a informação é propagada atualmente os direitos de desconexão e de esquecimento encontrarão um desafio cada vez maior para serem exercidos.

A Constituição brasileira de 1988[1] garante a todos o direito a direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Garante também o direito à privacidade.

O art. 227 do mesmo diploma legal traz ainda que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A legislação brasileira, ainda que de forma discreta, busca proteger os direitos das crianças e dos adolescentes na era digital.

Contudo, há de se admitir que a tecnologia é muito mais rápida e tem muito mais investimento do que o sistema jurídico dá conta de resolver os problemas causados por esses avanços.

Atualmente a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei nº 13.709/2018[2], que passou a vigorar apenas em 2020, traz uma seção voltada para proteção de crianças e adolescentes, todavia, traz um mecanismo baseado no consentimento dos pais ou responsáveis e no melhor interesse destes.

Ocorre que, mostra-se demasiadamente frágil um microssistema baseado em consentimento de pessoas, que embora tenham a principal motivação de proteção dos titulares desses direitos, ainda não têm conhecimento suficiente, cultura de proteção digital e privacidade ou sequer noção da extensão dos perigos que o mundo digital pode apresentar.

Neste cenário então mostra-se imperiosa a necessidade da educação digital não só para crianças e jovens, mais também para pais, responsáveis, educadores e escolas a fim de que se aumente a conscientização sobre o tema.

Há de se pensar ainda como a temática pode ser inserida nos currículos escolares atuais uma vez que o ambiente escolar é um dos principais espaços de convivência deles.

Por outro lado, o Princípio do Melhor Interesse, já trazido da literatura e doutrina internacional desde a Declaração dos direitos da Criança de 1959[3], corroborado no Estatuto da Criança e do Adolescentes, Lei nº 8.069/90[4], portanto mais maduro, agora tem maior importância como parâmetro judicial para resolução das demandas apresentadas ao Judiciário.

Mas, o judiciário está preparado para essas demandas? E as questões não apresentadas a ele? Como conduzir o consentimento diário com consequências na vida das crianças e adolescentes? Quais serão os limites e consequências desses consentimentos?

Em redes sociais e plataformas de vídeos, observamos diariamente perfis de crianças e adolescentes que fazem publicidade e propaganda dos mais diversos produtos e serviços, de forma consciente e inconsciente. Sem mencionar que não se é respeitada nem a idade mínima de uso dos aplicativos e não há qualquer fiscalização sobre isso. A quem interessa esta prática?

Sem ter qualquer noção de que aquela atividade diária pode ser artística ou não, se a privacidade escancarada nessas plataformas deveria ser exposta, vemos até páginas de recém nascidos com milhares e até milhões de seguidores.

E se quando forem adultos e tiverem condições de tomar decisões por si só, entenderem que não deveriam ter sido tão expostos, de quem poderão cobrar a falta de limites na exposição? Há alguém zelando por estes limites?

Será que nesta contemporaneidade não estaríamos diante de uma nova forma de trabalho infantil, um trabalho infantil digital? Qual o limite entre a arte, a brincadeira e o trabalho?

Não estaríamos nós, enquanto sociedade, alimentando a exploração indevida da imagem e intimidade de crianças e adolescentes por mera curiosidade ou vaidade? A questão ainda se mostra obscura sob todos os aspectos que possam ser observados, especialmente quando estamos diante de excessos e reporta a discussão já conhecida sobre a participação em telenovelas e outros programas televisivos.

Há de se observar também que tudo que é colocado na internet deixa rastros eternos pois é quase impossível apagar definitivamente algo que foi postado, ainda que haja ordem judiciais para tal. Muitas vezes nem mesmo sabemos para onde essas informações estão sendo mandadas ou por quem estão sendo compartilhadas. E se a informação postada gera algum tipo de discriminação, segregação, bullying ou algo do gênero contra crianças e adolescentes?

Ademais, não raro já são observadas páginas que usam imagens de crianças e adolescentes que inicialmente tinham fins publicitários ou particulares, e são usados por terceiros para promoção de abuso e exploração sexual, colocando a segurança em cheque não só de forma hipotética.

Essas ponderações nos desafiam a pensar em questões que vão muito além do que soluções jurídicas, mas também em questões sociais, culturais e mudança de paradigmas.

A educação digital e a conscientização sobre privacidade, de crianças, adolescentes, jovens e adultos, hoje é de fundamental importância para garantia de direitos nestes novos tempos para que as tecnologias sejam usadas de forma consciente e responsável sempre em busca de seus benefícios, e não para violação de direitos.

Estamos diante de uma era digital, em constante evolução que nos incita a cada vez mais valorizar a informação e a exposição. Porém, investir em educação e conscientização digital é, acima de tudo, nos deixar cada vez mais atentos em relação às nossas crianças e adolescentes e também aos nossos comportamentos, nós os adultos, perante as novas tecnologias da comunicação e as redes sociais, buscando fazer com que a vida seja menos virtual e mais presencial. Afinal, como todos já deveríamos saber, é responsabilidade de todos, família, estado e sociedade a guarda e segurança de crianças e adolescentes, que são o futuro, mas que desde o presente constroem suas relações com o ambiente virtual. 

 

Notas e Referências

[1]BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em 15 de novembro de 2020.

[2] Brasil. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Lei nº 13.709/2018. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709compilado.htm. Acesso em 15 de novembro de 2020.

[3] AMIN, Andréa Rodrigues. Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 12ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019

[4] Brasil. Estatuto da criança e do adolescente. Lei Federal nº 8.069/1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069compilado.htm . Acesso em 14 de novembro de 2020.

 

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