Corazón Partío: a alteridade como princípio da mediação familiar

11/03/2016

 Por Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes - 11/03/2016

“Cada pessoa tem uma percepção (podemos chamá-la de percepção construída) da situação à qual ela “pertence”. Essa percepção é a “realidade”, daquela pessoa. Outra, na mesma situação, também tem uma percepção da “realidade”, mas essa “realidade” é particular dessa pessoa. A “realidade” existe somente como uma “realidade” de quem a percebe. A mesma situação “exterior” pode vir a tonar-se muitas “realidades”. Não pode ser dito de nenhuma “realidade” que ela é a melhor do que as outras. São todas igualmente “reais”.”

ANDERSEN

Términos conturbados de relações conjugais, falta de afeto, falta de cuidado, abandono material são alguns do exemplos de situações que todos os dias são trazidas ao Judiciário. Os conflitos familiares, além de serem problemas jurídicos, são, antes de tudo, feridas da alma. Muitos corações destroçados buscam na prestação da tutela jurisdicional a vingança, o troco do amor não correspondido.

Triste escolha!!!

Nenhuma sentença de mérito, por melhor que seja a intenção do julgador, irá, por si só, abrandar o furor de um coração machucado.

Segundo Spengler[1], unidos pelos conflitos, os litigantes esperam por um terceiro que os solucione. Espera-se pelo Judiciário para que diga sobre quem tem mais direitos, mais razão ou quem é o vencedor da contenda. Trata-se de uma transferência de prerrogativas não democrática, que, ao criar “muros normativos‟, engessa a solução da lide em prol da segurança, ignorando que a reinvenção cotidiana e a abertura de novos caminhos são inerentes a uma decisão democrática.

O Novo Código de Processo Civil, atento a estas necessidades, traz significativos avanços no campo do Direito de família. Utilizou pela primeira vez uma expressão do campo da psicanálise, “sujeitos” do processo, como título do livro III, introduzindo um significante novo para a relação processual; segundo, porque criou um capítulo específico para as ações de família (Cap. X — artigos 693 a 699); e, terceiro, porque introduz novos significados e significantes ao culto da sentença: “Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxilio de profissionais de outras áreas de conhecimento para mediação e conciliação” (artigo 694).[2]

A Mediação é um método por meio do qual uma terceira pessoa, imparcial, especialmente formada, auxilia as partes a ampliarem a comunicação por meio de uma maior compreensão das raízes dos conflitos que se apresentam. A conseqüência da mediação é a assunção de maior responsabilidade das partes na condução de suas vidas, sendo o acordo um dos possíveis desdobramentos mediação.[3]

A mediação familiar apresenta-se como uma alternativa mais vantajosa, mais próxima e menos dolorosa, de tratamento dos conflitos familiares, justamente porque é um procedimento interdisciplinar que pretende conferir aos seus envolvidos autonomização e responsabilização por suas próprias decisões, convidando-as à reflexão e ampliando escolhas alternativas. É não adversarial, pois pretende desconstruir impasses que impedem a comunicação. Especificamente no âmbito familiar a mediação é o processo que, através do uso de técnicas de facilitação aplicadas por um terceiro interventor numa disputa, estabelece o contexto do conflito existente, identifica necessidades e interesses, mediante recursos advindos da psicologia e da assistência social, produzindo decisões consensuais, posteriormente traduzidas em um acordo levado ou não à homologação.[4]

Mas não basta pensar a Mediação Familiar isoladamente. O sucesso da mediação está subordinado, necessariamente, à percepção e respeito do “outro”. Assim, MEDIAÇÃO e ALTERIDADE são aliados no tratamento dos conflitos familiares.

O conceito de Alteridade possui uma perspectiva pluralística, que não se enquadra em esquemas generalizantes. Para o presente texto a acepção mais adequada seria a de caráter filosófico, que entende a alteridade como o reconhecer-se no outro, apesar das diferenças físicas, psíquicas e culturais.

Ao querer julgar o outro são utilizados categorias e conceitos de conhecimento, criados a partir de experiências e vivências daquele que julga. Pela Alteridade entra-se ao mundo do outro tal como ele é e não como se quer que ele seja.

A Alteridade é fenômeno de caráter relacional, uma construção psicológica em torno da relação entre o eu e o outro.[5] Qualquer relação é uma realidade que para existir depende da outra.[6] Assim o caráter relacional é o campo de cultivo da alteridade. A existência do Eu, a partir da relação com o outro permite ao indivíduo ter a consciência de si, pois, somente através da mediação de outros o eu pode refletir sobre si mesmo.[7]

Como a relação com o outro é um dos elementos que constrói a visão de si mesmo, identidade e alteridade são indissociáveis e são ligadas por relação dialética, pois não somente a identificação com o outro interfere na construção da identidade, mas também a diferenciação do outro. Deste modo, o processo de inserção social do indivíduo acontece pelas identificações e pelas diferenciações, por meio das quais se estabelece a fronteira psicológica entre os limites do eu e do outro.[8]

A constituição do mundo moderno, ou pós-moderno, apresenta para a sociedade uma convivência nem sempre pacífica entre os grupos, inclusive as famílias, e faz da alteridade um conceito fundamental para a superação e resolução de conflitos.[9]

Os conflitos familiares, antes de serem conflitos de direito, são essencialmente afetivos, psicológicos, relacionais, antecedidos de sofrimento. Logo, para uma solução eficaz, é importante a observação dos aspectos emocionais e afetivos. O meio adequado para a solução de conflitos familiares deve passar, inicialmente, pela compreensão positiva dos problemas, visto que, nesses casos, é necessário a manutenção dos vínculos. Para a solução de conflitos familiares faz-se necessário a possibilidade de diálogo e de escuta. Imprescindível o respeito mútuo, o que muitas vezes, teoricamente, seria impraticável.[10]

A ideia fundamental da mediação é a de sempre ser um instrumento que abra a possibilidade para o diálogo transformador, no qual as pessoas terão a oportunidade de conhecer e serem reconhecidas, de serem protagonistas, de se responsabilizarem, de se colocarem no lugar do outro, de se individualizarem, de se reconhecerem como pessoas capazes de conviver com as diferenças tendo consciência de que as dificuldades e conflitos fazem parte da vida e que cada pessoa tem uma “visão de mundo”.[11]

Assim, a Alteridade diz respeito à atribuição ao outro da qualidade de também ser um eu. Deve, portanto, ser considerada também como princípio importante para construção de um novo prisma na relação da Mediação Familiar, pois a concepção dos outros como meros objetos de interesse impede a compreensão de que todos são iguais, dificultando a verdadeira resolução do conflito, alvo da Mediação Familiar.

Para além da visão objetificante (que percebe o outro como objeto de interesses), há como considerar o outro de uma maneira que não o torna objeto, que o concebe como Eu, numa relação de encontro, que não se limita a interesses.[12]

Enfim, a Mediação Familiar, na relação dialética entre familiares, faz com que todos enxerguem o outro “Eu” detentor de direitos a serem preservados. Nestes processos de interação, o alvo é a tentativa de fazer com que o outro não esteja condenado a permanecer estranho, mas que possa tornar-se “meu semelhante”[13].

Melhor então mediar... Ou continuaremos cantando com Alejandro Sanz... Tiritas pa este corazón partío... Tiritas pa este corazón partío... Até a próxima semana!!!


Notas e Referências:

[1] SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisção à mediação: por uma outra cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010.

[2] PERERIRA, Rodrigo da Cunha. Novo CPC traz impactos significativos no Direito de Família. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mar-06/processo-familiar-cpc-traz-impactos-significativos-direito-familia

[3] CENCI, Andreia Katia. Mediação Familiar: Um método de facilitação para resolução de conflitos sem a demora dos Judiciários, com benefícios para ambas às partes. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/media%C3%A7%C3%A3o-familiar-um-m%C3%A9todo-de-facilita%C3%A7%C3%A3o-para-resolu%C3%A7%C3%A3o-de-conflitos-sem-demora-dos-judic

[4] SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisção à mediação: por uma outra cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010.

[5] MACHADO, Hilka Vier. HERNANDES, Cláudio Aurélio. Alteridade, expatriação e trabalho: implicações para a gestão organizacional. Rev. adm. contemp. [online]. 2004, vol.8, n.3, pp. 53-73. ISSN 1982-7849.

[6] GUARESHI, P. Alteridade e relação: uma perspectiva crítica. In: ARRUDA, Angela (org.). Representando a alteridade. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

[7] JOVCHELOVITCH, S. Re(des)cobrindo o outro: para um entendimento da alteridade na teoria das representações sociais. In: ARRUDA, Angela (org.). Representando a alteridade. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

[8] MACHADO, Hilka Vier. HERNANDES, Cláudio Aurélio. Alteridade, expatriação e trabalho: implicações para a gestão organizacional. Rev. adm. contemp. [online]. 2004, vol.8, n.3, pp. 53-73. ISSN 1982-7849.

[9] MOLAR, Jonathan de Oliveira. Alteridade: uma noção em construção. In: Identidade e Pluralidade Cultural. Coletânea de textos didáticos (Orgs.) FREIRE et. al. Campina Grande: SEE/PB – Gráfica União, 2012:37-47.

[10] PRUDENTE, Neemias Moretti. A mediação e os conflitos familiares. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 52, abr 2008. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2536>. Acesso em mar 2016.

[11] MULLER, Fernanda. Divórcio e mediação familiar: uma visão sistêmica/construcionista. Dísponível em: http://www.institutofamiliare.com.br/download_anexo/virginia-alves-d--avila--2013---divorcio-e-mediacao-familiar-uma-visao-sistemica-construcionista.pdf

[12] PEREIRA, Pedro Henrique Santana. Três princípios para uma ética ambiental. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 120, jan 2014. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14184>. Acesso em abr 2015.

[13] RICOEUR, P. O si-mesmo como um outro. São Paulo: Papirus, 1990.


Sem título-1

. Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes é graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (2002) e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2005). Doutoranda pela Universidade do Vale do Itajaí. Atualmente é professora do Instituto Catarinense de Pós Graduação, advogada pela Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina e professora da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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