Contrato de convivência social

27/05/2020

Os gregos já falavam em contrato social. O que os gregos pensavam sobre o assunto, contudo, não chegou com muita relevância ao tempo que vivemos. O domínio da “explicação” católica que imperou na Idade Média abafou a cultura greco-romana. Só a partir do século XV (Modernidade) o tema foi recuperado e recolocado em discussão.

A Idade Moderna, aliás, pôs tudo em discussão. Nesse período que principia lá pelos anos 1500 como Renascimento (não há unanimidade entre historiadores sobre o começo da Modernidade) e nos alcança ocorreram eventos sociais, políticos e científicos que vêm, ainda que lentamente, confrontando e abatendo as crenças medievais.

A Modernidade partejou o argumento liberal em contraposição ao Absolutismo. O Liberalismo concebia a convivência social e o próprio Estado como resultado de um contrato estabelecido entre cidadãos que autonomamente saíam da vida em natureza (guerra permanente de todos contra todos) e se organizavam em um coletivo governado.

Liberalismo, em definição atual, é “a doutrina baseada na liberdade individual, nos campos econômico, político, religioso e intelectual, contra as ingerências e atitudes coercitivas do poder estatal” (Houaiss). Liberdade individual com governo pouco intrometido e que representasse a vontade geral era a base doutrinária do contratualismo.

Três autores principais deram as bases gerais da doutrina: Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Rousseau passou à história como “bonzinho”, ou de esquerda. Teria inspirado Karl Marx na sua propositura do estado socialista. Hobbes é visto como “mau”, ou de direita, e teria dado munição para as autocracias. Bem, não vejo bem assim. Ademais, os estados socialistas não foram em nada menos autocráticos do que as diversas modalidades de ditadura que o mundo (nós inclusive) conheceu ou conhece.

Pensar, hoje, em Estado como contrato é simplificar a complexidade das organizações políticas. Não há acordo geral, mas conflito permanente de interesses. Não existe uma vontade racionalista pondo ordem nas coisas, mas há relações de poder, com demandas conflitantes, vencidos e vencedores. Se alguém tem dúvida, basta olhar o Brasil, o lugar miserável dos seus pobres, o luxo ostensivo dos seus ricos. Claro, há países mais equilibrados, mas no geral das nações há excessiva vantagem de uma (pequena) parte diante da outra (grande) parcela da população.

Agora, se um contrato geral é improvável, a sensatez dos aproveitadores do sistema não deveria sê-lo. Para a esperteza inescrupulosa que só extrai vantagem das relações sociais brasileiras, os teóricos do contratualismo (Os Pensadores, Abril Cultural) ainda têm o que dizer. Recomendaria Rousseau: “Cada um tem necessariamente de se submeter às mesmas condições que impõe aos outros [...]. O pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade que todos ficam obrigados às mesmas condições e todos devem gozar dos mesmos direitos” (p. 40-41).

Locke, alicerce do pensamento liberal, defende ideias equivalentes: No estado de natureza não há “qualquer subordinação entre os homens que nos autorize a destruir a outrem, como se fôssemos feitos para o uso uns dos outros como as ordens inferiores de criaturas são para nós” (p. 36). Então, não se pode aceitar que uns tenham privilégios sobre outros, “porque não é qualquer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os homens, mas apenas o de concordar, mutuamente e em conjunto, em formar uma comunidade, fundando um corpo político” (p. 39).

Hobbes, muito citado mas pouco lido, foi enfático ao postular igualdade: “Embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar” (p. 75). Assim, “ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer outro” (p. 92).

O povo brasileiro requereu em muitas insurgências esses termos da vida em comum. Sempre prometidos, jamais foram entregues. Mais recentemente, a Ditadura de 64 promulgou a Lei de Segurança Nacional para enquadrar quem reivindicasse democracia; o governo petista criminalizou os movimentos de rua, tipificando-os como agressão ao Estado. Bolsonaro propala ele mesmo a violência. Vivemos em eterna tensão advinda da desigualdade que sempre contornamos. Os contratualistas, entre nós, permanecem revolucionários, o que é uma declaração de atraso.

 

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