Contraditório e o Protagonismo Processual das Partes

30/06/2018

Para Lacan, o mito é o que confere uma fórmula discursiva a algo que não pode ser transmitido, ou seja, na gramática estrutural cria-se um funcionamento caracterizado pela existência de elementos com uma relação combinatória constante que determina a construção das frases. O mito exprime de forma imaginária o que se pretende transmitir, formando assim, uma estrutura permanente no tempo[1]. O [mal] dito ‘principio do livre convencimento’ é um dos principais ‘mitos’ que exprime o protagonismo judicial no processo penal. Tal perspectiva, diga-se de passagem, extremamente autoritária esteve expressa no código de processo civil de 1973 no artigo 131 que dizia:

“O juiz apreciará livremente a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”,

Ocorre que, até mesmo no âmbito processual civil, a ‘coisa’ mudou.

O NCPC de 2015 retira a expressão “livremente”, ou seja, não mais, será livre a análise das provas, e sim, vinculada ao que as partes [Ministério Público e Defesa] apresentarem com uma real atuação na construção da decisão a ser proferida.

Dispõe o NCPC, em seu artigo 371, que:

“O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”.

Indo além, o NCPC exige que o juiz enfrente todos os argumentos deduzidos no processo, capazes de infirmar a conclusão da decisão adotada pelo magistrado, sob pena do “decisum” não ser considerado fundamentado, ex vi do disposto no inc. IV, do § 1º, do art. 489.

De fato, de acordo com o NCPC, o deslocamento do protagonismo ocorreu e, agora, Ministério Público, Advogado e Defensor é que devem protagonizar o acervo probatório que limitará a decisão que os afetarão. Conforme a análise aqui disposta, sobre o processo civil em vigor e desenvolvimento de suas estruturas, não se requer maiores dificuldades para identificar a mudança proporcionada no âmbito dos sujeitos processuais:

Surge, então, uma empolgante menção à dita cooperação processual, cuja matriz basilar seria o contraditório em sua expressão substancial, que vai além da ideia de bilateralidade entre informação e reação, revelando um sedutor mecanismo de influência na construção das decisões. Percebeu-se que, em uma democracia se constrói e principalmente, se consolida, com a efetiva participação de todos os sujeitos que atuam no âmbito processual, sobretudo a atuação daqueles que sofrerão as consequências das decisões judicias.

Inevitável, perceber que é inerente ao contraditório uma concepção democrática que eleva sobremaneira a sua função de controlar o exercício do poder jurisdicional, ou seja, a imperatividade proveniente da norma constitucional constrange o juiz a curvar-se diante dela, a respeitar seu conteúdo, a observá-la em atenção aos seus novos matizes, o que, em última análise, tende a significar mais segurança jurídica, transparência e previsibilidade, garantias no sentido de que se encontra vedada a produção de decisões em desatenção à dialética processual.

O contraditório é um tributo à liberdade das partes no processo que deve ser exercitada nos limites da lei, uma certificação de que a decisão judicial seguirá rumo previsível, alheio à surpresa e a raciocínios solipsistas. É um direito em favor dos atuantes contra o arbítrio estatal. Um verdadeiro direito fundamental e, deste modo, sua observância, mediante dever de cumprimento e de respeito cumpre ao juiz, que representa o Estado no âmbito do processo judicial.

Contudo, a despeito do Processo Civil ter evoluído neste campo, o Processo Penal ainda sofre as agruras do livre convencimento motivado, posto que o artigo 155 do Digesto Processual Penal prevê textualmente que:

“O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”

Decidir não significa escolher. Decidir deveria ser ato de Estado, e não um ato pessoal do magistrado. Quem decide é o Estado, personificado no juiz, que não deve, por isso, externar opiniões pessoais, tampouco apreciar livremente a prova como bem lhe couber. Lamentavelmente, juízes tendem a decidir por critérios pessoais.

Assim sendo, o juiz não pode [e não deve!] apreciar livremente a prova e, por conseguinte, valorá-la segundo critérios meramente subjetivos, posto que a prova produzida no processo se presta justamente para motivar o ato decisório. É através da prova que o juiz deve fundamentar sua decisão; vale dizer, pois, que o juiz deve fundamentar a razão pela qual determinada prova prevalece sobre outra; ou porque determinada prova deve ter uma valoração maior do que outra. E isso deve ser feito através de critérios objetivos, mediante a confrontação de todas as provas produzidas no processo.

Quando o NCPC retira a expressão livremente, pretende que a apreciação da prova seja vinculada, que a sua valoração seja objetiva, e que, sobretudo, a convicção do magistrado seja efetivamente induzida pela prova produzida no processo, a fim de se evitar o “decido primeiro, e somente após busco o fundamento para a decisão já tomada”.

Atualmente vivemos uma crise epistemológica. As decisões judiciais, em sua grande maioria, revelam não aquilo que a prova judicial reconstruiu, mas sim aquilo que o julgador pensa. Há quem diga, inclusive, que a sentença representa o sentir do magistrado.

Entretanto, ao decidir, o juiz deve interpretar o fato, as provas produzidas no processo, bem como interpretar a lei, devendo livrar-se, o tanto quanto possível, de suas convicções pessoais.

A função do magistrado não é dizer às partes e à sociedade o que ele, pessoalmente, pensa de determinado fato ou de determinada lei; ele exerce uma função pública e política de aplicar o direito ao caso concreto, devendo fundamentar sua decisão no direito positivo de acordo com a prova produzida no processo.

Como adverte o Professor Lenio Streck[2], “ (...) o Direito não é aquilo que o interprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, dizem que é (...)”

Esse solipsismo judicial é sentido em todos os ramos do direito, e, no Processo Penal, com certa frequência, se apresenta quando da decretação da prisão preventiva, onde, não raro, a fundamentação da segregação cautelar não é alicerçada em fatos e provas objetivos e concretos e a prisão decorre, pois, de argumentos genéricos sobre a sua necessidade, especialmente para garantir a ordem pública.

Os requisitos da prisão cautelar, como sabido, estão elencados no artigo 312 do Código de Processo Penal, e legitima-se a adoção da medida excepcional de privação de liberdade como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, para assegurar a aplicação da lei penal, e mesmo assim quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, só se legítima a decretação da prisão preventiva quando concorrer concomitantes duas ordens de pressupostos, quais sejam, o fumus commisi delicti e o periculum libertatis.

Todavia, o que se observa na prática é que a prisão preventiva vem sendo utilizada de modo temerário (e ilegal!), com vistas a punir antecipadamente e como forma de instigar a delação premiada e fortalecer a tese acusatória. Trata-se daquilo que o professor Alexandre Morais da Rosa denomina de “tática de aniquilação”, verbis

“A partir da teoria dos jogos as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou táticas de aniquilamento (simbólico e real, dadas as condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão cautelar. A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra com tática de aniquilação, uma vez que os movimentos da defesa estão vinculados à soltura. Clausewitz deixou herdeiros no processo penal ao apontar que a pressão pela liberdade ou finalizar o processo ajuda na estratégia, uma vez que atua no centro de gravidade: a liberdade. Além disso, a facilidade probatória (testemunhas e informantes com memória mais próxima da conduta, mídia acompanhando, etc.) e redução da condição do acusado a objeto (subjugação psicológica do acusado, defensor, familiares, etc.) podem ser úteis à acusação, como já apontava o Manual dos Inquisidores.” [3]

Chega a ser cansativo, repetitivo, falar que, a forma pela qual as prisões e medidas cautelares são impostas, violam, sistematicamente direitos individuais, perfazendo uma prática sem as mínimas condições explicativas, que sequer ‘insinuem’ uma possível compatibilidade com a Constituição e Tratados Internacionais. O horizonte de projeção do ato, conforme está, aponta para uma determinada classe-categoria-grupo de pessoas vulneráveis ao furor estatal. A influência econômica na execução das politicas públicas explica de forma indelével uma face dessa legislação precária e violadora, totalmente inidônea à compreensão da ‘prisão’ no direito processual penal. Desde um enfoque teórico processual penal a prisão cautelar deve ser entendida como um instituto de pleno exercício do poder estatal.

Considerando o papel político-constitucional que a prisão cautelar, precisa desempenhar, esta concepção, parece se aproximar mais da compreensão do direito processual penal como instrumento de garantia do cidadão. Não como garantia por exemplo da credibilidade da justiça. Antes que me julguem, sou crítico da concepções do Processo Civil como estruturante do Processo Penal. Mas tenho que me render que o Processo Civil mais uma vez larga em nossa frente no quesito constitucionalidade.Buscar uma alternativa para adequar as técnicas legislativas e, principalmente, as práticas judiciárias, de forma que assegurem a efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição.

Para além da elaboração teórica de direitos e garantias, faz-se necessário o desenvolvimento de uma prática processual que corresponda ao formulado, algo que transcende a própria questão jurídica, justamente por se tratar de uma constatação fática, quando as instituições públicas demonstram, sua real evolução democrática no exercício do poder, garantindo ou violando direitos

Essencial que a teorização do Estado Democrático de Direito parta de duas ideias básicas: 1 - o Estado deve ser limitado pelo direito e o 2 - poder político estatal deve ser legitimado pelo povo. Que muitas vezes protege o povo do próprio povo. No exercício do poder, em âmbito jurisdicional, percebe-se o alcance máximo de sua expressão violadora com a privação da liberdade de uma pessoa.

Não sustentamos que o Estado não deva ou não possa prender, apenas, tento demonstrar que, da forma que se prende, viola, não só o direito individual, como, também, preceitos e valores políticos, constitucionais, e processuais, desacreditando a própria legitimidade de quem exerce o poder de pender.

Por óbvio, que todo exercício de poder tem como ponto de partida uma relação de conhecimento e força, estabelecida em um dado momento histórico, geralmente, na guerra e pela guerra, ou seja, o poder político, como forma de expressão de combate.O poder político tem como função perpetuar a relação de força, por meio de uma guerra silenciosa, que foca todas as atenções nas realidades sociais de onde emanam as demandas do poder, tais como, as desigualdades econômicas, de conhecimento e demais disparidades.

Nessa perspectiva, de forma inevitável, ao tratar a sociedade, tal como, uma ilusória sociedade deliberadamente planejada pela razão utilitarista, como se fosse um sujeito hegemônico [grande sociedade], acaba-se por eliminar totalmente as individualidades dos sujeitos integrantes e, consequentemente, toda pluralidade cultural. O processo e, em particular, o processo penal, é um microcosmo no qual se refletem a cultura da sociedade e a organização do sistema político. Não se pode imaginar um Estado de Direito que não adote um processo penal democrático como seu consectário necessário.

A presunção de inocência, reconhecida atualmente, enquanto componente basilar de um modelo processual penal que queira ser respeitador da dignidade e dos direitos essenciais da pessoa humana está prevista não só na Constituição de 1988, como também, em todos os Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário. O direito processual penal, assim como, todos os ramos do direito brasileiro, está sob a luz das regras e normas insculpidas na Constituição Federal, que é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico pátrio.

Nesse sentido, Cesare Beccaria[4] em sua majestral obra já dizia: Leis são as condições sob as quais os homens, naturalmente independentes, unem-se em sociedade. Cansados de viver em contínuo estado de guerra e de gozar uma liberdade que se tornou de pouco valor, a causa das incertezas quanto à sua duração, eles sacrificam uma parte dela para viver o restante em paz e segurança. A soma de todas essas porções da liberdade individual constitui a soberania de uma nação e foi depositada nas mãos do soberano, como administrador legal.

Portanto, o Direito coordena as relações sociais, sejam elas entre os indivíduos que compõem a sociedade, sejam entre estes e o próprio Estado. O Direito Processual Penal, pois, dentro deste contexto, se apresenta como de fundamental importância, na medida em que se materializa como instrumento de efetivação das garantias individuais e, mais que isso, como um freio, um limitador de Poder Estatal na persecução penal.

É preciso ter presente que o Processo Penal é instrumento de garantia. É dentro do Processo Penal que se exerce contraditório e ampla defesa; que se materializa o juiz natural; que se evita Tribunais de Exceção. Sem que haja um Processo Penal com garantias, não se tem democracia; é dentro do processo penal que se exerce a defesa, e, como se sabe, sem direito de defesa não existe democracia.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que o Processo Penal se apresenta como instrumento de garantia ao acusado (e a toda sociedade!), serve também como instrumento legitimador do Poder Estatal (jus puniendi), pois é justamente o Processo Penal que chancela o ato decisório como legal e legítimo, pois se pressupõe que, se houve Processo Penal, todos os direitos e garantias do acusado foram respeitados.

O Processo Penal precisa ser levado mais a sério no Brasil. Datado de 1.941, a despeito das diversas alterações legislativas que sofreu, ainda carrega em seu texto resquícios da era da ditadura Vargas.

Não obstante estarmos no ano de 2018, com praticamente 30 anos de vigência da Constituição da República Federal de 1988, em sede Processual Penal ao invés de avançar no campo democrático e das garantias, retrocedemos. O Processo Penal hoje se apresenta como mera formalidade, mero verniz para legitimar um Poder Judiciário sedento por punição.

Destarte, urge a necessidade de adotarmos, de vez, um Processo Penal onde o juiz esteja em uma posição passiva, distanciado das partes e, sobretudo, da colheita da prova, a fim de que o embate e a disputa se dê somente entre os interessados, em pé de igualdade, no espaço público oportunizado pelo Processo Penal, com a preponderância de todos os direitos e garantias individuais, inclusive como forma de legitimar a atuação do Estado em matéria penal.

E em matéria probatória, surge o contraditório como verdadeira garantia das garantias, pois para um controle da observância das garantias processuais é necessário o estabelecimento do contraditório como verdadeiro garantidor das respectivas garantias processuais. Para tanto, somente haverá satisfação das respectivas garantias processuais, quando, toda e qualquer produção probatória, que tenha por finalidade comprovar uma hipótese acusatória, for desenvolvida e sustentada publicamente, de forma oral e mediante o rito processual previamente estabelecido, ou seja, através de um Processo Penal guiado pelo princípio acusatório.

Não é por outro motivo, aliás, que o Professor Tourinho Filho[5] ensina que:

“A defesa e o contraditório em qualquer processo judicial significam o equilíbrio de armas entre as partes e, além de direito fundamental da pessoa, representam a garantia da imparcialidade da magistratura e o controle externo de seus atos.”

Voltando ao NCPC e partindo para o fim dessa fala:

Basta observar a estrutura do NCPC em seus artigos 7º, 9º e 10º que dizem:

Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.

Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.

Art. 10.  O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Assim, todo e qualquer ato de exercício do poder jurisdicional, que tenha por finalidade a privação da liberdade de uma pessoa, deve seguir o seguinte procedimento:

Conclui-se, que a elaboração de políticas gerais para recrudescimento da punição, exigindo-se cada vez mais uma resposta do aparelho estatal, mediante o uso da força, está fadada ao fracasso.

Urge uma depuração de toda a legislação criminal para que, de forma inovadora, limite a tutela penal aos casos em que realmente se possa falar em ultima ratio, liberando as polícias judiciárias para a atuação perante casos, fundamentalmente, relevantes e necessários. E, sinceramente: gostem ou não, o contraditório é uma realidade processual que deve ser respeitado e aplicado.

A prisão preventiva está limitada pelos princípios de legalidade, presunção de inocência, necessidade e proporcionalidade, indispensáveis em uma sociedade democrática, constituindo medida mais severa que se pode impor ao acusado e, por isso, deve ser aplicada excepcionalmente. Desta feita, a prisão preventiva não pode ser utilizada da forma como vem sendo atualmente, ou seja, como punição antecipada, como se fosse uma tutela satisfativa da pretensão punitiva do Estado.

Dentro deste contexto, é relevante rememorar que no Processo Penal encontram-se em jogo dois interesses públicos, quais sejam, o (i) ius libertatis e o (ii) ius puniendi, razão pela qual o saudoso Joaquim Canuto Mendes de Almeida[6] pondera que:

“o poder público não litiga com o indiciado. Seria imoral que o Estado se definisse antes de julgar a verdade criminal e, assim, tivesse preferências por qualquer das atuações contrárias da lei antes do ato decisivo da justiça.”

É evidente que a decretação de uma prisão preventiva deve estar estritamente vinculada com as suas hipóteses legais de incidência, pois trata-se de medida que, tendente apenas a garantir eventual resultado útil do processo, pressupõe a existência de dados concretos passíveis de traduzir ameaça à eficácia da instrução processual ou risco à aplicação de pena.

Portanto, prestigiar o contraditório prévio, franqueando que o investigado/acusado seja ouvido antes de ser decidida a decretação, ou não, de sua prisão preventiva é fundamental e, sem dúvida, faria com que o Processo penal tivesse, efetivamente, um viés verdadeiramente democrático.

O contrário é feito, pois toda vez que a defesa formula um pedido de revogação de prisão preventiva ou impetra um habeas corpus, salvo raras exceções, a acusação é ouvida. Aliás, a distorção é tão gritante que, em uma Apelação Criminal ou em um Recurso em Sentido Estrito interpostos pela defesa, por exemplo, a acusação “fala” duas vezes, uma em primeira instância, outra em segunda, e, em relação a manifestação da acusação em segundo grau, não se faculta o contraditório da defesa.

Registre-se que a elaboração dos direitos fundamentais como garantias isomórficas entre todos os integrantes da coletividade faz a ponte entre o direito e a democracia, malgrado não se precisar, a contento, se a liberdade é limite do poder soberano ou valor fim desta vontade geral.

O Estado Democrático de Direito se apresenta como instrumento garantidor das liberdades civis e pelo respeito aos direitos humanos e às garantias fundamentais através de um sistema normativo que lhes confere proteção jurídica, sendo que referido sistema jurídico-normativo submete, inclusive, as autoridades políticas e o próprio Estado.

Registre-se, vez mais, que não há democracia sem Direito, sobretudo sem Direito de defesa, sem garantismo jurídico. Nesse sentido, Alfredo Copetti Neto[7] leciona que:

(...) a teoria do direito é a necessária premissa da teoria da democracia. Ou seja, no garantismo jurídico, democracia é, antes de tudo, um sistema de regras e garantias impostas aos diversos tipos de poder, por isso que, por um lado, se encontra empiricamente ancorada à experiência histórica do constitucionalismo democrático; por outro, aos limites e aos vínculos de direito positivo por esse imposto.

Como bem pondera o ilustre Professor Tércio Sampaio Ferraz Junior[8]:

O direito é um dos fenômenos mais notáveis da vida humana. Compreendê-lo é compreender uma parte de nós mesmos. É saber em por que obedecemos, por que mandamos, por que nos indignamos, por que aspiramos a mudar em nome de ideais, por que em nome de ideais conservamos as coisas como estão. Ser livre é estar no direito e, no entanto, o direito também nos oprime e tira-nos a liberdade. Por isso, compreender o direito não é um empreendimento que se reduz facilmente a conceituações lógicas e racionalmente sistematizadas. O encontro com o direito é diversificado, às vezes conflitivo e incoerente, às vezes linear e consequente.

Significa dizer que o Processo Penal se apresenta como instrumento necessário em um Estado Democrático de Direito, pois é através dele [e somente através dele!] que a privação de liberdade do indivíduo encontrará sua legitimidade. E dentro deste contexto, da mesma forma, uma prisão preventiva só se legitima quando for calcada de forma objetiva em uma das hipóteses legais de cabimento, por ser uma exceção à regra, que é a liberdade e, ainda assim, quando incabíveis quaisquer das medidas cautelares alternativas à prisão do art. 319 do CPP.

Registre-se, por oportuno, que o Poder Judiciário em uma democracia deve conferir máxima efetividade ao ordenamento jurídico, sobretudo aos direitos e garantias fundamentais, sendo incompatível com a função jurisdicional a suspensão/flexibilização de direitos, máxime quando essa suspensão/flexibilização se dá através da aplicação do Direito, ou seja, quando decorre de uma equivocada interpretação da norma por parte do juiz, que, ao interpretar, cria, vale dizer, reduz o texto normativo a um ato de vontade.

É importante frisar que a interpretação de uma norma jurídica não pode decorrer de um ato de vontade do magistrado, pois fosse assim o intérprete, ao interpretar, estaria criando uma nova norma na medida em que a interpretação como ato de vontade produz, quando de sua concretização, outras normas; em resumo, a interpretação seria capaz de criar Direito.

Esse problema da interpretação do direito foi questionado por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito. Não é por outro motivo, aliás, que Alexandre Fernandes Silva e Saulo Tarso Rodrigues[9] enfatizam que:

“A discricionariedade no modelo normativista kelseniano reside no fato de que o órgão aplicador poderia escolher qualquer possibilidade de significado dentro da moldura normativa, e para Streck, esta característica é tributária do realismo jurídico, dentro do qual o direito é aquilo que os tribunais dizem que é.”

Infelizmente assistimos pasmos que o resquício ditatorial, autoritário e inquisitorial ainda predomina em setores do Poder Judiciário, sobretudo na esfera penal, onde os direitos e garantias fundamentais são menosprezados, quando não ignorados.

Esquece-se que o Processo Penal é instrumento de garantia e não apenas mero instrumento de aplicação do Direito material; mais que isso, serve de instrumento de materialização de todos os direitos e garantias que a Constituição Federal confere ao acusado, estabelecendo um sistema de freios e contrapesos ao poder acusatório do Estado.

Ignora-se que a prisão preventiva é uma medida excepcional que deve ser adotada como ultima ratio, e enxerga-se o contraditório como um empecilho à satisfação da justiça. Isso é lamentável!

Não é por outro motivo, aliás, que o Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho afirma categoricamente que:

(...) mostrar que o Sistema Processual Penal brasileiro é inquisitório é despiciendo: hoje ninguém mais, em sendo sério, duvida disso! Afinal, todos estão sofrendo na carne os resultados dele! E assim não seria, por infindáveis razões, se o sistema fosse o acusatório, de todo compatível com a CR e encastelado nela, mas negado na prática[10].

Todavia, é preciso resistir em defesa (i) da integridade do Direito, (ii) do Estado Democrático de Direito, (iii) da Constituição Federal; (iv) do Direito de defesa; (v) da observância do sistema acusatório no Processo Penal; e combater, tudo que fomentar  (i) a mentalidade inquisitória do Poder Judiciário; (ii) o autoritarismo; (iii) o solipsismo das decisões judiciais; (iv) o ativismo judicial; (v) a adoção de medidas de exceção como regra.

Notas e Referências

[1] LACAN, Jacques. O mito individual do Neurótico. Lisboa: 1980.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed., rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 166.

[3] ROSA, Alexandre Morais. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos – 2.ed., rev. e ampl. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 157.

[4] BECARIA, Cesar. Dos delitos e das penas. Tradução de Neury Carvalho Lima – São Paulo: Hunter Books, 2012, p. 12.

[5] TOURINHO FILHO, Fernado da Costa. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo : Saraiva, 1997, p. 34.

[6] MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1973, p. 118.

[7] COPETTI NETO, Alfredo. A democracia constitucional : sob o olhar do garantismo jurídico / Alfredo Copetti Neto ; coordenação Alfredo Copetti Neto , Alexandre Morais da Rosa – 1ª ed., Florianópolis, SC ; Empório do Direito, 2016, p. 25.

[8] JUNIOR, Tercio Sampaio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito. 7ª edição revista e apmliada. Atlas, São Paulo, 2013, p. 1.

[9] SILVA, Alexandre Fernandes e RODRIGUES, Saulo Tarso. Hermenêutica, justiça constitucional e direitos fundamentais./coordenação de Jorge Miranda... [et al.] / Curitiba: Juruá, 2016, p. 183.

[10] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op Cit., p. 110.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Janelas de Juiz de Fora - 13 // Foto de: Leandro Ciuffo // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/leandroneumann/4874138764

Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura