Contra o relativismo e a miséria intelectual do pós - Por Atahualpa Fernandez

21/07/2017

Por Atahualpa Fernandez – 21/07/2017

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“Cuando soy débil os reclamo la libertad en nombre de vuestros principios; cuando soy fuerte os la niego en nombre de los míos”.

Montalembert

A tese central do relativismo, de mãos dadas com o pós-modernismo, é a de que toda a verdade é circunstancial e serviçal[1]. E o que é mais grave: na sequência dessa despiedada linha de pensamento, vê-se cada vez mais penetrante e influente, com força crescente e quase avassaladora, a ideia de que a apelação à  “objetividade”, à “verdade” e/ou à “racionalidade”, em algum dos frequentes sentidos que se soe atribuir a esses termos polissêmicos, é uma  ilusão – uma adesão a um ídolo mítico – ou, no pior dos casos, um esboço destinado a cobrir uma mera  “vontade de poder”; isto é, versões prevalecentes do mundo que os grupos sociais dominantes disseminam.

Mais complexo de refutar que o relativismo epistemológico, o relativismo moral[2] está sustentado por uma miríade de ideias difundida por valetudinários pensadores, cuja radicalíssima superação (pós-moderna) do universalismo, do naturalismo[3] e do racionalismo de ascendência ilustrada consiste na volta a um arquirrelativismo que esterilizou já ao pensamento continental da última mudança de século; redigo, da ideia de que tudo, absolutamente tudo, está construído pela (ou são meros resultados da) interação das distintas razões dos agentes cognitivos ou, como está em moda dizer agora, de que tudo está socialmente construído: que as razões são uma quimera, que o universal é uma fábula, que não há nada de natural ou objetivo a que se apegar, ou, o que é o mesmo, que nada “existe” independente do acordo ou o desacordo humanos.

Apesar de que é preferível viver rodeado de verdades incômodas e afrontar os fatos que de deslumbrantes ilusões e permanecer na ignorância, para muitos é melhor persistir nos delírios relativistas que insistir em alcançar uma análise da realidade de forma objetiva e racional. Essa forma de mediocridade de ideias, enaltecida pela filosofia romântica, de soluções fáceis e que considera a verdade científica como corrosiva da dignidade e não como um meio para elevá-la, lamentavelmente sempre palpitará em uma sociedade rica em egocentrismo cego, onde abundam indivíduos que creem que a verdade, a dignidade e a justiça, por exemplo, são algo democratizáveis (“se muitos estão de acordo é porque é certo”) ou, inclusive, que à verdade, à dignidade e à justiça não importa senão “minha opinião” ou a pluralidade bruta.

Estes “desvergonzados antagonistas del sentido común - recorda Harry Frankfurt – niegan, con gran energía y convencimiento, que la verdad responda a algún tipo de realidad objetiva. En consecuencia, niegan también que la verdad merezca una obligada deferencia y respecto. Insisten en que, simplemente, todo depende de cómo se miren las cosas”.  Em qualquer caso, primatas delirantes que constroem uma realidade social sem sequer considerar que existem uns limites importantes ao que o reconhecimento da subjetividade implica, uns limites relativos à margem de variação à hora de interpretar os fatos que cabe presumir; quer dizer, ignoram deliberadamente que há uma dimensão da realidade que nem sequer a mais enérgica – ou mais laxa – compreensão da subjetividade pode atrever-se a vulnerar. (H. Frankfurt)

O que mantém ao ser humano em tal desinteresse pela verdade, em tal desprezo pela realidade? O que leva ao sapiens a este tipo de aprendida e resignada indiferença? Por que a gente elege pensar de forma superficial, equivocada e insofrível? Por que alguns indivíduos abandonam os fatos, rechaçam as evidências, ignoram as provas e descuidam dos melhores argumentos quando desafiam “paradigmas” e interesses estabelecidos? Por que há pessoas que fogem como da peste de toda inquietude teórica que pressuponha o conhecimento (empírico-científico) um pouco minucioso de qualquer coisa que ocorra mais além do jogo mental de ideias, das especulações e generalizações? Já se sabe que o ridículo não mata, mas, não deveríamos ao menos tomar em sério a sensata advertência de Popper de que “una teoría que lo explica todo no explica nada”? E já que estamos: Qual é o valor da verdade em tempos sem moral?

Suponho que há vários fatores (por exemplo, pensar racionalmente implica um grande esforço, e o primeiro grande esforço que muitos preferem evitar é o de questionar-se constantemente tudo o que se dá por certo), mas parece que podemos situar seu germe em uma das teorias sobre a verdade formulada pelo sofista grego Protágoras e da qual surgiram todos os subsequentes movimentos e filosofias relativistas: a de que “o homem é a medida de todas as coisas” (Homo omnium rerum mensura est).

A partir deste axioma, com este único ponto de referência, todo o demais somente passou a ter sentido e significado em relação ao único absoluto: o ser humano. Não existem verdades universais, nem sistemas éticos (o bem e o mal são conceitos relativos que variam segundo a consciência de cada um), nem esquemas intelectuais ou filosóficos porque ninguém conhece as coisas “tais como são em si” (Kant), senão como as recria cada pessoa.

A equivocada leitura de um pensamento filosófico distorcido tem servido para intentar pôr em dúvida tudo, absolutamente tudo: desde os princípios e comportamentos éticos até a validade e vigência de uns valores aceitos e compartidos tradicionalmente como moderadores da convivência. Em realidade, uma dilatada linha intelectual (que arrancando dos sofistas, passando por Hobbes e Nietzsche, desemboca em certa pós-modernidade pretendidamente radical) sustenta que as sociedades humanas vivem permanentemente em situações extremas e variáveis e que, ante a extrema relatividade, pluralidade e permissibilidade de valores, não há qualquer possibilidade de deliberação racional[4] (de modo algum!) sobre os mesmos... Incluído o Direito.


Notas e Referências:

[1] Um bom exemplo para ilustrar o que quero dizer - isto é, de uma visão metaética subjetivista e, portanto, relativista da justiça - é a concepção adotada por Hans Kelsen: depois de assinalar que as teorias mais conhecidas de justiça são ou bem vazias ou bem remetem à ordem positiva, e de que o juízo com que julgamos algo como justo não pode pretender jamais excluir a possibilidade de um juízo de valor oposto, Kelsen afirma que a “justiça absoluta é um ideal irracional”. Parece intuitivo que este tipo de posição deve aclarar, antes de tudo, o que quer dizer que um juízo de justiça não pode pretender excluir o juízo oposto. Por certo que quando formulamos um juízo de justiça não podemos excluir a possibilidade de que outros formulem juízos de justiça opostos, como de regra ocorre com juízos de qualquer outra índole (moral ou não). Mas sim parece que estamos logicamente comprometidos a rechaçar tais juízos, ou seja, a considerá-los como falsos ou inválidos. Não é razoável supor ter algum sentido sustentar, por exemplo, “a pena de morte é injusta, mas bem poderia ser justa”. Por outro lado, o mesmo Kelsen sustenta que a visão relativista da justiça, longe de ser amoral, supõe uma moral que é a moral da tolerância e da democracia. Nada obstante, um relativista deveria admitir, para ser consistente com sua ideologia, que a tolerância e a democracia têm tanto valor como a intolerância e o autoritarismo; ou, o que é o mesmo dizer, deveria admitir que é tão justa e aceitável a indignação e revolta mundial contra qualquer ataque terrorista como igualmente nobre e justa a causa que o motivou. Isto, e somente isto, seria um relativismo “consistente” e “coerente ”.

[2] Este sustenta que os juízos morais são relativos às culturas, não são universais e, deste modo, a discriminação dos homossexuais e a opressão das mulheres nos países islâmicos radicais, a ablação feminina e outras práticas disparatadas são perfeitamente corretas, por ser corretas dentro do marco de sua cultura. Pelo contrário, um realista ético sustentaria que tais práticas são universalmente imorais ainda quando sua cultura as aceite, já que as ações são “boas” ou “más” mais além de que um grupo cultural onde se exercem considere o contrário. Deste modo, para os relativistas éticos, determinadas práticas tribais brutais não podem julgar-se porque sua cultura tribal as aceita como corretas. Qualquer questionamento fundamentado que possa fazer um moderno a uma prática tribal por mais brutal que seja é inválido, uma vez que estaríamos condicionados por nossa moral “ocidental” e civilizada. À diferença do relativismo ético, o relativismo gnoseológico-epistemológico sim é muito fácil de refutar. Para este, a verdade fática e a falsidade também se reduzem ao que o entorno cultural considere e não são universais: “a verdade é relativa”, dizem. Trata-se de algo completamente insustentável. Pensemos um pouco no que quer dizer “verdade”. Dizemos que algo é verdade quando o enunciado se ajusta ao que podemos comprovar com os fatos do mundo real, isto é, a correspondência entre o enunciado emitido e os dados objetivos da realidade que nos rodeia (H. Frankfurt). Assim, podemos definir verdade fática como o atributo de adequação aproximada de um enunciado com a realidade. Neste caso, a realidade é o que nos deve ditar que é verdade ou não (à diferença da verdade lógica). A forma de conhecer a realidade mais avançada que conhecemos é a ciência. Isto se deve a que é o único método que nos permite corrigir erros, verificar coerência, avançar e contrastar nossas ideias da forma mais sofisticada possível com a realidade, enquanto se invita a que os especialistas no campo repliquem os descobrimentos. Em alguns casos simples podemos prescindir da ciência e comprovar os fatos de modos mais simples. Por exemplo, se alguém enuncia que está chovendo em tal zona, basta com ir a observar que tão certo é. A ciência invita a isto, a observar os fatos. Segundo os relativistas, a ciência é igualmente válida que qualquer outra crença infundada. Claramente, esta postura só pode ter alguma validez dentro da larga lista de explicações relativistas e «ciências vudus» em voga no momento, embora haja gente que em verdade crê tudo isto.

[3] Não é estranho tampouco que um dos alvos deste movimento seja a biologia. Faz algum tempo já se matou a Deus, mas agora parece necessário matar a Darwin, um homem que se atreve a dizer-nos que não somos o centro do Universo, que somos só um animal mais que segue as regras da seleção natural. De que serve matar a Deus e deixar de ser obras de Deus se nos encontramos com que somos um produto mais da seleção natural? Nossas ideias de grandeza não podem tolerar isso. Não nos criou Deus e não nos criou a seleção natural. Nós nos criamos a nós mesmos, nós somos os criadores, nós escrevemos o texto e não há nada fora do texto (Derrida). Os clássicos projetaram a megalomania humana em deuses cuja principal característica era precisamente sua "humanidade". Eram deuses concupiscentes, mesquinhos e iracundos, e tinham aquilo ao que aspiramos os humanos... poder. Estavam feitos a nossa imagem e semelhança em seus desejos e gozavam do poder ao que nós aspiramos para satisfazê-los. Agora, transcendido Deus, o sapiens não necessita projetar e se considera onisciente, onipotente, senhor absoluto da linguagem que cria a realidade em que nos movemos... A velha aspiração humana de ser Deus.

[4] “Ser racional es, fundamentalmente, una cuestión de ser sensible a las razones, y las razones están constituidas por hechos y verdades obstinadamente independientes”. (H. Frankfurt)


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Borders. // Foto de: Marco / Zak // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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