“Has de resistir al mal con la fuerza, pues de lo contrario te haces responsable de su triunfo”. MAX WEBER
Por que o poder Legislativo se exime continuamente de estabelecer um conjunto eficaz de medidas e dispositivos normativos para tratar de erradicar a corrupção, minimizar seu alcance e castigar todos os indivíduos que obtêm um benefício pessoal com essa prática que é – ademais de grotesca, doentia e perversa – ilegal, ilegítima e inumana? Por que as instituições que efetivamente dispõem das condições favoráveis para combater energicamente a corrupção seguem em sua grande maioria torpes e apáticas com relação a este tipo de prática que debilita tanto as bases da igualdade e da vida social comunitária como a eficácia mesma da liberdade e da cidadania?
Por duas razões que até uma criança de cinco anos seria capaz de entender (clamava Groucho Marx): a primeira, porque é mais prático, útil e beneficioso apaniguar e patrocinar os “mais favorecidos pelo sistema” do que proteger e eliminar a miséria dos “menos favorecidos pelo (mesmo) sistema”; a segunda, porque é mais cômodo e simples resguardar, apadroar e maximizar o “injusto enriquecimento” do que intentar combater, remediar ou minimizar o “injusto empobrecimento”. Surpresos?
Motivos para estar perplexos há de sobra, mas as surpresas seguramente serão menores das que cremos ou fingimos perceber. Que levante a mão aquele que ainda se surpreende com algum “escândalo” de corrupção. Ninguém? Comecemos por isto.
Que a estas alturas e com o que já chegamos a ver nos impressionemos quando nossos legisladores pagam um alto “custo de oportunidade” apreciando uma infinidade de propostas e projetos de leis imprestáveis e absurdamente supérfluos, ao contingente ou materialmente inútil, é um indício claro de nossa apavorante ingenuidade (quero dizer, aquilo que poderiam estar fazendo de realmente útil, mas não o fazem porque estão investindo uma grande quantidade de tempo, dinheiro e recursos públicos em outras atividades inúteis). É como se o leitor (a) tivesse uns quantos vizinhos dados ao sicariato e famosos pela eficácia de suas execuções por encargo e ainda se assombrasse cada vez que lhe chegasse rumores de que eles mataram a outro ontem pela tarde. Somos almas cândidas, uns otimistas incorrigíveis e crédulos empedernidos.
Talvez por essa razão se use toda a artilharia contra os legisladores (e políticos) e se diga tão pouco desses “empreendedores” que vão untando, a destro e sinistro, maquiavélicos malabarismos para adulterar suas competências constitucionais, tergiversar suas funções institucionais e enfraquecer a confiança dos cidadãos não somente na Administração Pública, senão também no próprio conjunto do Estado de Direito. O que não devemos perder de vista é que entre alguns de nossos legisladores há demasiada estupidez, mediocridade e ignorância, e que não são poucos os espúrios interesses pessoais, corporativos e/ou políticos no mercado do poder. Outros, mais cínicos e extraordinariamente funcionais, cultivam com primor a distância entre a ação e a dissertação: com a mão direita prometem, apontam e acusam, enquanto a esquerda a mantêm aberta no bolso e a utilizam discretamente quando se lhes oferece alguma recompensa na penumbra.
Claro que tudo isso não são mais que descrições facilmente percebíveis desde um ponto de vista externo, quero dizer, não constituem nenhum insulto, senão um simples diagnóstico. Mas também convém colocar-se um pouco no ponto de vista interno; isto é, tratar de situar-se na psicologia do legislador e na sensação que transmite de que prefere viver em um País apodrecido e corrupto, em uma cultura que sistematicamente menospreza o papel corrosivo da impunidade. E o mais peculiar de tal atitude subjetiva é a evidência de que alguns legisladores não costumam ser conscientes de que as normas da moral a que chamamos civilizada e as leis de um sistema jurídico a que consideramos democrático proíbem veementemente este tipo de conduta.
Afinal, quem, em seu sano juízo, não sabe que a ausência de mecanismos eficazes no combate à corrupção afeta principalmente a cidadania, atenta contra os direitos fundamentais, enfraquece a república, destrói a institucionalidade democrática, impede a igualdade de oportunidades, o exercício das liberdades e acentua as desigualdades? Que tipo de legislador é esse que constantemente engendra delírios legislativos tão inúteis como irrelevantes, e pretende impor à sociedade que se submeta a eles sem nenhuma resistência e com cego acatamento? Que classe de interesses promíscuos, enfermidade mental, lesão cerebral ou trauma psicológico padecem esses “representantes da vontade do povo”? De verdade crêem nossos legisladores que se pode andar pelo mundo minimizando os abusos da corrupção no “labirinto das oligarquias” do Estado e desprezando a evidência de que é necessário trabalhar como loucos para combatê-los? Donde está o mítico Legislador, aquele que tem a consciência moral de que deve lutar diariamente para manter o bom funcionamento do Direito, das instituições jurídicas e das regras importantes da democracia?
