Cosmovisões e os deveres dos animais

03/06/2018

As cosmovisões ou visões de mundo, são as formas pelas quais nós compreendemos os fenômenos universais, sendo essas formas dependentes dos pressupostos, os primeiros princípios que determinam as cosmovisões, a partir dos quais é feita a leitura ou interpretação de tudo o que acontece. No campo científico, as cosmovisões se referem aos paradigmas, como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Thomas S. Kuhn. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 12 ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 53).

Em uma busca pela internet, deparei-me com dois artigos sobre as cosmovisões. O primeiro deles com o título “Compreendendo as seis diferentes cosmovisões que regem o mundo” (http://tradutoresdedireita.org/compreendendo-as-seis-diferentes-cosmovisoes-que-regem-o-mundo/), traduzindo um texto de David Noebel destacando as seis principais cosmovisões no mundo ocidental: a Cristã, o Islamismo, o Humanismo Secular, o Marxismo, o Humanismo Cósmico e o Pós-modernismo. O artigo define a cosmovisão como “'um quadro interpretativo', como um par de óculos – através do qual você vê tudo. Ela se refere a qualquer conjunto de ideias, crenças ou valores que fornecem uma estrutura ou mapa para ajudá-lo a entender Deus, entender o mundo e sua relação com eles”.

Outro artigo é de João R. Weronka, “Cosmovisão – o que é?” (https://www.internautascristaos.com/textos/artigos/cosmovisao-o-que-e), sustentando haver “sete cosmovisões básicas; são sete matrizes das quais as demais formas de enxergar o todo derivam: Teísmo, Deísmo, Ateísmo, Panteísmo, Panenteísmo, Teísmo Finito e Politeísmo”. A primeira delas, o Teísmo, é indicada pelo autor com expressão no Cristianismo, no Judaísmo e no Islamismo.

É possível, desde já, a partir de nossos conhecimentos históricos básicos, chegar a uma conclusão prévia, no sentido de que até o chamado Renascimento prevaleceu uma determinada visão de mundo no Ocidente, o Teísmo Cristão romano, e desde então essa cosmovisão específica veio perdendo força gradualmente, tanto dentro do próprio mundo religioso, pela Reforma e pela dita Revolução Científica e Filosófica, com Descartes, Galileu e Newton, todos autodeclarados seguidores de Cristo; como por uma visão não Cristã, notadamente pelo ateísmo.

Dentro dessa ideia de mudança de cosmovisão, a cosmologia teve grande importância para reduzir a força da Bíblia, e do Cristianismo, como visão de mundo dominante, quando a ideia heliocêntrica assumiu o domínio no campo científico, em contraposição ao geocentrismo, praticamente abandonado. Esse tema já foi abordado no artigo “Revolução e evolução” (http://emporiododireito.com.br/leitura/revolucao-e-evolucao-por-thiago-brega-de-assis):

“A revolução copernicana levou ao entendimento de que a Terra não é o centro físico do universo.

Contudo, os instrumentos utilizados pela ciência contemporânea e os dados por eles obtidos, analisados pela razão humana, indicam que o universo não tem centro, ou seja, todo local é o centro do universo. As informações obtidas pela radiação cósmica de fundo, pela medição da energia mais distante de todos os pontos do universo, indicam o ponto mais distante como sendo há 13,8 bilhões de anos, que é a idade estimada do universo.

'Existe um horizonte, o ponto mais longínquo de onde a luz pode nos atingir após viajar por 13,8 bilhões de anos, a idade do Universo. Podemos visualizá-lo como uma redoma que nos cerca, como se vivêssemos no centro de uma gigantesca esfera de vidro' (Marcelo Gleiser. A ilha do conhecimento: os limites da ciência e a busca por sentido. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 116 – grifo nosso).

O espaço se expande para todos os lados, e para todos os lados que olhamos encontramos a mesma radiação de fundo indicando a idade citada do universo, sendo perfeitamente razoável, por isso, com base nos dados científicos mais atuais, concluir que o desfecho da revolução copernicana demonstra, ao menos por ora, que a humanidade é o centro do cosmos. O compromisso com a verdade e com a realidade, conforme a ciência, aponta nesse sentido.

E em todo o universo físico conhecido, até o momento, o único ser com condição de verificar esse fato é o homem, que está, assim, no centro do cosmos.

A prova científica, ainda que provisória, demonstra a condição especial da humanidade na criação, como narrado na Bíblia, pois o homem é filho de Deus, criado à imagem e semelhança de Deus. Cada um de nós é imagem de Deus, e o centro de um universo, mas nem todos percebemos esse fato, e isso já está previsto na revolução cristã, em curso”.

O conhecimento cosmológico, portanto, aponta para uma impressionante verdade da visão Cristã, colocando a Terra com posição de destaque no cosmos. Nesse sentido, impressionou-me sobremaneira o livro de Wolfgang Smith “A sabedoria da antiga cosmologia”, defendendo em pleno século XXI, expressamente, a cosmologia geocêntrica, usando nada menos que a física relativística de Einstein para sustentar suas ideias.

Minha diferença com Smith está no fato de que afasto a bifurcação filosófica ainda antes dele, porque também nego a dicotomia das duas cidades de Agostinho de Hipona, não aceito a trindade, e sustento que o Reino de Deus é deste mundo, para que haja a necessária unidade Monoteísta, da Ciência e da Filosofia. Smith, por sua vez, inicia seu argumento com a rejeição da dicotomia cartesiana entre res cogitans e res extensa, ele nega a dualidade entre o corpo ou a matéria e a mente, afirmando que essa é “a fatídica hipótese da 'bifurcação' que embasa – e, de certa forma, determina – o Weltanschauung da ciência moderna”, concluindo que “esse pressuposto cartesiano não pode ser comprovado, seja por argumentos filosóficos, seja por métodos científicos” (Wolsgang Smith. A sabedoria da antiga cosmologia. Trad. Adriel Teixeira, Bruno Geraindine e Cristiano Gomes. Campinas, SP: Vide editorial, 2017, p. 36 – negrito meu).

Após profundo e elaborado argumento científico e filosófico, considerando que a relatividade não aceita parâmetros absolutos que possam determinar a questão, uma vez que a velocidade orbital da Terra não pode ser detectada, diante dos resultados do experimento Michelson-Morley, usados por Einstein para formar sua famosa teoria, Smith declara:

Mas enquanto a Astronomia contemporânea é implacavelmente oposta à hipótese geocêntrica, a Física pura não o é. De acordo com a relatividade geral, é até mesmo permissível tomar a Terra como um corpo em repouso: como Fred Hoyle aduziu, a teoria resultante 'é tão boa quanto qualquer outra, mas não melhor'. A relatividade implica que a hipótese da Terra estática não é incompatível com as leis da Física e não pode existir prova experimental que a contrarie. É claro que a Física como tal não pode afirmar essa hipótese, mas também não pode negar sua validade. (…) Assim, no que diz respeito à Física, o modelo geocêntrico permanece viável” (Idem, pp. 247-248 – negrito meu).

A relatividade, como expressão do livre-arbítrio, permite que escolhamos nossas referências, usando os dados disponíveis, respeitado o limite da velocidade da luz, segundo aquela teoria. Pelas informações de que dispomos podemos optar por uma ou outra cosmovisão, em que são acrescentadas hipóteses que transcendem o que conhecemos, que estão fora de nosso cone de luz relativístico, para que seja possível completar as lacunas da ciência decorrentes daqueles dados que ignoramos, que desconhecemos.

Nesse ponto, as informações que possuímos indicam que as constantes fundamentais da natureza, como as forças gravitacionais, elétricas e nucleares, incluindo as estruturas atômicas e moleculares, expressam um equilíbrio cósmico muito delicado, conhecido como sintonia fina da natureza, tendo permitido o surgimento da vida, o que é conhecido como “coincidência antrópica”, apontando para uma posição especial do homem no universo, tal como dita o Cristianismo, e sua cosmovisão.

Para fugir dessa hipótese desconfortável, a proposta adotada pelos físicos foi a criação de muitos outros universos, a teoria do multiverso, usada inicialmente para resolver o enigma do “gato de Scrödinger”, a partir da teoria de Hugh Everett, o qual introduziu “universos paralelos” na proposta científica, decorrentes da divisão do universo em dois a cada mensuração quântica. A consequência dessa cosmovisão é dada por Smith:

“Claro que isso acarreta a noção bizarra de que o próprio observador se dividiu em dois: um que encontra o gato vivo e outro que o encontra morto. O mais extraordinário, na verdade, é que a teoria de Everett tenha sido levado a sério na comunidade de físicos e (…) está hoje entre as principais concorrentes do mundo da Física” (Idem, p. 325).

Isso significa que para não aceitar que nosso mundo é especial, e que temos uma posição única no cosmos, foi desenvolvida a ideia, que por princípio não pode ser provada, de que existem infinitos universos, e que porque existem infinitos universos um deveria ser propício para a vida, e esse um, por acaso, é o nosso.

Como se pode ver, cosmovisões distintas acarretam consequências diversas no desenvolvimento das ideias, o que vale também para o Direito, que sofre o embate de visões de mundo contrárias, com conceitos diferentes de dignidade humana, como esboçado no artigo “Fundamento e dependência do Direito” (http://emporiododireito.com.br/leitura/fundamento-e-dependencia-do-direito), porque o homem é digno, por uma visão de mundo, por ser filho de Deus, Sua imagem e semelhança, ou porque … deu (muita, mas muita) sorte na evolução, teoria esta que ainda precisa explicar por que o que deveria ocorrer em trilhões e trilhões de anos, o desenvolvimento de organismos complexos, ocorreu em muitíssimo menos tempo.

Toda cosmovisão tem uma ideia de Direito com ela compatível, sendo função da Filosofia organizar essas ideias de forma coerente. Na visão tradicional Cristã, o homem tem posição especial no cosmos e deve dominar a criação, inclusive os animais. Nessa perspectiva, são os homens que têm direitos e deveres, porque toda a criação gira em torno da humanidade.

De outro lado, existe a ideia de que o homem é apenas um animal que pensa demais, cujo cérebro se desenvolveu além do necessário, e isso gerou pensamentos e fantasias, no que se incluem a religião e o mundo espiritual, e no Direito a ideia de dignidade seria diferente, sendo sustentada atualmente a existência de direitos dos animais.

Não se nega a importância da vida animal, que deve ser respeitada, como consta na proposta de mundo Cristã, por Francisco de Assis, o protetor dos animais, ao sustentar desde a idade média uma concepção mais sutil de Vida e de uma profunda conexão entre os seres vivos, e mesmo com a natureza inanimada.

O conceito de Vida do Cristianismo, outrossim, é superior ao das demais cosmovisões, porque distingue a própria Vida, que é una e imortal e se manifesta no corpo vivo, do vivo, que morre, porque para o Cristianismo existe uma Vida eterna, além da já conhecida vida do corpo perecível, que, em verdade, não é tão conhecida assim pela ciência materialista. Mostrando sua consonância com a ideia cósmica atual, decorrente da Revelação da orgânica quântica, a visão de mundo de Cristo entende haver um só Corpo e um só Espírito, uma unidade universal fundamental. E como Francisco de Assis percebeu muito bem, essa unidade inclui o mundo animal, que não pode ser abusado, para não ocorrer prejuízo à unidade da Vida, e consequentemente à humanidade.

Portanto, mesmo que os animais não sejam coisas inanimadas, como tudo mais que existe na criação, os animais devem, como no filme Avatar, respeitosamente servir à Vida, que tem na humanidade seu ponto culminante, e daí porque os direitos são conferidos apenas às pessoas, direitos esses que de forma reflexa alcançam os animais, como no caso de se proibir que sofram maus tratos ou tratamento cruel, vedação justificada para que não ocorra a violação à consciência Cristã, que sofre com o mal causado às outras pessoas e às demais manifestações da Vida.

Também pela bilateralidade do Direito, atribuindo direitos e deveres recíprocos às pessoas, não há que se falar em direitos dos animais, porque haveria necessidade, para que os animais não fossem absolutos, isto é, apenas portadores de direitos, que também lhes fossem impostos, de algum modo ou em momento próprio, deveres, pela aquisição de capacidade ou responsabilidade após seu desenvolvimento, como no caso de feto ou crianças. O Direito está ligado à contenção dos instintos, do egoísmo, o que os animais, por suas limitações, não podem fazer por si mesmos, ao contrário dos homens, pois estes atingem a consciência e o autocontrole pela educação, e a capacidade de aprendizado humano é praticamente inesgotável. Quando um dever é violado, há necessidade de responsabilização ou sanção, conceitos que se vinculam à noção de consciência da ilicitude, e isso leva ao complicador da ideia do direito dos animais, sobre como serão exigidos os deveres dos animais...

 

Imagem Ilustrativa do Post: Untitled // Foto de: aninhallima // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/aninhallima/4131689264

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura