Convite a um processualismo constitucional democrático: o CPC - 2015 e o dever de fundamentação das decisões judiciais

09/04/2016

Por Diego Crevelin de Sousa e Lúcio Delfino - 09/04/2016

Ninguém está descobrindo a pólvora ao denunciar o descompasso que existe entre a normatividade constitucional e a prática da fundamentação das decisões judiciais. É suficiente relembrar que grassa, por vários setores do Judiciário, o entendimento de que o juiz não está obrigado a responder todas as questões suscitadas pelas partes quando já tenha fundamento suficiente para embasar a decisão.[1]

Avocando a função contrafática[2] de correção de anomalias constitucionais, incólumes em décadas de atuação do Judiciário brasileiro, o CPC/2015 trouxe a lume o art. 489, § 1º, incisos I a VI, cujo teor indica hipóteses em que as decisões judiciais não serão tidas por fundamentadas. Mas o dispositivo legal não foi recebido exclusivamente com encômios, porquanto despertou insatisfação de setores representativos da magistratura brasileira. A Associação dos Magistrados do Brasil – AMB, a Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE e a Associação de Nacional dos Magistrados do Trabalho – ANAMATRA, oficiaram à Presidência da República pugnando pelo veto do artigo. Inclusive se reuniram com o Ministro da Justiça para tratar do assunto. Segundo divulgado pelo sítio eletrônico da AMB, “a nossa preocupação é com o impacto que esses itens vão causar no congestionamento da Justiça. Atualmente, temos quase 100 milhões de processos em tramitação no país. Cada magistrado julga, em média, 1,5 mil processos por ano. O Judiciário está no limite”[3]. Ainda conforme as referidas entidades, seu pleito justificar-se-ia porque tais dispositivos “terão impactos severos, de forma negativa, na gestão do acervo de processos, na independência pessoal e funcional dos juízes e na própria produção de decisões judiciais em todas as esferas do país, com repercussão deletéria na razoável duração dos feitos”[4].

Felizmente, a Presidente da República sancionou o dispositivo. Mas isso não foi o bastante para que tais nichos – que, não incluem, nem representam, todos os nossos juízes – tenham se dado por vencidos. É que, sancionada a Lei 13.105/2015, encontros de magistrados foram realizados e resultaram na edição de enunciados cuja utilização, como parâmetro interpretativo, resultará no esvaziamento do conteúdo do art. 489, §1º, com inevitáveis reflexos deletérios nos arts. 7º, 8º e 10, todos do CPC/2015[5] –  vale sublinhar que o exemplo referente a elaboração de enunciados tem sido seguido por muitos tribunais brasileiros. Embora os pedidos de veto não tenham se voltado diretamente contra estes últimos comandos legais, a verdade é que não sobreviverão proficuamente em caso de neutralização do art. 489, § 1º., dado que há entre eles uma conjugação funcional inquebrantável.

O mais importante, porém, é sublinhar o que realmente esteve (diante do pedido de veto) e está (diante dos enunciados aprovados em encontros de magistrados) em jogo: a própria normatividade da Constituição Federal.

A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito no qual todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente (art. 1º, p. único, CRFB). Se o povo é o titular do poder e o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, deve-se reconhecer que o arquétipo constitucional brasileiro consagra também o modelo de democracia participativa, vertido, amplamente, na garantia de participação, direta ou indireta, do cidadão no processo de formação das decisões públicas. É, só por isso, correto sustentar que poder estatal legítimo é aquele cuja prática ocorre em conformidade com diretivas adotadas e aceitas pela sociedade, derivada da consensualidade dos ideais, dos fundamentos, crenças e ideologias, tudo a desembocar na elaboração da própria Constituição, efetivo referente lógico-jurídico-hermenêutico de todo o sistema normativo. Por vivermos em uma sociedade plural, que não se assenta sobre uma tábua de valores homogeneamente compartilhados, a única fonte possível de consenso é a Constituição, fruto que é do poder constituinte originário (e, pois, do povo).

Consequentemente, no Estado Democrático de Direito as atividades públicas e as decisões delas oriundas adquirem legitimidade se quando forem conformes aos vetores fixados constitucionalmente, desde uma junção criteriológica das posturas teóricas substancialistas e procedimentalistas[6]. Daí ser apenas aparente a tensão entre jurisdição e democracia: sim, porque se é verdade que aos juízes falta representatividade democrática (afinal, não foram eleitos pelo povo), não é menos correto que o processo, conformado ao modelo de democracia participativa, é (deve ser) um ambiente democrático onde os resultados dele oriundos não decorrem do labor solitário da autoridade jurisdicional (solipsismo judicial), sendo igualmente fruto do empenho dos demais envolvidos (partes e seus advogados, Ministério Público etc.), que participam e influenciam na construção do provimento jurisdicional do qual são destinatários. Na verdade, as partes são simultaneamente coautoras e destinatárias da decisão. É esse ambiente processual participativo que confere legitimidade à atuação jurisdicional.

Nessa ordem de ideias, decorrência natural da democracia participativa positivada constitucionalmente é o caráter dialético do processo judicial, assegurador de posição ativa do cidadão na formação das decisões públicas. A Constituição impõe o acatamento ao modelo de democracia deliberativo-procedimental, instituidor da abertura dos centros de poder que asseguram aos interessados, independentemente de qualquer consenso, a sua participação na formação das decisões por intermédio de um módulo processual desenvolvido em contraditório paritário, compreendido como garantia de influência e não surpresa (= direito de debater sobre todos os tópicos relevantes das questões a decidir e de influenciar na construção das decisões judiciais), a cujo respeito não pode se esquivar o julgador[7].

Essa infusão de seiva democrática no âmbito da atividade judicial apresenta-se possível apenas se se encarar o contraditório com feições que superem aquela de cunho meramente formal. Encontra-se defasada a noção de contraditório como garantia de dizer e contradizer (bilateralidade da audiência), endereçada aos litigantes como informação acerca dos atos processuais que se sucedem no curso procedimental e como resistência a esses mesmos atos, mediante impugnações, produção de provas, contraprovas e requerimentos. Ele deve acumular feição substancial, de asseguração de um ativismo também das partes, que lhes permita influir nos conteúdos (fáticos e jurídicos) das decisões judiciais – as partes não apenas participam do processo, mas animam seu resultado.

Na medida em que se reconhece o direito de influir no convencimento do juiz, fica claro que o contraditório assume outra feição: controlar o poder de julgar. Sim, pois se as partes têm o direito de influir no convencimento do julgador fica fácil perceber, de um lado, que este está obrigado a considerar o diálogo processual no instante em que exarar o provimento, prestando contas às expectativas alimentadas pelas partes ao longo do procedimento, e, de outro lado, que não pode decidir sobre qualquer questão que não tenha sido previamente submetida ao contraditório. Com isso colabora-se para o desígnio, igualmente democrático e legitimador, de obstar arbítrios provenientes do órgão jurisdicional, combate-se a discricionariedade judicial, afronta-se a ausência de transparência e de previsibilidade, aniquilando às chamadas decisões-surpresas, que só se coadunam com o arbítrio e dizimam o ideal democrático[8].

Daí fica fácil antever que essa concepção do contraditório redimensionará, também, o conteúdo do dever de fundamentação das decisões judiciais. Como adverte Lenio Streck, o dever de fundamentar as decisões (e não somente a decisão final, mas todas) está assentado em um novo patamar de participação no processo, conectado ao controle mesmo das decisões, a depender de uma alteração paradigmática do papel das partes: o protagonismo judicial deve soçobrar diante de uma adequada garantia do contraditório[9]. Em outros termos, pode-se afirmar que o contraditório limita a cognição do juiz e baliza a extensão da fundamentação nos seguintes moldes: i) o que não passou pelo contraditório não pode ser objeto de decisão; ii) tudo o que foi submetido ao contraditório (questões de fato e de direito) deve ser objeto de manifestação do juiz, na fundamentação da decisão.

Eis o entretecimento inexorável entre contraditório e fundamentação das decisões, demonstrando que o esvaziamento do conteúdo normativo do art. 489, §1º abate inexoravelmente as potencialidades do contraditório substancial explicitado nos arts. 7º, 8º e 10, CPC/2015. Ou seja, o contraditório não será efetivo sem o correlato dever de fundamentação minudente, enquanto essa fundamentação não será profícua se o contraditório for mantido como mera bilateralidade da audiência – daí a conjugação funcional adrede referida. É na interação dinâmica e virtuosa entre contraditório e fundamentação das decisões que se terá um processo efetivamente democrático e participativo. Fora daí, o que se terá é mais do mesmo inautêntico praxismo, hoje desgraçadamente imperante no Brasil.

