Contra o relativismo e a miséria intelectual do pós - modernismo (Parte 2) - Por Atahualpa Fernandez

14/07/2017

Por Atahualpa Fernandez – 14/07/2017

Leia também: Parte 1, Parte 3Parte 4Parte 5Parte 6Parte 7

“No me interesan estos falsarios intelectuales, horros de todo contenido”.

Noam Chomsky, sobre Žižek y Lacan

Parece que, guiados pela mão invisível de Lúcifer, entramos em uma espécie de carreira sem fim até a estupidez convencional e cômoda, ao onanismo intelectual e suas complicadas facilidades, cujos principais suspeitos são o pós-modernismo e o relativismo cultural/moral, estes tipos de delírios gerados pelos defensores do pensamento débil, tão populares e sedutores que, sendo particularmente demagógicos, resultam fáceis para aparentar intelectualidade.[1]

Por um lado o pós-modernismo, que tem em maior o menor grau as seguintes características (entre muitas outras): a irracionalidade, o rechaço da tradição racionalista e a crítica aos valores da Ilustração, os abusos da linguagem[2], o desprezo a qualquer tipo de comprovação empírica de seus discursos teóricos, um relativismo cognitivo e cultural que considera a ciência como uma "narração" ou uma construção social, “la falta de fundamento  y el mal uso de terminología científica – cuyo significado, a menudo, ignoran - y, a veces, un cierto disfraz de izquierda política”. (M. Lirussi)[3]

Por outro, o relativismo moral, cuja característica é pensar que todas as posições éticas são relativas (ao lugar, ao tempo, ao contexto cultural e, muito particularmente, às sensibilidades individuais) e que, em consequência, não existe uma posição ética absoluta, racionalmente fundamentada ou universal. O relativismo moral é, em si, não uma posição ética, mas uma posição sobre a ética: em termos rigorosos, uma posição metaética.

Esta posição metaética (relativismo moral), partindo da observação da variedade de atitudes morais de um indivíduo em relação ao outro ou de uma cultura em relação à outra, apóia-se, na contramão, na opinião de que a moralidade dos atos e juízos humanos não pode ser significativamente decidida por critérios racionais independentes e naturais, senão que é relativa a e justificada pelo temperamento subjetivo das pessoas e/ou pelas posições sociais de poder desde a família ao governo, pelos costumes culturais, as leis locais, as ideologias ou as crenças religiosas predominantes em um lugar ou em uma época determinada.

E não é isso tudo. Entre outros despropósitos, este movimento anticiência engendra um inquietante não julgar: já que todos os pontos de vista são aceitáveis, todas as formas de conhecimento, todas os costumes e todas as opiniões devem ser respeitadas. Os relativistas, como os cristãos (Mateus 7:1-5), não julgam. Eles aceitam e toleram.

Mas a realidade é outra, porque entre os recursos com que contam os seres humanos para justificar suas ínfulas de superioridade hierárquica no mundo animal se acha o juízo moral; e seguramente seja o mais socorrido e evocado de todos. Em La sociedad abierta y sus enemigos, Karl Popper famosamente declarou: "La tolerancia ilimitada debe conducir a la desaparición de la tolerancia. Si extendemos la tolerancia ilimitada aún a aquellos que son intolerantes, si no estamos preparados para defender una sociedad tolerante contra el ataque de los intolerantes, entonces, el tolerante será destruido, y la tolerancia con ellos". Inerente a esta citação está a noção de que como seres pensantes emitimos continuamente juízos de valor enquanto à diferença entre pensamentos tolerantes e intolerantes.

De fato, nossa capacidade de discrimar é um traço perceptual e cognitivo evolucionado. Julgar é uma característica central de nossa capacidade para discriminar entre ideologias tolerantes e intolerantes, potenciais sócios comerciais morais versus imorais ou futuros cônjuges confiáveis ou não confiáveis. Navegar através das complexidades da vida diária é julgar inumeráveis estímulos, objetos, ideias, crenças, valores e pessoas (G. Saad). Lamentavelmente, como sucede amiúde com a linguagem, uma palavra pode ter dois significados, um dos quais é positivo e o outro negativo (por exemplo, o orgulho tem duas conotações).

No caso de "julgar", o termo se associa em grande medida com suas implicações negativas, enquanto que seu outro significado, mais neutro, em grande parte se borrou de nosso léxico coletivo. Admito que, em alguns casos, julgar é errar (sacamos conclusões errôneas sobre o mundo porque julgamos a partir do que vemos, não do que não vemos); em outros casos, a suspensão do juízo está mal quando não é diretamente imoral. Também reconheço que muitas pessoas são profundamente contrárias a compartir uma opinião, tomar uma postura ou cometer o mortal 'faux-pas' de emitir um juízo: “Deus não o queira!”. Os clichês típicos incluem "Não quero julgar", "Quem sou eu para julgar?" e "Não sou ninguém para julgar". A negativa a julgar e a capacidade de evadi-lo «ad absurdum et ad nauseam» se considera admirável, já que demonstra que é uma pessoa 'tolerante', aberta a todos os pontos de vista. Julgar é equiparado com o dogmatismo e a estreiteza de miras.

Pessoalmente, sustento que o ethos  do perpétuo não-juízo é intelectualmente desonesto e francamente covarde. Emitir juízos é uma característica integral do que nos faz humanos. A história do mundo se forma tanto positiva como negativamente pelas pessoas que julgam. Ademais, a moral perde sua eficácia social e sua dimensão comunitária quando os sujeitos bloqueiam as expressões de seu desacordo ético com as ideias, crenças, valores e condutas alheias, quando não veem razão para fazer valer aos outros e ante os outros as regras que internamente assumem e com as que orientam sua própria conduta (sempre e quando que se faça baseado em uma nutrida quantidade de seriedade, sensatez e a melhor evidência disponível).

Quando, sem motivos reais para o medo, renuncio a julgar moralmente aos demais e a expressar tais juízos em termos mais claros, estou invalidando ou relativizando insuportavelmente essa ética minha. Não se trata de buscar o heroísmo, a intolerância ou qualquer forma de exibicionismo moral (moral grandstanding, como denominam Justin Tosi e Brandon Warmke), senão de evitar a covardia e a tolerância ilimitada, pois é absoluta a antítese entre moralidade pessoal séria e covardia pública imotivada. Criamos nossa identidade ao fazer juízos de valor. Todos julgamos, todo o tempo.

Nossos cérebros evolucionaram para fazer juízos de valor e se indulgente leitor (a) tem um problema com isso, vive equivocado e/ou autoenganando-se. Dito de modo rápido para que ninguém incorra em enganos: somos uma espécie que em cada momento de vigília — e inclusive em sonhos — luta para dirigir o fluxo de sensação, emoção e cognição a estados de consciência que valoramos como bom ou mau (S. Harris), uma espécie desenhada (ou condenada) a etiquetar e julgar moralmente a conduta de nossos congêneres.

Em linguagem lhana: uma postura (metaética) que segue à deriva do verdadeiro conhecimento científico, vagando «por una selva oscura» com sua enorme massa de observações e construções mal digeridas, com um espantosamente imponente corpo de parafernália filosófica barroca e com um superlativamente avultado número de ideias de nível médio entrelaçadas que se expressam em léxicos delirantemente babélicos. Uma arma de distração massiva.


Notas e Referências:

[1] De um modo muito generalizado as pessoas se sentem bem quando lhes dizem que sua estupidez não é tão grave, que o mau é a inteligência. Que lhes digam que tudo é “normal”, que nunca estão equivocadas, senão que tem “diferentes pontos de vista igualmente válidos”. Essa demagogia nauseabunda é o que a faz tão popular nos setores não ilustrados; isto sem mencionar que a estupidez também se multiplica e que é sempre melhor não exibi-la. De mais a mais, a muralha da alucinação levantada pelo relativismo, mais ideológica que científica, não somente fomenta um tipo de pensamento ou ritual mágico em que a incredulidade recalcitrante resulta imune à evidência, senão que também promove a desfaçatez de negar o fato de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossos argumentos.

