A pandemia do novo coronavírus (SARS-COV-2) que assola o mundo desde o final de janeiro/2020 (a emergência de saúde pública de importância internacional foi declarada pela Organização Mundial da Saúde em 30/01/2020[1]) é uma das maiores crises que esta geração conheceu. O enfrentamento dessa crise sanitária está sendo realizado mediante a adoção de medidas de distanciamento social que importam em quarentena, isolamento e, em casos extremos, “lockdown” de parcela ou de toda a população de determinadas localidades, algo que gera reflexos em todas as atividades humanas, a exemplo da saúde, educação, esporte, economia, política, administração pública, relações internacionais e, destaca-se aqui, o mundo do trabalho.
Conforme célebre construção de Georges Ripert, “quando o direito ignora a realidade a realidade se vinga ignorando o direito”, o que denota que o ordenamento jurídico deve servir à sociedade e não o contrário, sob pena de ineficácia. As novas necessidades sociais impostas pela proliferação do novo coronavírus, que desencadeia a doença COVID-19, importam em adaptação, mesmo que transitória, da legislação nacional para que esta se torne apta ao correto enfrentamento da pandemia.
Nesse aspecto, foi aprovada e sancionada a Lei 13.979/20 com o objetivo de dispor sobre as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus, bem como foi aprovado o Decreto Legislativo nº 6 de 2020 que reconhece o estado de calamidade pública federal em razão da pandemia.
Especificamente no mundo do trabalho, pode-se dizer que houve uma “pandemia” de modificações operadas por diversas medidas provisórias editadas sob a justificativa de fazer frente aos efeitos da crise sanitária sobre as relações trabalhistas. Dentre as medidas provisórias editadas destacam-se a de nº 927/20, que tratava das medidas trabalhistas que poderiam ser adotadas com o declarado objetivo de preservar o emprego e a renda, e a de nº 936/20, que trazia a possibilidade de redução proporcional de salário e de jornada de trabalho e a suspensão do contrato por acordo individual e negociação coletiva mediante o pagamento de benefício emergencial governamental. A Medida Provisória nº 927/20 já perdeu a sua validade por não ter sido convertida em lei pelo Congresso Nacional no prazo de 120 (cento e vinte) dias a contar de sua edição. Já a Medida Provisória nº 936/20 foi convertida na Lei nº 14.020/20, esta que, sendo regulada e complementada pelo Decreto Federal nº 10.422/20, trouxe algumas modificações e novidades se comparada com o texto original da medida provisória.
Desde a edição da já caduca MPV nº 927/20, chamou a atenção o seu artigo 29 que estabelecia que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”[2]. De redação curta e fechada, o dispositivo criou a presunção relativa de que a COVID-19 não seria considerada doença ocupacional. Doença ocupacional, nos termos do artigo 20, caput, incisos, I e II, da Lei 8.213/91, é aquela enfermidade desenvolvida pelo trabalhador em razão de exercício de trabalho peculiar a determinada atividade ou a adquirida ou desencadeada em função das condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente.
O artigo 29 da MPV nº 927/20 abria apenas uma exceção: a COVID-19 seria considerada doença ocupacional quando houvesse comprovação do nexo causal entre a realização do trabalho e a infecção do trabalhador, atribuindo o ônus da prova ao laborista, o que contrariava o entendimento corrente de que o encargo probatório quanto ao acidente do trabalho e a doença ocupacional, via de regra, cabe ao empregador. Tal dispositivo não se afigurava justo e razoável mormente para categorias cuja natureza do trabalho impõe contato constante e direto com os vetores do patógeno SARS-COV-2.
Em 29/04/2020, o Supremo Tribunal Federal, em sua composição plenária, de maneira acertada, não referendou a decisão de indeferimento da medida cautelar anteriormente proferida pelo Ministro Marco Aurélio Mello em uma série de ADI’s que questionavam a MPV nº 927/20 (tal qual a de nº 6342, ajuizada pelo PDT). Sete ministros, a partir de divergência inaugurada pelo Ministro Alexandre de Moraes, entenderam que o artigo 29 da MPV nº 927/20 ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que estão expostos ao risco da COVID-19, suspendendo a eficácia do referido dispositivo.
Não obstante, para a caracterização da COVID-19 como doença ocupacional, para além da análise do teor da decisão prolatada pelo STF (que, mesmo após a perda de eficácia da MPV nº 927/20, continua sendo um importante norte de interpretação para a caracterização ou não da COVID-19 como doença ocupacional), é de salutar importância que o intérprete tenha em vista a redação da alínea “d” do § 1º do artigo 20 da Lei 8.213/91 que estabelece que
“(…) não são consideradas como doença do trabalho: (…) d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.”[3]
Certo é que a doença endêmica (incluindo a COVID-19), a princípio, não é ocupacional, salvo se a natureza do trabalho resultar em exposição ou em contato direto com os vetores de transmissão da enfermidade. E o STF, no julgamento de 29/04/2020, nada disse acerca do dispositivo da lei de benefícios previdenciários citado em linhas pretéritas que é mais técnico e mais brando do que a já caduca redação do artigo 29 da MPV nº 927/20. E deve-se dizer que não há incompatibilidade entre o decidido pelo STF e a redação da alínea “d” do § 1º do artigo 20 da Lei 8.213/91.
Se a natureza do trabalho resultar em exposição ou contato direto com os vetores de transmissão da COVID-19, a exemplo de profissões ligadas às atividades essenciais que lidam com grande circulação de pessoas ou com outros vetores de transmissão da doença, invocando-se como exemplos as funções dos médicos, enfermeiros, atendentes de hospital, técnicos de laboratório, biomédicos, motociclistas entregadores, tanatopraxistas, atendentes de farmácias, caixas de supermercado e motoristas de trasporte coletivo, importando a atividade em maior risco de contaminação, a presunção relativa será de que a COVID-19 foi adquirida em razão da prestação de serviços para o empregador, devendo ser considerada doença ocupacional. E pelo que se infere do teor da divergência inaugurada pelo Ministro Alexandre de Moraes, citada em linhas anteriores, a responsabilidade será objetiva em razão do momentâneo maior risco da atividade (artigo 927, § único, do CC/02). E é importante dizer que muitas das atividades profissionais já citadas foram reconhecidas como de maior risco de contágio por importarem contato direto com portadores ou possíveis portadores do novo coronavírus conforme dispõe o artigo 3º-J da Lei 13.979/20.
Caso a natureza da atividade não importe em exposição do trabalhador à grande circulação de pessoas ou aos vetores de transmissão da doença, a exemplo de um trabalhador de RH de uma metalúrgica e de uma cozinheira de um restaurante que atende somente a entregas “delivery”, tomando o empregador as precauções de higienização do ambiente laboral, exigindo o uso de máscaras e constante higienização e, em geral, cumprindo de forma estrita as normas das autoridades sanitárias, entende-se que não há como se presumir “iuris tantum” que a COVID-19 foi contraída no ambiente de trabalho. O mesmo se diga com relação aos trabalhadores que desempenham as suas atividades em regime de teletrabalho e “home office”.
Na data de 01/09/2020 foi publicada a Portaria nº 2.309/20 na qual o Ministério da Saúde, ao atualizar a lista de doenças relacionadas ao trabalho (LDRT), incluiu como doença relacionada ao trabalho a COVID-19 se adquirida em atividades laborais. No entanto, a referida portaria foi revogada um dia depois pela Portaria nº 2.345/20 sob a alegação de que a lista de doenças relacionadas ao trabalho seria, novamente, ajustada.
Destarte, conclui-se que para a caracterização da COVID-19 como doença ocupacional basta que seja aplicada a redação da alínea “d” do § 1º do artigo 20 da Lei 8.213/91, aplicação que deverá ser auxiliada pela análise da “ratio decidendi” da decisão proferida pelo STF na ADI nº 6342 que suspendeu a redação do artigo 29 da já caduca Medida Provisória nº 927/20, devendo vigorar a presunção relativa de contágio no ambiente de trabalho quando a natureza do serviço importar em exposição ou em contato direto com os vetores de transmissão do novo coronavírus.
Notas e Referências
BRASIL. Lei 8.213/91. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 14 mai. 2020.
BRASIL. Medida Provisória nº 927/20. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm>. Acesso em: 14 mai. 2020.
OMS declara emergência de saúde pública de importância internacional por surto de novo coronavírus. Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6100:oms-declara-emergencia-de-saude-publica-de-importancia-internacional-em-relacao-a-novo-coronavirus&Itemid=812>. Acesso em: 14 mai. 2020.
[1] OMS declara emergência de saúde pública de importância internacional por surto de novo coronavírus. Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6100:oms-declara-emergencia-de-saude-publica-de-importancia-internacional-em-relacao-a-novo-coronavirus&Itemid=812>. Acesso em: 14 mai. 2020.
[2] BRASIL. Medida Provisória nº 927/20. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm>. Acesso em: 14 mai. 2020.
[3] BRASIL. Lei 8.213/91. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 14 mai. 2020.
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