Contribuições da Justiça Restaurativa para a defesa dos direitos humanos  

24/06/2021

Coluna Defensoria Pública e Sistema de Justiça / Coordenadores Gina Bezerra, Jorge Bheron e Eduardo Januário

A Justiça Restaurativa tem sido associada a um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos e técnicas que visam “tratar” conflitos e prevenir a violência através de ações que almejam “fazer justiça por meio da reparação do dano causado pelo crime” (SICA, 2007, p. 10). Esta metodologia do cuidado tem sido largamente utilizada em ordenamentos jurídicos de tradição anglo-saxã, desde os idos dos anos 1960, no trato de conflitos familiares, escolares, de vizinhança, etc. e se remetem à responsabilização do agressor, na sua conscientização, bem como no seu acolhimento e acompanhamento.

No Brasil, as primeiras experiências mais estruturadas datam de 2005[1] e seus resultados repercutiram como uma luz no fim do túnel para o desgastado modelo repressivo punitivo pátrio, cujas respostas demonstram-se deveras insuficientes para promover a pacificação social e a contenção do crime. Sua expansão ganhou impulso com o advento da Portaria nº 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No plano Global, também a ONU passou a estimular a sua adoção por meio de resoluções exaradas por alguns de seus órgãos[2].

Outrossim, a percepção geral em torno da justiça restaurativa ainda está impregnada por equívocos e incompreensões (recorrente a ideia de que se busca “apenas” o perdão das vítimas). Desse modo, a sua aplicação invariavelmente está adstrita a iniciativas para desafogar o Poder Judiciário, bem como para forjar narrativas de humanização do sistema de justiça e segurança.

Em que pese contribuir para a diminuição da recorrente judicialização de variados aspectos do convívio humano e promover direitos, a justiça restaurativa tem potencial para ir além, desde que se opere a apregoada “mudança de lentes” defendida por Howard Zehr[3] (2008) e que enseja o enfreamento das questões sociais que marcam a sociedade brasileira e estruturam desigualdades.

Este breve artigo versa sobre o debate em torno das práticas restaurativas e sua efetividade para a afirmação dos direitos humanos, esta sim, meta a ser perseguida por operadores do direito e áreas correlatas no trato dessa problemática.

Inequívoco que com a ampla adoção programas que contem com elementos restaurativos em políticas públicas de prevenção à criminalidade e com a aplicação de métodos consensuais para a solução de conflitos se obterá a tão perseguida redução do número de processos judiciais, a diminuição de custos e até a realização da justiça distributiva em casos concretos. No entanto, esta apenas não tem o condão de solucionar as profundas deformidades do nosso sistema, é preciso levar em consideração as “sombras” que marcam o cenário brasileiro, as práticas restaurativas sozinhas não alcançam a tão aguardada pacificação da sociedade.

Em especial, no contexto disruptivo da pós-modernidade[4] marcado pelo incremento da violência e onde o desrespeito maciço aos direitos fundamentais depõe contra todo o aparato protetivo criado com o advento do estado de direito. As promessas de pacificação social e de novas perspectivas para a cidadania brasileira passam a ser contestadas diuturnamente com a divulgação de indicadores desfavoráveis e episódios que comovem e convulsionam o país inteiro. A este contexto, descrito de violência generalizada são geradas violações específicas aos direitos de determinados grupos sociais, alguns dos quais excluídos desde a gênese do Estado brasileiro como crianças e adolescentes, homossexuais, migrantes, jovens negros das periferias dos grandes centros urbanos e mulheres. Aumenta o número de execuções sumárias (mais uma vez contra determinados grupos vulneráveis); o alto índice de impunidade, particularmente quando os crimes são praticados pela ação de uma elite política, de grupos de extermínio, pelo crime organizado ou por agentes institucionais, em sua maioria policiais; a insistência na utilização da tortura como método investigativo e como realidade do sistema penitenciário; a restrição da coisa pública e de sua gestão a determinados grupos sociais; a limitação dos direitos de determinadas categorias de pessoas, a exemplo dos homens, negros, adolescente e jovens que, por serem objeto de determinados estereótipos, se tornam mais susceptíveis à violência à sua liberdade e integridade, entre outras circunstâncias, este quadro tem esvaziado o conteúdo dos direitos humanos, ao tempo em que desconsidera a igualdade entre as pessoas preconizada na Constituição Cidadã.

No cenário descrito, a justiça restaurativa tem força para se erigir como corolário das mudanças que a sociedade brasileira demanda e merece. Esse amalgama de antigas tradições espirituais (cristianismo, budismo, hinduísmo, judaísmo), ancestrais dos povos tradicionais, com cara de movimento social, subverte a ordem posta ao enfatizar o trato de determinados aspectos que perpetuam injustiças.