Nada mais evidente, afinal pouco adiantaria atribuir perfil forte/substancial ao princípio do contraditório sem, em conjunto, redimensionar as coordenadas do dever de fundamentação, dado que só é possível saber se as partes tiveram efetivas chances de influir no convencimento do juiz, e que não foram surpreendidas, caso o julgador demonstre, motivadamente, que oportunizou o debate, ali enfrentando, um a um, todos os argumentos e todas as provas apresentados pelas partes, indicando, com a precisão possível, como e em que medida eles tiveram, ou não, aptidão para convencê-lo. Aliás, não é debalde advertir que convencer não é a mesma coisa que influir: influi aquilo que é levado em consideração na tomada de decisão e convence aquilo que define/conforma a tomada da decisão, sendo certo que o contraditório assegura influência, nunca convencimento – este depende, sempre, da qualidade dos argumentos e demais elementos instrutórios, de acordo com o valor que lhes for racionalmente atribuído dentro do contexto de uso.

Não bastasse isso, o direito é linguagem vertida em texto e todo texto demanda interpretação. Daí que a importância da fundamentação também está em que nela o juiz deve demonstrar que decidiu juridicamente, e não por pressões externas ou mesmo com base no seu próprio senso de justiça. Esse dever mostra-se ainda mais sensível no contexto da aplicação de princípios e de normas abertas (cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados), pois, além de ser necessário franquear às partes a oportunidade de participarem eficazmente da reconstrução do sentido normativo dessas proposições jurídicas, elas são, por sua elevada indeterminação, terreno fértil para toda sorte de voluntarismos, subjetivismos, discricionariedades e autoritarismos. Daí porque a imposição de uma fundamentação exauriente e analítica, que efetivamente dialogue com as partes, representa salutar mecanismo de controle e de contenção do poder de julgar.

Não é por outra razão que vários dos enunciados aprovados no Seminário da ENFAM revelam-se incorretos. A título de exemplo:

i. o enunciado n.1 dispõe que “entende-se por “fundamento” referido no art. 10 do CPC/2015 o substrato fático que orienta o pedido, e não o enquadramento jurídico atribuído pelas partes”. Esse enunciado está fincado no adágio iura novit curia próprio do racionalismo, que equivalia lei e norma. Porém, ele perde qualquer sentido diante da evolução das teorias da norma e da interpretação, enfim do caráter problemático do direito e do modelo de democracia participativa estampado na CRFB. O juiz não é mais o ditador solitário do sentido do direito. Essa atividade deve ser dialogada com as partes, que serão afetadas pela decisão. E o enunciado em questão ignora isso;

ii. outro enunciado da ENFAM é o de n.5, que dispõe: “Na declaração de incompetência absoluta não se aplica o disposto no art. 10, parte final, do CPC/2015”. Trata-se de algo teratológico, com a devida vênia. Primeiro, porque nega escancaradamente o que dispõe o art. 10, CPC/2015, bem como tudo aquilo que a doutrina mais qualificada e a jurisprudência comparada já vêm produzindo acerca do contraditório substancial. Segundo, parte da falsa premissa de que as hipóteses de competência absoluta sempre demandam pouco esforço cognitivo. Ora, não faltam casos de conflito de competência que ocupam a pauta dos juízes e tribunais pátrios – inclusive das Cortes de cúpula. De modo que a singeleza das hipóteses de competência absoluta não passa de uma caricatura. Seja como for, o cabimento do contraditório não pode oscilar em razão da maior ou menor complexidade da questão a decidir. Ademais, o enunciado em liça atenta claramente contra o disposto no art. 9º, CPC/2015, segundo o qual nenhuma decisão será proferida antes que as partes sejam ouvidas, salvo nas exceções que ele mesmo prevê, dentre as quais não está o reconhecimento da incompetência absoluta. No fundo, tais enunciados, este e o anterior, tentam criar hipóteses absurdas, e sem base normativa, de inaplicação dos arts. 10 e 489, CPC/2015;

iii. ainda mais estarrecedor é o enunciado n. 13 da I Jornada sobre o Código de Processo Civil de 2015, realizada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 18a. Região: “AINDA QUE SE REPUTE POR CONSTITUCIONAL, REVELA-SE MANIFESTAMENTE INAPLICÁVEL AO PROCESSO DO TRABALHO O DISPOSITIVO DO NOVO CPC QUE EXIGE FUNDAMENTAÇÃO SENTENCIAL EXAURIENTE, COM O ENFRENTAMENTO DE TODOS OS ARGUMENTOS DEDUZIDOS NO PROCESSO PELAS PARTES. O inciso IV, do §1º, do artigo 489, do Novo CPC, ao exigir fundamentação sentencial exauriente, é inaplicável ao processo trabalhista, seja pela inexistência de omissão normativa, diante do caput do artigo 832, da CLT, seja pela flagrante incompatibilidade com os princípios da simplicidade e da celeridade, norteadores do processo laboral, sendo-lhe bastante, portanto, a clássica fundamentação sentencial suficiente”. Se no Estado Constitucional, “em termos jurídicos, nada pode ser se não for constitucionalmente legítimo”[10], o enunciado é simplesmente absurdo. Ao mesmo tempo em que reconhece a constitucionalidade do dispositivo, nega a sua aplicação por ser incompatível com o processo trabalhista. Ora, como se a Constituição devesse ser interpretada à luz do direito infraconstitucional. Mais, como se os “princípios” do direito processual do trabalho – de duvidosa existência e normatividade! – pudessem definir a extensão e profundidade dos direitos fundamentais processuais estampados expressamente no rol do art. 5º, CRFB.

Eis o ponto fundamental: quando o CPC/2015 disciplina contraditório e fundamentação das decisões judiciais ele não promove qualquer inovação na ordem jurídica pátria, limitando-se a explicitar pormenorizadamente (desenhando, para os que não entenderam) a normatividade desde-já-sempre decorrente da CRFB. Fique claro que não estamos diminuindo a importância da novel legislação, no ponto. Muito pelo contrário! Entre nós, infelizmente, o “dever-ser” constitucional vem padecendo da mais solene (e impune!) inefetividade: lá se vão 26 anos sem absorção da normatividade das garantias do contraditório e da fundamentação das decisões, ambas tão caras e essenciais ao processo democrático! Ora, se precisamos de um artigo de lei que expresse com detalhes o conteúdo substancial daquelas garantias (e precisamos mesmo!), então que assim seja. É o legislador apontando equívocos graves da praxe forense, ensinando os profissionais do direito a atuarem, declarando sem peias que estamos fracassando ao insistir em negar a força normativa da Constituição.

O que estamos a dizer é que, com relação aos dispositivos por nós já indicados, a pretensão das associações de magistrados (e igualmente a de diversos tribunais do país, empenhados nesse frenesi enunciador) não está apenas contra o CPC/2015: conscientemente, ou não, ataca frontalmente a própria CRFB. E não é possível que em pleno Estado Democrático de Direito, cuja função é também controlar os atos do poder, parcela da magistratura pretenda enfraquecer ou manter o habitus de flagrante violação das garantias processuais fundamentais. Logo, não há razão legítima para a liberação dos juízes dos deveres de respeitar o contraditório como garantia de influência e não surpresa e de fundamentar minuciosamente suas decisões, seja qual for a instância em que atuam, mais ainda num sistema normativo que a cada dia valoriza e fortalece provimentos vinculativos.

Consequentemente, não convence invocar a celeridade para justificar o veto e muito menos a edição de enunciados flagrantemente contrários aos dispositivos produzidos democraticamente pelo parlamento. A razões são nada menos que evidentes:

i. um processo não deve ser célere, mas ter duração razoável (a CRFB não se refere à celeridade, e sim à duração razoável: é preciso antes de interpretar ouvir o que o texto normativo tem a nos dizer), o que pressupõe o tempo necessário ao exercício das garantias processuais fundamentais em sua interação dinâmica. E não dura razoavelmente o processo que solapa os espaços-tempos necessários para uma adequada efetivação do contraditório e da fundamentação das decisões;

ii. não se está obrigando o juiz a analisar fundamentos absurdos, mas a analisar os fundamentos apresentados. Repare bem: em si mesmo considerado, um fundamento não é bom ou ruim; um fundamento é um fundamento. A qualificação de ser pertinente ou impertinente depende, sempre, de sua análise à luz dos elementos do caso concreto; antes e sem isso ele não pode ser adjetivado. Portanto, quando o juiz diz que um argumento é infundado é porque o analisou! O trabalho intelectivo já foi feito e agora só resta externar as razões da sua conclusão. E convenhamos, em termos de economia leva mais tempo raciocinar do que extravasar as conclusões do raciocínio... Portanto, é a intelecção e não a explicitação das razões de decidir que consome maior tempo. De modo que dispensar essa fundamentação a pretexto de reduzir o tempo da atividade decisória não só é fundamento que não se sustenta, como consiste em permitir que se decida arbitrariamente, algo intolerável no Estado Democrático de Direito;

iii. a quantidade de fundamentos apresentados pelas partes jamais foi causa de morosidade. O que pode legitimamente dilatar o tempo do processo é aquele decorrente da produção das provas necessárias ao julgamento (p.ex. perícias ou testemunhas ouvidas em comarcas distantes, via carta precatória). Por outro lado, os processos demoram injustificadamente por causa dos seus tempos mortos, normalmente provocados pelas (naturais, ou não) insuficiências pessoais e estruturais da estrutura Judiciária. Já o julgamento, em si – o período de valoração dos fundamentos e provas apresentados – é, ao menos em regra, algo de somenos importância na composição do tempo do processo;

iv. em linguagem dworkiana, o respeito ao contraditório e à fundamentação das decisões é uma questão de princípios (representam direitos constitucionalmente assegurados), enquanto a celeridade processual ambicionada pelo pleito de veto e enunciados já aprovados, vistos sob o aspecto interno (da performance ou fria eficiência)[11], é uma questão de política (definem um objetivo ou uma meta de gestão judiciária a ser alcançada). E juízes decidem por princípios, não com base em políticas![12] Portanto, invocar a celeridade, nesse contexto, é negar a normatividade da CRFB e do CPC/2015 para homenagear posturas utilitaristas. Dito de outro modo, é fazer política ao invés de direito.

Enfim, nada mais que reiterar o óbvio: pretender celeridade a qualquer preço significa apostar fichas em uma filosofia utilitarista de todo estranha às idiossincrasias da atividade jurisdicional, cuja legitimidade depende umbilicalmente do respeito ao devido processo legal. Tampouco é acertado falar em violação da independência dos juízes. Isso só seria possível se considerássemos que ela significa desprezo à responsabilidade política inerente à judicatura, como se julgadores estivessem autorizados a decidir com desprezo à integridade e coerência do direito, seguindo apelos externos ou seus critérios pessoais de justiça. Mas não. A independência não é (ao menos não exclusiva e nem primordialmente) garantia do juiz, mas do jurisdicionado, que, com ela, tem assegurado que sua causa será decidida com base no direito, ou seja, que o juiz não cederá a qualquer tipo de pressão externa (como da opinião pública(da), da moral, da religião, da economia etc.) e nem ao seu próprio subjetivismo (decido conforme minha consciência). Nessa ordem de ideias, compelir o julgador a respeitar o contraditório e a fundamentação das decisões, em seus perfis de materialidade constitucional, é afirmar, e jamais negar, a tão cara garantia de independência do juiz.

Parece claro – e não há como dizer de modo mais ameno – que a ojeriza ao art. 489, §1º, CPC/2015 é puro ranço autoritário de um exercício autocêntrico do poder, avesso à abertura democrática de produção plural e dialogada dos provimentos. Não é despropositado dizer que o Judiciário está na linha do limite. Sim, há processos demais e algo deve ser feito. Naturalmente, o caminho é estancar as conhecidíssimas causas do atual volume de demandas: sistemática violação de direitos por parte do poder público e de grande parte dos maiores fornecedores e concessionários de serviços públicos instalados no mercado de consumo. Destarte, não é bom caminho, definitivamente, sabotar o devido processo, cerrando portas para a participação efetiva dos cidadãos, que não raro têm no Judiciário a última esperança de verem realizados seus direitos, inclusive fundamentais. Aliás, anote-se algo que aparentemente tem sido ignorado por importantes setores da academia: a lei processual não é e nem nunca foi a causa significativa para o ajuizamento de demandas. Processos surgem por conta das irritações havidas no âmbito das relações materiais, e não por causa da lei processual em si. Mesmo quando a lei processual facilita o acesso à justiça – como é o caso das leis que compõem o microssistema dos Juizados Especiais – e acarreta o aumento do número de processos, o que isso revela é existência de demandas reprimidas, ou seja, que algumas tensões presentes nas relações de direito material não eram levadas ao Judiciário. Claro que, alguma medida, esses mecanismos facilitadores estimulam pretensões temerárias, sabidamente despidas de sentido. Porém, não é honesto, até por falta de comprovação empírica, identificar aí um dado substancioso no balanço final de processos em trâmite perante a justiça brasileira. Bem diferentemente, a lei processual pode, isso sim, criar filtros/óbices ilegítimos que agridem aquele direito fundamental. Tudo considerado, ninguém ignora que as causas de redução de processos são culturais. Os provimentos vinculativos, por exemplo, só renderão frutos desejados – dentre eles, reduzir o número de processos – se forem levados a sério pelos tribunais, pois ninguém ignora que o atual cenário de dispersão de entendimentos alimenta o demandismo – demandas infundadas são propostas na expectativa de encontrar um juiz que “decida conforme a sua consciência”, isto é, que siga sua opinião pessoal mesmo quando isolada ou repelida.

Por todo o exposto, justifica-se a afirmação de que o aspecto problemático envolvendo o pedido de veto e os enunciados já aprovados pelas escolas de magistrados é que eles se voltam contra a CRFB, e não apenas contra o CPC/2015. E claro, vai contra o louvável empenho legislativo de efetivar parcela importante da normatividade constitucional amiúde desprezada no dia a dia do foro. É aterrorizante, pois se trata de manter o estado da arte de violação diuturna de garantias processuais mais elementares de participação na formação dos provimentos jurisdicionais em um Estado Democrático de Direito, o que não pode ser tolerado. Repita-se: a redação minudenciada que se encontra no CPC/2015 a propósito do contraditório e da fundamentação das decisões não é fruto do acaso, e sim uma opção lúcida e consciente feita pelo legislador com a finalidade de fazer valer a Constituição. De modo que aqueles movimentos simbolizam uma triste resposta àqueles que ainda alimentam otimismo na melhora qualitativa do sistema de justiça pátrio.

É preciso insistir que o quadro é particularmente grave, pois o Judiciário exerce (deve exercer) justamente a função de guardar a Constituição a bem da cidadania, e não da conveniência de alguns dos seus membros. Se o pedido de veto já era problemático, a aprovação dos enunciados posteriormente a sanção da lei revela-se chocante. Nada mais, nada menos do que profunda demonstração de desrespeito à produção democrática do direito. É absurdo que o poder emane do povo, que o povo, por seus representantes eleitos, altere o direito positivo para efetivar a sua participação direta na formação dos atos do poder Judiciário e alguns membros deste simplesmente não aceitem se submeter à autonomia e império do Direito.

Caberá, pois, à comunidade jurídica, fiel à normatividade constitucional, exercer uma espécie de defesa intransigente dos direitos da cidadania. Mais do que nunca será necessário enunciar de modo inequivocamente claro o limite! Advogados em geral, Promotores de Justiça e, felizmente, os Juízes que não cederam ao canto das sereias deverão combater a letargia que pretende manter-se perpetuada na inautenticidade. A resistência deverá se dar tanto no âmbito institucional, através dos respectivos órgãos de classe, como no da atuação difusa do foro. E, especialmente a doutrina terá que exercer seu papel de promover constrangimentos epistemológicos (Lenio Streck), inviabilizando a manutenção do status quo inautêntico. É necessário que haja coragem para colocar o sino no pescoço do gato, demarcando quem aceita as regras do jogo democrático e quem pretende exercer um despotismo movido pelo pueril desejo de fazer valer suas predileções egoísticas.

O convite está feito. É só o começo de uma caminhada que se anuncia hostil, mas que não suporta mais qualquer adiamento. Demarcamos o nosso lugar. Avante, em busca de fixar uma democracia processual séria e efetiva. E mesmo que o CPC/2015 tenha apenas explicitado o que, no plano do dever ser, já está entre nós desde a CRFB de 1988, a superveniência da novel legislação processual estabelece um marco simbólico importante para promover uma mudança capaz de fazer com que definitivamente o novo nasça e que o velho morra.


Notas e Referências:

[1] Exemplificativamente, conferir: STJ, AgRg no Ag 607.622/RS, 4ª T., j. 15.09.2005, rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 10.10.2005.

[2] Sobre a função contrafática do Direito: NUNES, Dierle. A função contrafática do Direito e o Novo CPC. Revista do Advogado, 126. São Paulo: AASP, 2015, p. 53-57.

[3]  Conferir: http://novo.amb.com.br/?p=20285, acessado em 09.03.2015.

[4] Conferir: http://www.conjur.com.br/2015-mar-04/juizes-pedem-veto-artigo-cpc-exige-fundamentacao. Acessado em 09.11.2015.

[5] Estarrecem os enunciados aprovados no “Seminário o Poder Judiciário e o novo CPC”, realizado pela Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM, disponíveis no seguinte endereço eletrônico: http://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2015/09/ENUNCIADOS-VERS%C3%83O-DEFINITIVA-.pdf. Na mesma linha, conferir os enunciados aprovados na Primeira Jornada Sobre o Novo Código de Processo Civil realizado pela Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região, que podem ser acessados no seguinte endereço eletrônico: http://www.trt18.jus.br/portal/arquivos/2015/07/relatorio-final.pdf. Para uma análise crítica desses enunciados, especificamente daqueles aprovados pela ENFAM, conferir: STRECK, Lenio Luiz. http://www.conjur.com.br/2015-set-10/senso-incomum-febre-enunciados-ncpc-inconstitucionalidade-ofuro. Acessado em 08.11.2015. No mesmo sentido crítico, confira-se: NUNES, Dierle. DELFINO, Lúcio. http://www.conjur.com.br/2015-set-03/enunciado-enfam-mostra-juizes-contraditorio-cpc. Acessado em 08.11.2015.

[6] Sobre a proposta que busca unir posturas procedimentalistas e substancialistas, sugere-se a leitura do interessante ensaio elaborado por Francisco José Borges Motta e Adalberto Narciso Hommerding: BORGES MOTTA, Francisco José; HOMMERDING, Adalberto Narciso. O que é um modelo democrático de processo? Disponível: <http://www.amprs.org.br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1383852047.pdf >. Acessado em: 09/03/2015.

[7] ZANETI JUNIOR, Hermes. A Constitucionalização do Processo. 2ª Ed. Atlas, 2014, p. 127 e 158

[8] DELFINO, Lúcio. ROSSI, Fernando Fonseca. Juiz contraditor? Revista Brasileira de Direito Processual, 82. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 229-254.

[9] Hermenêutica, Constituição e Processo, ou de “como discricionariedade não combina com democracia: o contraponto da resposta correta. In MACHADO, Felipe Daniel Amorim. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coords.). Constituição e Processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Del Rey, 2009, p.17.

[10] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10ª Ed. Livraria do Advogado: 2011, p.346.

[11] Sobre as noções de eficácia, efetividade e eficiência, por todos: FONSECA COSTA, Eduardo José da. Noções jurídico-processuais de eficácia, efetividade e eficiência. Revista de Processo, n. 121. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

[12] STRECK, Lenio. O que é decidir por princípios? A diferença entre a vida e a morte. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/senso-incomum-decidir-principios-diferenca-entre-vida-morte> Acessado: 05/04/2016.


Diego Crevelin de Sousa. Diego Crevelin de Sousa é Especialista em Direito Processual Civil (Universidade Anhaguera-Uniderp). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Professor de Direito Processual Civil e Direito do Consumidor das Faculdades Integradas de Aracruz – FAACZ, ES. Advogado. .


Lúcio Delfino. Lúcio Delfino é Pós-Doutor (Unisinos) e Doutor (PUC-SP) em Direito. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogado e professor. . .


Imagem Ilustrativa do Post: reach out // Foto de: Fred Postles // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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