[2] Por exemplo, nos textos de oráculos como Derrida, crivados de aforismos como “Não é possível escapar da linguagem”, “O texto é autoreferente”, “Linguagem é poder” e “Não existe nada fora do texto”, ou na afirmação mais extrema de Roland Barthes de que  “O homem não existe anteriormente à linguagem, seja como espécie, seja como indivíduo”. Na verdade, só é necessário um mínimo de sentido comum para ver que a linguagem não poderia funcionar se não se assentasse sobre uma vasta infraestrutura de conhecimento tácito sobre o mundo e sobre as intenções de outras pessoas, isto é, de que as palavras sempre são interpretadas no contexto de uma compreensão mais profunda das pessoas e suas relações. No nosso caso, por exemplo, a própria existência de normas ambíguas - nas quais uma série de palavras expressa pelo menos dois pensamentos - prova que pensamentos não são a mesma coisa que uma sequência ou classes de palavras, e que estamos equipados com faculdades cognitivas complexas que nos mantêm em contato com a realidade. A linguagem, assim entendida, é a magnífica faculdade que usamos para transmitir pensamentos e informação de um cérebro para outro, e podemos cooptá-la de muitos modos para ajudar nossos pensamentos a fluir. Ademais, a linguagem não é o mesmo que pensamento, nem a única coisa que separa os humanos dos outros animais, a base de toda cultura, a morada do ser onde reside o homem, uma prisão inescapável, um acordo obrigatório, os limites de nosso mundo ou o determinante do que é imaginável. A ideia de que o pensamento é o mesmo que a linguagem constitui um bom exemplo da que poderia denominar-se uma estupidez convencional, ou seja, uma afirmação que se opõe ao mais elementar sentido comum e que, não obstante, todo mundo se crê porque recorda vagamente havê-la ouvido mencionar (S. Pinker). Mais recentemente se há visto as limitações insalváveis de afirmações do tipo “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, e até mesmo a relação estabelecida nos textos aristotélicos entre a linguagem e o sentido do justo e do injusto: determinadas observações e experimentos indicam que já outros primatas reagem como se tivessem algo parecido a um sentido de justiça, ainda que careçam de linguagem; sem linguagem pode haver compaixão, cooperação e quiçá algo assim como um sentido de justiça. Da mesma forma, nem toda cultura é linguística. Uma grande parte da cultura é independente da linguagem e se transmite por imitação não mediada por palavras: por exemplo, a cultura de diversos primatas que carecem de linguagem - como os chimpanzés ou os monos (F. de Waal) -, assim como a transmissão de determinados ofícios e a propagação das modas entre os humanos (J. Mosterín). Dito de outro modo, a linguagem é simplesmente o conduto através do qual as pessoas compartilham seus pensamentos e intenções, suas experiências de prazer e de sofrimento - enfim, a que permite o reparto da subjetividade. Com isso adquirem o conhecimento, os costumes e os valores daqueles que as cercam e no contexto da realidade em que plasmam suas respectivas existências. Como recorda Derek Bickerton, não é a linguagem somente um meio de comunicação, senão uma maneira de organizar o mundo e cuja finalidade é pôr pensamentos nas mentes de outras pessoas e extrair pensamentos das mentes de outras pessoas. E não somente isso. No que diz respeito propriamente a sua origem, por exemplo, M. Tomasello rechaça a ideia de que uma mutação tenha criado a linguagem. Para ele, a chave radica em que nos humanos evolucionou biologicamente uma nova maneira intencional de identificar-se e de entender-se com membros da mesma espécie. A continuação do processo, a partir desta única adaptação cognitiva que permite reconhecer aos outros como seres intencionais, teria tido um caráter inteiramente cultural e produziu o desenvolvimento de formas simbólicas de comunicação. Este desenvolvimento, sustenta Tomasello, transcorre a uma velocidade que nenhum processo de evolução biológica pode igualar. Como lembra R. Dunbar, o trabalho verdadeiramente intelectual do discurso radica em nossa capacidade de antecipar como entenderá o ouvinte – ou como não entenderá!- o que queremos dizer. Em outras palavras, para que haja uma conversação, temos que participar em jogos mentais, embarcando em uma leitura profunda da mente que vai mais além da simples teoria da mente (segundo grau de intencionalidade); sem a teoria da mente – sem os graus mais altos da teoria da mente –, a transmissão de informação levada a cabo pela linguagem e a maior das interações sociais resultariam impossíveis e viveríamos em um mundo intelectualmente empobrecido.

[3] É difícil caracterizar ao pós-modernismo, pois cada autor (pós-moderno) difere dos outros e, ainda que tratem o mesmo tema, podem chegar a dizer coisas totalmente diferentes, e inclusive contrárias, ao ponto que não se entendem entre eles – e às vezes, nem sequer se entendem a si mesmos. Nada obstante, o pós-modernismo, que se define como o movimento [pseudo]cultural que busca fazer uma crítica aos fundamentos do modernismo, é uma corrente 'intelectual' que rechaça qualquer "forma privilegiada de conhecimento". Tudo é relativo, exceto, por suposto, a única verdade universal de que tudo é relativo (a ironia escapa a muitos pós-modernistas). Tampouco resulta fácil definir uma doutrina pós-modernista em específico, ainda que os autores que se encontram entre a lista pós-moderna podemos nomear a Michel Foucault, Jacques Lacan, Jacques Derrida, Jean-Francois Lyotard (quem se soe dizer foi o fundador desta corrente, defendendo em suas obras a ideia de uma "ciência pós-moderna" como uma alternativa ao sistema estabelecido da ciência), entre outros. Todos e cada um se caracterizam por uma retórica tão ininteligível como a de seus antecessores dos que tomariam tantas ideias: Hegel, Husserl, Heidegger, Feyerabend e Kuhn,  para mencionar apenas alguns. Como suposto movimento intelectual, busca afetar não somente a filosofia, senão também ter perspectivas pós-modernas em política, direito, arte, literatura e ciência.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Borders. // Foto de: Marco / Zak // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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