Na coluna da semana passada (ver aqui), versando sobre determinado ponto da cooperação penal internacional, foi consignado que “os olhos merecem ser voltados para a temática principalmente em tempos onde os “tempos em que vivemos” são utilizados como argumento para “legitimar” uma expansão da jurisdição penal sem que necessariamente os aspectos estruturais de base sejam levados em conta”.
Através de nossas leituras e debates, constatamos que o problema do discurso, de fato, está presente em todo e qualquer âmbito social, principalmente quando no campo do direito, onde a figura da coerção legítima, da autoridade, da ordem e da lei (em sentido lato) predomina enquanto fundamento de sua própria razão de o ser.
A globalização (num sentido geral) ensejou no rompimento de barreiras de diversas ordens. Espaços foram encurtados, possibilitando, por diversas maneiras possíveis, um contato efetivo entre distantes partes do mundo. Consequentemente, a expansão de determinadas condutas tidas como criminosas também foi um fenômeno que se fez (e se faz) presente, resultando assim numa “nova forma” de se adotar posturas ilegais enquanto se atinge diversas partes do mundo, ou seja, a transgressão hoje também rompe barreiras geográficas de maneira mais célere e eficaz.
Consequência jurídica disso é a legítima e devida preocupação dos Estados em se analisar o fenômeno a fim de se adotar medidas justas de tratamento do problema. Dado o fato do rompimento de limites geográficos em determinadas condutas transgressivas e a soberania existente em cada Estado, tem-se a necessidade do estabelecimento de um diálogo entre os países envolvidos pelo fenômeno, ensejando numa possibilidade concreta de tratamento da questão no âmbito judicial envolvendo dois ou mais Estados.
Esse é, numa exposição simplista, um dos motes que dá o amparo para os tratados de cooperação penal internacional. Ocorre que em não se debruçando sobre o tema com a devida parcimônia, cautela e reflexão, abre-se espaço para que discursos inflamados ganhem cena, resultando no estabelecimento unicamente de premissas retóricas que acabam servindo como substrato daquilo que acaba se efetivando dito como “combate ao crime”.
“O crime rompe barreiras, portanto, é preciso que a persecução penal também rompa, visando combater de maneira eficaz todos os criminosos que, por subterfúgios, alcançam êxito em praticar o mal para além de um único país”- esse é um exemplo do tipo de discurso que impera hoje nos fundamentos que acabam servindo como base para o ímpeto da cooperação penal internacional. Em nome da “luta contra o crime”, há toda uma fala de autoridade presente no debate (que padece de uma boa dialética, dada a pouca exposição que se tem sobre o “outro lado da moeda”) que leva a romper não apenas barreiras limítrofes geográficas, mas também jurídicas, abarcando inclusive questões principiológicas, vez que há todo um movimento para se rediscutir pontos de base que regulam e norteiam as relações internacionais no âmbito processual penal.
Dentre os pontos que atualmente vem sendo cada vez mais atacados pelo discurso que visa o expansionismo das garras da “tutela penal” através da cooperação penal internacional, mencionam-se aqui os princípios que estabelecem a soberania dos Estados e a dupla incriminação necessária como requisito para se possibilitar a extradição. Essas são questões que acabam sendo vistas como barreiras impeditivas de se efetivar uma cooperação concreta, pois impossibilitariam o pleno exercício do “combate contra o crime”. Parcela significativa das poucas vozes que vem tratando sobre o tema, apontam como ilógico o princípio da dupla incriminação enquanto requisito para a extradição. Não veem razão justificadora para a necessidade de uma mesma conduta ser considerada como crime em ambos os países envolvidos no processo de extradição (requerente e requerido), sendo necessário mitigar inclusive a soberania dos Estados a fim de que a persecução possa ser eficaz. Relegam-se determinados princípios em prol do bom combate, não havendo qualquer tipo de preocupação devida para com o principal interessado na adoção de medidas de cooperação penal internacional.
O interesse passa a ser dos Estados, não sobrando espaço para se falar em interesses, direitos e garantias daquele que sofre as consequências das medidas de cooperação. Nos discursos inflamados pouco ou nada se fala dos fatores principiológicos que dizem respeito ao investigado, ao acusado, ao concernido. Antes, o que impera no discurso são quase sempre palavras de ordem, argumentos de autoridade e frases de efeito que seduzem e convencem.
Outro ponto nevrálgico que merece destaque é a busca pelo aumento daquilo que se chama de cooperação administrativa. Ao se estabelecer como premissa o fato de que depender do crivo do Judiciário para que sejam recebidas, aceitas, cumpridas e efetivadas as medidas de cooperação penal internacional, resulta em demora injustificada, atrapalha a eficácia dos procedimentos e se traduz em excesso formalismo burocrático, tem-se todo um movimento que visa fazer com que várias matérias que passam pelo crivo do Judiciário não mais assim funcionem, ensejando no deslocamento desses procedimentos para o âmbito administrativo, facilitando assim o cumprimento das medidas de cooperação penal internacional, vez que estabelecidas e procedidas entre entes administrativos, ou seja, podendo ser cumpridas sem que determinados regramentos sejam observados.
O problema quase sempre é maior do que aparenta. Pior quando não se apresenta enquanto um problema. É a ordem do discurso que acaba por legitimar tal situação, fazendo com que passem despercebidos importantes institutos que deve(ria)m regular a matéria.
A cooperação penal internacional é um campo que vem ganhando cada vez mais fôlego. O ímpeto persecutório que rompe cada vez mais barreiras, sem que muitas vezes se leve em conta os nortes principiológicos devidos e necessários, acaba se autolegitimando em decorrência do discurso adotado. Em nome da ordem, da desburocratização, do combate contra o crime e da eficiência, convence-se da necessidade da expansão das possibilidades de se adotar determinadas medidas com a inobservância de princípios que fundamentam procedimentos, direitos e garantias. Eis o problema do discurso.
Notas e Referências:
[1] Produção fruto das pesquisas de grupo do projeto “Comparatismo e os Limites da Cooperação Penal Internacional”, pela UNINTER, sob orientação do professor Rui Carlo Dissenha
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