Contornos da violência: quando reconhecemos o comércio de drogas ilícitas e sua relação com a busca pela felicidade na sociedade do consumo

11/03/2016

Por Thaís Zanetti de Mello Moretto - 11/03/2016

Atualmente fala-se muito em violência, e nessa palavra cabe muita coisa. Se pensarmos que é verdade e que vivemos – sim -em um cotidiano de inúmeras violências, então, devemos pensar o que nos conduziu a este cenário, e de onde parte a dita violência. Certo é que falar em violência não é algo novo, a violência remonta épocas absolutamente distantes do momento histórico em que vivemos hoje, talvez a grande novidade disso tudo seja que: somos bem menos violentos do que nossos ancestrais um dia foram[1].

Vou lhes mostrar isso, peço que leiam:

[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde deveria ser] levado e acompanhando numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quarto cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. (Foucault).

Isso significa que, com o passar dos tempos as sociedades tenderam a extinguir as formas de suplício, o que implica dizer que houve um declínio nos modos de se exercer a violência. Sendo assim, hoje, seguramente, vivemos em uma época muito mais pacífica, mas, entretanto, ao invés de se fazer tal análise, midiaticamente acabamos envolvidos por optar em explorar as mais diversas formas de violência, obstaculizando pensamentos que nos conduzam ao novo.

E ao falarmos em formas de suplício, e, portanto, em violência, há também de se falar naquela violência que acaba sendo operada por parte do próprio Estado, quando este, por exemplo, não consegue dar conta de sua parcela de responsabilidade nas coisas. Se o assunto for o sistema prisional, então, parece que a situação fica um tanto quanto mais grave, já que, embora existam previsões legais de adequado cumprimento de pena, a legislação da execução deixa de ter a devida aplicabilidade.

Diz-se isso porque, ao analisarmos a Lei de Execução Penal, verificamos inúmeras afrontas, onde direitos restam estabelecidos, mas que, contudo, o Estado não consegue garantir uma forma adequada e digna de cumprimento de pena. Isso implica dizer que, em que pese se queira responsabilizar o outro, não se faz com que as inúmeras previsões legais venham a ser implementadas, como alimentação, vestuário, instalações higiênicas, assistência jurídica, educacional, social, médica, dentre tantas outras. Em consequência a ausência de recursos mínimos, percebemos, então, a notória escassez de condições mínimas de uma vida não indigna de ser vivida nas prisões.

Mas quando o assunto é violência, não fornecer condições básicas, condições mínimas, ou seja, falar sobre locais aonde o Estado não chega ou aonde o Estado não dá conta de chegar (sobretudo se analisarmos parcelas da população que estão à margem da sociedade, i.e., os socialmente vulneráveis, os desfavorecidos), percebemos que, em grande escala, muitos acabam ingressando no universo da ilegalidade, mormente em disputas no tráfico e disputas pelo recrutamento para o tráfico. É sobre esse extrato de delinquência que se pretende trazer a ideia de que o sofrimento causado pela ausência de recursos mínimos pode ser diminuído através da inserção na comercialização de drogas ilícitas, tornando possível o encontro com a felicidade.

Pode até parecer estranho (mas não é). É que o ato de venda de drogas pode ser analisado sob a espécie da dita busca pela felicidade, uma busca que pode ser perfeitamente demonstrada através da análise do fenômeno do consumo, onde os pensamentos que emergem dentro de um horizonte moldado pelas práticas diárias de consumidores, acabam por acentuar o agudo interesse pelo mercado consumidor – forma que amplia os poderes de sedução – o consumo caracteriza-se por ser uma atividade inteiramente individual[2].

O grande risco reside no fato de que alguns conseguem tentar ‘satisfazer’ seus desejos próprios através do consumo, outros não dispõem de capital para a sua satisfação, e, restando impossibilitados dela, acabam buscando outros meios – que muitas vezes não são os meios legais – para saciar suas vontades.

Vivemos em uma sociedade onde a imagem transmitida é prioritariamente do consumo exacerbado, fazendo como Bauman[3] refere que haja um hiato entre os que desejam e os que podem satisfazer seus desejos. A satisfação aguda interna pulsa na tentativa de buscar algum mecanismo que lhe possibilite a aquisição que se dá com o prazer, seja ele qual for. Neste sentido, a sociedade de consumo possui alegações de promessa de satisfação dos desejos humanos, mas a promessa de satisfação só permanece sedutora enquanto o desejo continua insatisfeito, ou mais importante ainda, quando o ‘cliente’ não está plenamente satisfeito[4].

Ao nos depararmos com uma sociedade desigual, permanece a discriminação tanto por parte da polícia, quanto no âmbito judiciário, aquela fazendo a primeira identificação do criminoso, do delinquente que permeia as classes sociais mais frágeis, esta, por outro lado, reforçando a mácula. No Brasil, esta desigualdade social não se dá apenas pelas péssimas distribuições de renda no país, mas também pela distribuição desigual de conhecimentos acerca dos direitos do cidadão e de seu próprio acesso à Justiça. Desta forma é que a pobreza deixa de ser a única explicação para a criminalidade[5].

Por isso, é importante registrar, que o excesso do consumo - inclusive o explorado midiaticamente - acaba atingindo de maneira expressiva aqueles que acabam sendo recrutados para o tráfico, já que a estes o desejo de aquisição pulsa através do dinheiro que eleva determinados valores, além disso, a remuneração auxilia a projetar o status de poder, mas que é determinante pelo universo do comércio de drogas ilícitas, a exemplo de empunhar uma arma na cintura. Em uma sociedade capitalista é possível evitar a dor pelo desprazer daquilo que não se tem, mas daquilo que se deseja ter.

Percebe-se, então, que o projeto moralizante de uma vida sem drogas e, portanto, sem traficantes, penetra-se diretamente em uma cultura de consumo – sem controle – de preferência! A necessidade de satisfação de nossos desejos, através do consumo (imposto) em nossa sociedade, é revelada pelo esforço na obtenção da felicidade, já que o homem busca não apenas ser feliz, como também lidar com a manutenção desta felicidade. Mas o fato é que esta meta pode se revelar positiva ou negativamente, por um lado, visando à ausência do sofrimento e do desprazer, e por outro, a experiência de intensos sentimentos de prazer[6].

A voracidade de consumir (re)produzida em larga escala, acaba sendo remediada no mercado ilegal de drogas. Há muitos “retornos” no tráfico (financeiro, status, poder, valorização entre tantos outros), mas mais do que ter retorno, é importante que este retorno seja imediato, o que satisfaz as ausências, já que acaba suprindo certas necessidades. A busca pela satisfação imediata destes prazeres revela, em mesma proporção, a sociedade em que vivemos, a qual é essencialmente marcada pela aceleração, dinâmica e instabilidade.

A respeito disso, o status de poder revela a transmissão de sensação de um poder que não pode ser controlado por nenhum outro. Sobre isso, aquele que comercializa as drogas, acaba por ostentar uma posição que, na maioria das vezes, projeta e, é assimilada por aqueles que - ainda - não foram recrutados para o varejo, despertando naqueles (não) recrutados um desejo de ostentar o mesmo poder transmitido através das aparências, como o desejo de se encontrar cotidianamente mais distante da ausência financeira, e, portanto, de infelicidade.

Essa situação retrata que aquilo que chamamos de felicidade no sentido mais restrito se relaciona a intensos sentimentos de prazer[7], ou seja, uma felicidade que experimenta o sentimento de satisfação, onde ao comercializar drogas, busca-se sair do desconforto criado pela situação de miserabilidade e de ausência de reconhecimento, e que pode ser encontrada fartamente na venda de drogas. Tais sentimentos, além de serem encontrados no ato de comércio, recaem também sobre aqueles indivíduos que, ao mesmo tempo em que vendem também consomem, revelando-se como um passaporte de fuga.

É como evitar a dor, ‘evitamento do desprazer’ (Freud), onde a droga surge para causar sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis[8]. Este ‘veículo intoxicante’ de luta pela felicidade causa produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo[9], já que auxilia como ‘amortecedor de preocupações’ (Freud).

Desta forma, a necessidade oriunda do consumo, e que (re)produz a lógica de se consumir cada vez mais, revela que o consumidor na agudeza de se satisfazer acaba buscando de forma legal ou ilegal, a maneira como vai atender as suas necessidades de prazer. Segundo Freud[10] assim como a satisfação do instinto equivale para nós à felicidade, assim também um grave sofrimento surge em nós, caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas necessidades. A toxicomania (re)vela o princípio do prazer – assegurado pela droga, fazendo gozo exatamente onde se dá a falta, a ausência, o ‘gozo atroz’ (Melman)[11]. Mas que ausência é essa? Pois então, é disso que deveríamos falar.

Entre prazeres e (des)prazeres, entre a busca pela felicidade e o ato de se escapar a (in)felicidade (próprios de nossa cultura), obedece-se a uma lógica de ausências, através da demonstração de que o gozo se dá na falta (Melman), especialmente quando analisamos sob o prisma da toxicomania, então, ao lidarmos com a delinquência – em si – a repetência opera-se. No ato de comércio – que é, portanto, criminoso, a conduta do delinquente é simbólica de uma falta, i.e., uma falta de acesso ao objeto que comanda o gozo, por isso a necessidade de apreensão violenta, da violação, uma vez que é a falta de acesso ao objeto que conta[12].

Se na toxicomania é perceptível que o gozo se dá na falta – não havendo satisfação plena – mas sempre parcial, de outro lado a venda de drogas provoca a sensação de se escapar a infelicidade (social), buscando, através da sociedade de consumo (e de consumidores) a sensação prazerosa e feliz de ter aquilo que a presença da ausência lhe deu. É essa a sociedade que interpela seus membros sob a condição de consumidores, ao fazer isso espera ser entendida, obedecida, sobretudo porque recompensa e penaliza seus membros, segundo a prontidão e adequação da resposta dos membros desta sociedade. O desempenho consumista se revela como um critério de exclusão e inclusão, bem como acaba orientando o apreço ou estigma social[13].

Nesta perspectiva, de utilização e comercialização de drogas ilícitas, onde se mede o grau de felicidade ou de infelicidade, podemos perceber o que a sociedade de consumidores - que vivemos - acaba elencando como os nossos prazeres/satisfações válidos ou inválidos, entre aquilo que é permitido e o que é proibido, a valer como categoria de valores moralizantes, e que são encontrados perfeitamente na Lei de Drogas (proibicionista que é).

Seguindo neste rumo encontramos o fenômeno de inserção – cada vez mais incrementado – de mulheres envolvidas na dita comercialização das drogas, esta inserção cotidiana (re)vela a busca dos indivíduos pela felicidade e sua manutenção ou uma forma de escapar a infelicidade desta cultura. O processo de busca pela felicidade na sociedade consumista revela que (consumo e venda) proporcionam alguma espécie de prazer, de satisfação, seja ela qual for. Seja ela, até mesmo, uma forma de não reconhecer a sua própria subjetividade, como se o momento em que se consome drogas, ou o momento em que se vende, produzissem nos sujeitos uma forma de ‘não estar’, uma espécie de ‘estar suspenso’[14].

Tal ideia pode nos reportar a condições de análise diversas, ou dito de outro modo, uma forma de ‘não estar’ do sujeito diretamente relacionada como uma forma de como ele se vê no mundo. E, é essa forma de ver que pode nos conduzir ao pensamento de que, ao fugir da realidade (que é maçante, que me tortura), o sujeito possa abdicar de seu próprio corpo, tornando-o eliminável, descartável, matável (Agamben), como se, para ele, sua vida fosse descartável. E, para quem vivem em uma sociedade complexa, em uma sociedade consumista, nada mal inserir-se em uma condição onde a própria vida torna-se indigna de ser vivida (Agamben).

O exemplo disso é que, cada vez mais estamos assistindo ao incremento de pessoas envolvidas com a venda das drogas, inclusive tendo como diagnóstico, já não tão recente, da larga inserção das mulheres nesta dinâmica antes, essencialmente masculina, bem como dos envolvidos na utilização que se faz delas. O crescimento da venda e uso (re)vela a incessante busca pela felicidade – e também – as frustrações sentidas tanto por quem vende como por aquele que consome. A vontade de ser feliz tem trazido enorme infelicidade para nossa cultura, onde expor o sujeito na busca incessante ao prazer, tem causado um deslocamento ao risco do desprazer, mas em tempos de aceleração, é isso que vale a pena.

Sabemos que um dos grandes fatores de incremento de mulheres envolvidas com o tráfico de drogas é oriundo, também, da criminalização anterior que se deu com seus companheiros, com seus filhos, com seus irmãos, de modo geral com seus familiares, revelando, geralmente, a prisão de alguém que é o provedor da família, ou inserem-se em razão da troca de favores largamente definida intramuros.

Mas, independentemente do motivo que as conduza a delinquência moderna, se por um lado o Estado não lhes possibilita recursos, ou os recursos que possibilita são parcos, acaba sendo atribuição, muitas vezes, destas mulheres a busca por um mecanismo que minimize suas dores e carências. Assim, e isso é evidente, não lhes sobra– de certo modo – alternativa outra que não o comércio das drogas ilícitas, mesmo que, para isso, tenham que assumir o risco em sofrer posteriormente com os reflexos oriundos da criminalização, pois afinal de contas: o que importa é o ‘agora’.

Isso se diz por que estas mulheres se encontram em uma situação caótica e frágil de sobrevivência, e que precisa ser, não apenas reconhecida como analisada. Ademais, não podemos esquecer que a venda de drogas é fartamente ofertada em comunidades carentes, então, mais vale arriscar o prazer do que viver intensamente a infelicidade gerada pela nossa própria cultura.


Notas e Referências:

[1] Sobre o tema, há interessante análise desenvolvida por Steven Pinker, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TIv4SOcPGSQ.

[2] BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 54.

[3] BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 55.

[4] BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: A transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 63.

[5] ZALUAR, Alba. Da revolta ao crime S.A.. São Paulo: Moderna, 1996, p. 50.

[6] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 84.

[7] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 85.

[8] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 86.

[9] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 86.

[10] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 86.

[11] MELMAN, Charles. Alcoolismo, Delinquência, Toxicomania: Uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta, 1992, p. 74.

[12] MELMAN, Charles. Alcoolismo, Delinquência, Toxicomania: Uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta, 1992, p. 44.

[13] BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: A transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, pp. 70-71.

[14] Sobre isso, importante a abordagem realizada por Maria Rita Kehl disponível< https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=video&cd=10&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwj0yMn5147LAhUMk5AKHfb0BAIQtwIIPDAJ&url=https%3A%2F%2Fvimeo.com%2F70953566&usg=AFQjCNHqKQk50AQgA3nSc9byr00b0aoZxQ&sig2=f4_w2HCxWs25i-_qpmI7CA&bvm=bv.114733917,d.Y2I>.


Thaís Zanetti de Mello Moretto. Thaís Zanetti de Mello Moretto é Graduada em Direito pela Rede Metodista de Educação do Sul – IPA, Especialista em Ciências Criminais pela Rede Metodista de Educação do Sul – IPA, Especialista em Filosofia pela PUCRS, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS, Graduanda do 6º semestre em Psicologia pela Rede Metodista de Educação do Sul – IPA. Professora da Faculdade Porto-Alegrense - FAPA. Advogada Criminalista.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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