Parece que nossos legisladores têm uma acentuada admiração pela moralmente repugnante “cacocracia” (pelo poder dos maus, dos piores), um estranho tipo de situação em que há uma muito difundida predileção pelos intercâmbios medíocres que se mantêm ao menos enquanto ninguém se queixe da situação: algo assim como uma silenciosa preferência pela mediocridade e/ou pelas normas que regulam os intercâmbios sociais da pior maneira possível. (G. Origgi)
Por certo que a uma toupeira resulta inútil falar de cores. E grande parte de nossos legisladores são cegos como toupeiras, com cegueira moral incurável. Parece que para entender a inquietante gravidade da corrupção que infecta as instituições públicas se requer um “estudo sobre a cegueira”. Mas para remediá-la é suficiente (e imprescindível) que os meramente míopes deixem de votar e/ou se recusem a aprovar às cegas qualquer proposta legislativa que ameace o marco normativo que exige prevenir e castigar toda e qualquer forma de corrupção.
Do contrário, ficará a impressão de que o Congresso Nacional é o lugar do mundo que Satanás elegeu para pôr em marcha o final dos tempos: uma forte incapacidade moral para a responsabilidade e o comprometimento ético-social em um sistema de relações e de organização no qual os interesses pessoais, os laços e as fidelidades pessoais, corporativas e /ou políticas contam mais que qualquer consideração institucional, jurídica e de interesse geral.
Por um lado, porque o sentido do Estado de Direito, isto é, constitucional e democrático, é mais vasto que qualquer tipo de oportunismo político e algo muito mais nobre e complexo que os sombrios e desleais interesses de determinados legisladores. Por outro, porque a eventual “boa vontade” ou as “melhores intenções” de alguns bons legisladores não bastam por si sós para garantir o acerto moral de suas respectivas condutas. Depende também, e sobretudo, de seus atos e suas consequências, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece ou é inapropriada, é muito provável que a intenção ou a boa vontade desses bons legisladores seja uma farsa.
Pois bem, dizia antes que Lúcifer pode estar detrás de toda essa manobra. Somente um gênio do mal pode dar tão depressa com a fórmula capaz de gerar uma mescla de passividade, apatia e de confessa ignorância ou negligência com relação à própria essência de nossa forma de ser, de estar e de atuar. Sinistro panorama este em que a orgia da corrupção no Brasil (um fato) e a impunidade (um sintoma exposto à vista de todos) são um fenômeno tão evidente que somente a prova do contrário resultaria relevante.
Parece que para os legisladores pátrios a ingente necessidade de normas e instituições à prova de vilões e corruptos tem o mesmo significado que para um cego representa a beleza de um crepúsculo: um conto, uma metáfora, nada mais. Os casos de corrupção se dilatam e a falta de vontade e disposição político-legislativa para desenhar e aprovar leis dirigidas à investigar, julgar e punir com contundência a prática da corrupção não somente constitui a principal causa da pavorosa e inquietante anarquia moral que infectam as instituições públicas, senão que também profana continuamente nossa comum, consensual e intuitiva concepção de justiça.
Não fazer nada baixo essas circunstâncias, não evitar ou se opor ao mal quando pode fazê-lo, se converte em grave e implacável injustiça, como outra qualquer que possa cometer um Estado moderno. Empregar estratégias de evasão e distração para evitar a evidência dos fatos, eludir a responsabilidade e seguir ignorando a situação real em que nos encontramos é olvidar-se que conhecer a verdade, conhecer a crua realidade e ver as coisas tal como são, não requer uma grande dose de inteligência senão, e sobretudo, honradez, dignidade, sensatez e coragem para atuar em consequência (em lugar de escusar-se pela forma delirante em que atuam ou negar-se a admitir e/ou lamentar-se pelo que está ocorrendo). Para dizê-lo de uma forma franca: se os legisladores não advertem da situação ou não logram encontrar ofensiva a dura realidade da corrupção e suas implicações, não é porque careçam de informação, senão porque se negam a enfrentá-las, porque animados pela covardia e respaldados pela indecência optam por ignorá-las de forma deliberada.
Apesar do difícil que resulta imaginar e entender o poder devastador e destrutor da estupidez humana, desde qualquer conjunto de situações aberrantes que derivam da carência ou degradação de normas, a anomia “es la que oprime y la ley la que libera” (Lacordaire). “Horrendos legisladores” – como diria o escritor Rolf Hochhuth – os que se curvam aos caprichos de seus donos políticos, da ignorância deliberada[1] e da injustiça passiva (J. Shklar).
[1] Para ajudar a esclarecer a ignorância deliberada dos membros do poder Legislativo podemos recorrer ao exemplo de uma “mulher com tuberculose”, utilizado por Sartre para explicar sua teoria acerca da má-fé e a ignorância deliberada. A mulher se nega a reconhecer que padece tuberculose apesar de ter todos os sintomas: perda de peso, sudorese noturna, dores no peito, produção de catarro, febre, cansaço, falta de apetite, emagrecimento e escarro com sangue. A mulher considera cada sintoma por separado, negando-se a reconhecer seu significado coletivo, e se enfrasca em atividades que não lhe deixam tempo para acudir ao médico, atividades que a distraem de fazer as eleições que requer sua situação. Seus sintomas a situam no umbral de um conhecimento e acontecimento perigoso, mas ela elege a ignorância porque não quer assumir a responsabilidade de ter que lidar com sua tuberculose, buscar uma cura para ela, etc., que esse conhecimento e situação exigem. Em sua negativa a afrontar e combater a corrupção e a impunidade, em sua distração e evasão da responsabilidade, o comportamento dos legisladores é similar ao da “mulher com tuberculose” de Sartre: “não sabem em que mundo vivem” (G. Cox).
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