COVID-19 INTRAMUROS: REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS DA PANDEMIA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO BRASILEIRO    

14/09/2021

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Com a chegada da COVID-19 nas estruturas de privação de liberdade brasileiras, órgãos estatais publicaram orientações para a prevenção à propagação do vírus, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a Recomendação n.º 62, de 17 de março de 2020, e a Recomendação n.º 91, de 15 de março de 2021. Ambas recomendam aos tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas no âmbito dos Sistemas de Justiça Penal e Socioeducativo, como o incentivo à criação de Planos de Contingência pelos Poderes Executivos e a instituição de Comitês de acompanhamento das medidas de enfrentamento à COVID-19.

Especificamente quanto ao Sistema Socioeducativo, responsável pela submissão de medidas socioeducativas direcionadas a adolescentes e jovens às(os) quais se atribui o cometimento de ato infracional, as referidas Recomendações indicam medidas para redução dos fatores de propagação do novo coronavírus, levando em consideração os contextos locais e as fases de conhecimento e execução dos processos judiciais. Como exemplo, destacam-se: a garantia do direito ao contato familiar; a aplicação preferencial de medidas em meio aberto; a revisão das decisões que determinaram a internação provisória de adolescentes em situações específicas, como aquelas gestantes e lactantes, internados(as) provisoriamente em unidades socioeducativas superlotadas, sem equipe de saúde interna ou cujas instalações favoreçam a propagação do coronavírus, ou ainda cuja prática de atos infracionais se deu sem violência ou grave ameaça à pessoa[1].

Num cenário anterior à pandemia, o “Panorama da execução dos programas socioeducativos de internação e semiliberdade nos estados brasileiros”, publicado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em setembro de 2019, caracterizou as unidades socioeducativas brasileiras pela sua superlotação, cujas condições de infraestrutura e atendimento são precárias, de modo que conformam um estado de violência estrutural. De antemão, este diagnóstico evidencia o desafio de se efetivar medidas para prevenção à propagação da COVID-19 junto aos(às) adolescentes submetidos(as) a medidas socioeducativas de internação, cuja seletividade deste Sistema pautada em critérios racializados indica um público majoritariamente negro.

Já no contexto de pandemia, as gestões das unidades socioeducativas seguiram orientações para suspensão de atividades presenciais. Diversos estados interromperam as visitas familiares, aulas, práticas esportivas e religiosas, deliberaram pelo afastamento de profissionais dos grupos considerados de risco e adotaram a realização de videochamadas como via para manutenção do contato familiar. Com a reavaliação dos cenários locais de contaminação e avanço da vacinação, estas medidas têm sido paulatinamente flexibilizadas.

De mesmo modo, órgãos de fiscalização suspenderam as inspeções in loco no primeiro semestre de 2020, com a intenção de evitar o aumento do número de casos de contaminação de pessoas e trabalhadores(as) dos sistemas de privação de liberdade. Com tal suspensão e a escassez ou ausência de canais oficiais de comunicação das gestões estaduais, da não transparência e insegurança dos poucos dados publicados, foram adotadas estratégias de monitoramento remoto e triangulação de informações, a exemplo das ações informadas pelos chamados Mecanismos Preventivos brasileiros.

Já com a reavaliação periódica dos índices de contaminação e óbitos e das taxas de ocupação de leitos hospitalares por COVID-19 e a retomada das atividades presenciais no segundo semestre de 2020, estes Mecanismos Preventivos publicaram Relatórios, Informes e Notas Técnicas. Estes documentos discorrem sobre a condição das estruturas de privação de liberdade, abordam casos emblemáticos de violações de direitos e provocam o questionamento das ações estatais através das recomendações produzidas e monitoradas.

Sabe-se que outros órgãos e instâncias de controle social publicaram documentos oriundos de inspeções de monitoramento, em face de tal atribuição não restar prejudicada pela criação de Mecanismos Preventivos, entretanto, este texto centra esforços nas publicações destes últimos. Tais órgãos foram instituídos como resposta à obrigação internacional assumida pelo Brasil com a ratificação ao Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, através da publicação do Decreto n.º 6.085, de 19 de abril de 2007, e devem necessariamente ter asseguradas capacidade e autonomia em sua atuação.

Foi a Lei n.º 12.847, de 02 de agosto de 2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura brasileiro (SNPCT), formado pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), regulamentados pelo Decreto n.º 8.154, de 16 de dezembro de 2013. A atribuição de planejamento e realização de inspeções regulares e periódicas às instituições de privação de liberdade fica a cargo deste MNPCT e dos Mecanismos Preventivos estaduais, estes atualmente somados em quatro equipes atuantes nos estados do Rio de Janeiro, Pernambuco, Rondônia e Paraíba.

Em julho de 2020, o MNPCT divulgou o Informe de Monitoramento sobre o Sistema Socioeducativo no contexto de pandemia do novo coronavírus[2]. O documento registra a redução da superlotação em algumas unidades socioeducativas naquele período, como as da Paraíba e do Paraná, entretanto, constata instituições funcionando com população superior à sua capacidade, a exemplo daquelas localizadas no Acre. Informa ainda sobre a ausência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e testes, conforme denúncias referentes a unidades socioeducativas do Ceará e Amapá, e sobre as condições de “depredação, sucateamento, e contexto de insalubridade” destas instituições neste último estado (MNPCT, 2020, p. 04). Já no Amazonas, relata a disseminação da contaminação em populações totais de unidades socioeducativas.

O documento trata também do cotidiano de adolescentes mantidos(as) na maior parte do tempo trancados(as) nos alojamentos em unidades no Espírito Santo, e de denúncias de práticas de tortura disseminadas em unidades em Goiás e do Rio de Janeiro. Ademais, registra a realização de audiências a partir de videoconferências, com a finalidade de reavaliar as medidas socioeducativas de internação submetidas, como registrado no Amapá. Apesar da relevância de tal medida, merece problematização a efetivação de audiências e quaisquer oitivas de maneira não presencial, cujas fragilidades repercutem diretamente no sigilo, privacidade e proteção de adolescentes e jovens, e na garantia de seus direitos, em especial da ampla defesa e do contraditório.

Outros documentos publicados pelo MNPCT são os Relatórios das inspeções realizadas nas seguintes instituições: Centro Socioeducativo Santa Juliana, localizado no Acre, realizada no mês de agosto de 2020[3]; e Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE), localizado em Goiás, realizada em novembro de 2020[4]. Quanto à primeira instituição, destaquem-se relatos sobre sua arquitetura precária e prisional, cujo prédio fora anteriormente uma delegacia de polícia; a presença de insetos; não circulação de ar nos espaços de alojamento, onde adolescentes passam as 24 horas do dia trancados. Já no CASE, as fotografias do Relatório registram ambientes interditados em face de suas precárias condições; a suspensão de reformas; ausência de ventilação e iluminação; falta de privacidade no uso de banheiros, e outras inúmeras e graves violações de direitos.

Outro aspecto fundamental a ser observado no contexto de pandemia por COVID-19 refere-se ao impacto sobre a saúde mental de adolescentes e jovens submetidos(as) a medidas socioeducativas de internação. O distanciamento e a ruptura das relações afetivas e familiares e os processos de sofrimento próprios da condição de privação de liberdade dizem da importância de se fortalecer vínculos e dar prioridade a atenção integral à saúde nos serviços de base territorial. Destaque-se também a necessária atenção à condição de saúde dos(as) trabalhadores(as) deste Sistema Socioeducativo, a disposição de EPIs e de locais adequados para desempenharem suas atribuições, apenas para mencionar algumas das suas necessidades.

Dados do Boletim periódico do CNJ do mês de agosto de 2021 informam 101 óbitos no Sistema Socioeducativo brasileiro, sendo todos eles de servidores(as), a maioria ocorrida na Região Sudeste (41.6%) seguido da Região Nordeste (29.7%). Quanto aos 10.612 casos de contaminação confirmados, 7.975 são de servidores(as) e 2.637 de adolescentes privados de liberdade. Novamente, as Regiões Sudeste e Nordeste lideram tais estatísticas. Já no tocante aos testes realizados nestes públicos, o Boletim informa 29.665 testes em servidores(as) e 20.879 em adolescentes em privação de liberdade.[5]

Com a devida ressalva sobre os limites de tais dados, devendo se considerar aspectos como a proporcionalidade do tamanho das populações privadas de liberdade e do quadro de servidores(as), as políticas de testagens adotadas em cada estado e a divulgação destes dados, conforme indica o próprio CNJ nestes Boletins, e considerando ainda a internação em unidade socioeducativa como a medida mais gravosa adotada para a responsabilização destes(as) adolescentes e jovens, é fundamental reafirmar a necessidade de fortalecimento das agendas para garantia dos seus direitos e o monitoramento regular destas instituições, tendo como norte os parâmetros do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).

Importa ainda destacar que o SNPCT vem sofrendo ataques sistemáticos nos últimos anos. Desde 2017, o MNPCT informa sobre as dificuldades de atuação em sua composição total e os impedimentos efetivados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para o cumprimento das inspeções em locais de privação de liberdade. Somado a tais fatos, constata-se a não criação de Mecanismos Preventivos estaduais nas demais unidades federativas do país. É neste sentido que além de buscar medidas para prevenir e evitar a proliferação da COVID-19 nas instituições referidas, é preciso garantir a plena atuação do SNPCT, a partir do investimento na política nacional de prevenção e combate à tortura do Brasil.

 

Notas e Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n.º 62, de 17 de março de 2020. Recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.

______. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n.º 91, de 15 de março de 2021. Recomenda aos tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas adicionais à propagação da infecção pelo novo Coronavírus e suas variantes – Covid-19, no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.

______. Conselho Nacional do Ministério Público. Panorama da execução dos programas socioeducativos de internação e semiliberdade nos estados brasileiros. Brasília: CNMP, 2019.

______. Decreto n.º 6.085, de 19 de abril de 2007. Promulga o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado em 18 de dezembro de 2002. Brasília, 19 de abril de 2007.

______. Decreto n.º 8.154, de 16 de dezembro de 2013. Regulamenta o funcionamento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a composição e o funcionamento do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e dispõe sobre o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Brasília, 16 de dezembro de 2013.

______. Lei n.º 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional e dá outras providências. Brasília, 18 de janeiro de 2012.

______. Lei n.º 12.847, de 02 de agosto de 2013. Institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; cria o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; e dá outras providências. Brasília, 02 de agosto de 2013.

 

[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-emite-nova-recomendacao-de-enfrentamento-a-covid-19-em-prisoes-e-no-socioeducativo/. Acesso em: 01 set. 2021.

[2] Disponível em: https://mnpctbrasil.wordpress.com/2020/07/24/mnpct-apresenta-informe-de-monitoramento-do-sistema-socioeducativo-no-contexto-de-pandemia/. Acesso em: 01 set. 2021.

[3] Disponível em: https://mnpctbrasil.wordpress.com/2021/02/03/mnpct-publica-relatorio-de-inspecao-no-estado-do-acre/. Acesso em: 01 set. 2021.

[4] Disponível em: https://mnpctbrasil.wordpress.com/2021/02/09/mnpct-e-dpe-go-publicam-relatorio-de-inspecao-conjunta-em-estabelecimentos-de-privacao-de-liberdade-em-goias-localizados-no-entorno-do-distrito-federal/. Acesso em: 01 set. 2021.

[5] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/covid-19/registros-de-contagios-obitos/. Acesso em: 03 set. 2021.

 

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