Em um primeiro momento, as práticas restaurativas, aplicadas na fase pré-processual ou processual, buscarão sempre dar voz às vítimas, através de técnicas e metodologias que possibilitam a discussão do ocorrido, o dano causado e, principalmente, almejará conscientizar o agressor do seu ato e suas consequências, com vistas a não-repetição. As diferentes técnicas aplicadas nesse encontro entre os atingidos pelo ato com seu autor focam na reparação do dano, e a concepção da transformação, em que o modelo restaurativo é visto como forma de construção coletiva de justiça, com base nas experiências pessoais dos envolvidos. No tocante ao autor do delito, este deve ser responsabilizado e ter sua reintegração ao convívio social cuidado, acompanhado no seio de sua família/comunidade.

No limite, a justiça restaurativa tem a capacidade de apresentar justificação para os direitos humanos, na medida em que afirma a dignidade da pessoa humana, a interdependência e indivisibilidade desses modelos jurídicos complexos. Não obstante, adverte Norberto Bobbio[5] (1992) que o problema fundamental dos direitos fundamentais contemporaneamente não é tanto o de justificá-los, ou seja, uma questão filosófica, mas o de protegê-los, uma questão política, portanto. Sendo assim, deve ser parte da decisão política das diversas instâncias a introjeção das práticas restaurativas como forma de “transformar” os conflitos e para a efetivação dos direitos humanos.

A experiência da Coordenação da Infância e da Juventude do TJ/PE com círculos restaurativos no decorrer da aplicação de medidas sócio educativos apresenta resultados que alentadores. Ao reunirem os envolvidos com o ato infracional em círculo em que a comunicação é empática e livre, ofendidos se sentem abertos a se posicionar e demandar respostas do agressor, ao tempo que este se implica sob os efeitos do seu ato. Em que pese a realização dos círculos, a medida é aplicada, mas seus resultados certamente divergem de outros em que essa ação de cuidado não foi adotada.

Reitera Marcelo Pelizzoli (2016) que como “novidade” a justiça restaurativa foi posta em conceito e passa a ter um lugar na semântica institucional e social, como coisa objetiva reduzida; por exemplo, um tipo de mediação judicial ou encontro entre as partes envolvidas. Mas na verdade, trata-se de um paradigma maior e complexo, que encontra seu sentido primeiro numa Cultura de paz – a mais cara à humanidade em tempos sombrios.

 

Notas e Referências          

BITTAR, Eduardo. O direito na pós-modernidade. Revista Seqüência, n 133 o 57, p. 131-152, dez. 2008.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1996.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n. 125, de 29 de novembro de 2010. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos. Acesso em: 22 de junho de 2021.

______. Portaria n. 16 de 26 de fevereiro de 2015. Dispõe sobre as diretrizes de gestão da Presidência do Conselho Nacional de Justiça para o biênio 2015-2016.

______. Resolução n. 225 de 31 de maio de 2016. Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências.

LAFER, Celso. A Internacionalização dos direitos humanos, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005.

PELIZZOLI, Marcelo. Cultura de Paz – gênero e diversidade. Recife: Editora da UFPE, 2014.

SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão de crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

[1] Projeto da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça “Implementando Praticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” apoiou a formatação dos projetos pilotos em Brasília/DF, São Caetano do Sul/SP e Porto Alegre/RS.

[2] No 10º Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Delito e Tratamento do Delito, sob item da pauta intitulado "Delinquentes e Vítimas: responsabilidade e equidade no processo de justiça” resolução 2000/14, de 27 de julho de 2000. Em 2012o Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas edita a resolução 2002/12 com princípios básicos para a aplicação de programas de justiça restaurativa em matéria criminal.

[3] Em sua obra clássica, Zehr (2008) teoriza a Justiça Restaurativa como uma “mudança de lentes”, como um novo olhar sobre o crime, a justiça e as situações conflituosas, capaz de alicerçar uma concepção de justiça fundada nas necessidades dos envolvidos, nos vínculos que se criam com a responsabilidade pelos atos e o empoderamento que decorre desse processo.

[4] segundo Bittar (2008, p. 259) é “Importante pensar que mesmo entre os que aceitam o uso do termo para designar um estado atual de coisas, um processo de modificações que se projeta sobre as diversas dimensões da experiência contemporânea de mundo (valores, hábitos, ações grupais, necessidades coletivas, concepções, regras sociais, modos de organização institucional...), aceitando mesmo os riscos inerentes ao uso e emprego da expressão “pós-modernidade” – entende-se interessante a identificação deste processo de ruptura como modo de se diferenciar e de se designar com clareza o período de transição irrompido no final do século XX e que possui por traço principal a superação dos paradigmas erigidos ao longo da modernidade”  

[5] A síntese do processo de afirmação histórica e doutrinária dos direitos humanos na contemporaneidade foi definida por Noberto Bobbio como tendo seguido as seguintes etapas: Inicialmente, a abstração os direitos permitiu sua formulação no bojo dos processos revolucionários francês, americano, socialista; posteriormente, estes são positivados com sua inserção nos textos constitucionais modernos; com o advento da Declaração Universal esses direitos são universalizados, para finalmente passarem para uma etapa de especificação, na qual sujeitos específicos, categorias sociais inteiras passam à titularidade de direitos.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura