Cora Coralina, toda a beleza da simplicidade

09/02/2017

Por Luiz Ferri de Barros – 09/02/2017

Cora Coralina (1889-1985), filha de um desembargador nomeado por D. Pedro II, e depois casada com um advogado, somente teve notícia da existência da gramática quando seus filhos estavam no ginásio. Ela mesma estudou só até a terceira série do curso primário, o que não a impediu, pelo contrário, de tornar-se uma das mais importantes poetas brasileiras. Ao ler o livro de gramática ginasial que um de seus filhos trouxera para casa, chegou à conclusão de que se tivesse de escrever seguindo aquelas regras simplesmente não escreveria.

De forma complementar e mais “analítica”, digamos, declarou em entrevistas que sua poesia libertou-se quando a rima e a métrica deixaram de ser obrigatórias, o que neste sentido a aproxima do modernismo – ao menos quanto à liberdade de forma.

Suas principais características são a simplicidade do texto, tanto nos poemas quanto nos contos, o cotidiano como tema, e o retrato da vida no início do século passado, em especial nas cidades interioranas de Goiás, onde nasceu, mas também do interior de São Paulo, onde morou por muitos anos. Suas poesias são coloquiais e os contos vazados em linguagem poética.

Em estilo simples, os escritos remetem a memórias pessoais, familiares e das gentes dos lugares que descreve, atingindo, em certos casos, a dimensão imemorial das histórias folclóricas que ninguém sabe de onde vieram ou como se originaram.

Começou a escrever ainda moça e publicou contos e poemas, esporadicamente, em algumas revistas literárias. No entanto veio a publicar seu primeiro livro, “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, apenas em 1985, aos 75 anos de idade.

Dois pequenos textos introdutórios deste volume servem para entender seus propósitos:

RESSALVA

Este livro foi escrito por uma mulher que no tarde da Vida recria e poetiza sua própria Vida

Este livro foi escrito por uma mulher que fez a escalada da Montanha da Vida removendo pedras e plantando flores

Este livro: Versos ... Não Poesia ... Não um modo diferente de contar velhas estórias.

AO LEITOR

Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso.

É o que procuro fazer, para a geração nova, sempre atenta e enlevada n a s estórias, lendas, tradições, sociologia e folclore de nossa terra. Para a gente moça, pois, escrevi este livro de estórias. Sei que serei lida e entendida.

O substrato imemorial que permeia seus escritos é calcado na realidade daquilo que viveu ou daquilo que lhe contaram na infância seus antepassados. É extraordinário o efeito que aflora dos relatos de uma mulher de 75 anos, em seu primeiro livro, e de idade ainda mais avançada nos outros, ao narrar, por exemplo, aquilo que lhe contava a bisavó quando criança.

A precisão e fidelidade de seus relatos levaram sua literatura a ser considerada histórica e sociológica, testemunha de uma sociedade e um tempo que não mais existem. Ela se refere à sua infância e a seu tempo de moça como uma fase de transição histórica e social originada pelo 13 de Maio, a Abolição, que acarretou profundas transformações sociais e econômicas, levando famílias como a sua à pobreza.

Com simplicidade, Cora Coralina dedica-se a todos os temas de sua memória e de sua terra. De seu baú surgem histórias de antigamente, que uma mulher forte conta com lirismo, bom humor e sabedoria.

As fotografias e as entrevistas em vídeo que temos dela mostram uma mulher de bastante idade. Mas jamais a vejo como velha. Projetando o sentido de seus escritos à sua pessoa, e ao tempo em que era menina, e moça, de onde colheu sua maior inspiração, vejo-a antes como uma anciã sábia que nunca abriu mão de sua autenticidade e de sua visão arguta do mundo.

Em Estórias da Casa Velha da Ponte, livro de contos publicado postumamente, em que a escritora descreve o casarão em que nasceu, e onde hoje existe um museu em sua homenagem, Cora Coralina usa a palavra “ancianidade” logo de início, desta forma:

CASA VELHA DA PONTE ...

Olho e vejo tua ancianidade vigorosa e sã.

Revejo teu corpo patinado pelo tempo, marcado das escaras da velhice. Desde quando ficaste assim?

Eu era menina e você já era a mesma, de paredes toscas, de beiradão desusado e feio, onde em dias de chuva se encolhiam as cabras soltas da cidade. Portais imensos para suas paredes rudes de barrotins e enchimento em lances sobrepostos salientes

É como se ela falasse de si mesma. Desde jovens, ou meninos, a poeta já era a mesma para nós: sempre a vimos assim, marcada pelas escaras da velhice. Mas o que dela transcende e emana é uma ancianidade vigorosa e sã. Tecnicamente, gramaticalmente, ancianidade e velhice são sinônimos. Mas para ela não são, se quisermos conhecer o Coração Encarnado de Cora.

Cora Coralina foi o pseudônimo que desde moça adotou Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas para diferenciar-se das outras Anas, suas conterrâneas. A cidade de Goiás, antiga capital do estado, tinha como padroeira Sant´Ana, razão pela qual muitas meninas ao nascer recebiam o nome Ana. Não querendo que a autoria de seus escritos fosse creditado a outra das Anas, adotou o pseudônimo que, segundo ela, significa Coração Encarnado, em alusão ao fato de que desnuda seu coração em seus escritos e em homenagem ao rio Vermelho, que corta a cidade passando rente ao casarão em que nasceu.

Ela teve seis filhos e ficou viúva ainda moça. Para sustentar a prole, foi incansável trabalhadora. Entre outros ofícios, vendeu livros de porta em porta, linguiça e banha de porco que preparava em casa, e, por fim, ao retornar a sua cidade natal, onde morou novamente na Casa Velha da Ponte do Rio Vermelho, um casarão do Século XVIII, onde nasceu, foi doceira por mais de vinte anos. Eram famosos os seus doces de abóbora, laranja, figo e outros, que vendia de porta em porta recitando suas poesias. Essa mulher simples julgava-se melhor doceira que poeta e afirmava que fazer doces era também uma forma importante de expressão.

Quando, cerca de 15 anos após a publicação de seu primeiro livro, em 1979 foi “descoberta” e elogiada por Carlos Drumond de Andrade, Cora Coralina encontra a consagração como escritora. Tinha, então, seus bons 90 anos de idade e, a partir daí, o reconhecimento bateu à sua porta para torná-la conhecida Brasil afora.

Em vida a escritora publicou três livros. Recebeu o título Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Goiás e o “Prêmio Juca Pato” da União Brasileira dos Escritores como intelectual do ano de 1983. Muitos outros livros surgiram após sua morte.

Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas faleceu em 1985, aos 96 anos. Cora Coralina segue viva no panteão da nacionalidade, permanecendo como exemplo de energia, força e simplicidade.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Ano 6. Nº 27. São Paulo, fevereiro de 2017.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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