Corpos femininos, direito, civilização

15/03/2023

A formatação burguesa trajou os homens de modo uniforme; às mulheres, permitiu que se distinguissem no vestir. Também parece fato que as mulheres se trajam umas para as outras, discutem suas roupas, sugerem-se e se criticam entre si.

Os homens olham tudo genericamente, não distinguem um corte de cabelo, um adorno novo, nada; têm um olhar quase indiferente, beirando a descortesia, sobre essas sensíveis peculiaridades da mulher. Mulheres se fazem cada uma, homens são conformados à generalidade.

Numa ocasião em que eu compunha o governo do meu estado (LHS), houve um evento que reunia perto de quinhentas pessoas. Havia um número equivalente de homens e de mulheres. Na recepção, ganhamos camisetas com o logotipo governamental.

Todas as camisetas eram iguais. Dia seguinte os homens estavam com a roupa tal e qual a recebeu. As mulheres, não. Cada uma delas havia customizado a sua, dado o seu jeitinho. Desigualaram-nas com laços, recortes, decotes, aberturas, nós, tranças.

Às mulheres se instruiu a ornar seus corpos. Como não temos um corpo, mas somos um corpo, melhor dizer que as mulheres se ornam a si mesmas. Os corpos femininos aprenderam a se fazer sedutores. Atuam no se diferenciar e se fazer atrativos.

Aos homens não se ensinou estabelecer distinção na aparência. Supondo-se ativos, mas agindo em resposta à atração que um corpo feminino lhe provoca, o corpo masculino vai ao corpo da mulher e começa um ritual de aproximação e apossamento.

O homem quer se apossar. Dedica cuidados, garante o sustento, oferece segurança. Quer exclusividade. O homem objetifica a mulher, fazendo dela não um objeto de amor, mas um objeto enquanto tal. E a tem, ou deseja ter, como posse sua.

Essas coisas deveriam estar vencidas pela civilização. Em parte, foram superadas, mas há um subjacente que permanece. Claro, nossa cultura vem do catolicismo medieval que controlou corpos femininos, matando-os, inclusive, por 1700 anos.

Eram assassinatos públicos, fazendo espetáculo que modelasse o feminino social aceitável. Esse horror se conserva na prática individual de muitos homens do mesmo modo que nas relações de poder ainda assentadas no modo masculino de pensar.

“Homem tranca esposa em casa e ateia fogo. Os gritos de socorro da mulher chamaram a atenção de vizinhos. Um deles entrou em luta corporal com o acusado para retirá-la da residência” (Notisul, 04ago14). Corpos masculinos combatem. Do resultado, depende a sorte de uma condenada por comportamento.

“Em toda Istambul, outdoors que exibiam corpos de mulheres foram vandalizados, desencadeando debates intensos sobre as formas femininas no espaço público. [...] E elas discutem. As mulheres na Turquia enfrentam-se por causa de anéis, bordados e tatuagens, sem contar os véus e o comprimento das saias” (Elif Shafak, FSP, 22jul14).

“Santa ‘feia’. A imagem de Nossa Senhora de Caravaggio não agrada devotos na serra gaúcha; rejeitada, santa será trocada” (Paula Sperb, FSP, 01ago14). Relações de poder forçam uma forma feminina na Turquia islâmica. No Brasil católico, a formatação dominante de beleza não reconhece uma “santa” fora do “padrão”.

Lembro-me que uma menina brasileira (Albertina) recebeu o status de santa por parte do Vaticano. Não havia a estampa da garota, então o “povo de deus” a criou à imagem e semelhança dos tempos atuais: um corpo erotizado. Houve veto da Sé. A figura foi dessexuada.

Por todas as partes, em todos os tempos, às mulheres se impôs lugar, forma e condição: “Japão ainda tenta tirar mulheres de casa. Esforços, no entanto, esbarram em questões culturais e econômicas” (FSP, 01ago14).

Bem, elas dão seus próprios jeitos. Por menos, maneiram a camiseta desengraçada que recebemos no evento governamental. Insubordinações ao standard se me parecem um drible no padrão com demarcação de personalidade.

Niellma Oliver registra sutis diferenças nas suas aproximações amorosas: “enquanto ele senta com pernas cruzada, eu sento de modo tradicionalmente masculino” (Facebook). Os costumes formatadores, ainda que com excessivo vagar, vêm sendo superados.

Luta social, protagonismo das mulheres. Alice Bianchini contribui com a 4ª edição de Lei Maria da Penha – aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero, Saraiva. O mundo, com mais recusas à repressão, está ficando melhor.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Bloco das Mulheres na Luta Contra a Violência do Estado n Dia da Mulher - Belo Horizonte - 08/03/2013 // Foto de: Fora do Eixo // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/foradoeixo/8540489540

Licença de uso: https://www.pexels.com/creative-commons-images/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura