Por Luiz Ferri de Barros - 01/12/2015
Autran Dourado, aos oitenta anos, publicou ano passado pela Rocco O Senhor das Horas, livro em que retorna a Duas Pontes, cidadezinha mineira que é cenário de várias de suas obras anteriores.
Lugar imaginário, porém fiel retrato de um lugarejo do começo do século passado, Duas Pontes é palco de mineirices de personagens, alguns sóbrios outros caricatos, mas todos com tal força e vigor que ao leitor não resta senão apostar que sejam todos reais, saídos antes das memórias do autor do que de sua imaginação, mesmo quando ele no texto diz que está inventando.
Ociosa seria esta distinção entre o real e o imaginário, nem sempre possível numa saga de vida inteira em que o autor usa do texto de forma rememorativa de personagens, lugares e tempos da infância. Duas Pontes foi imaginária, de fato, apenas quando da primeira vez fez-se cenário das histórias deste que é um dos mais celebrados escritores brasileiros. Há muito a cidadezinha conquistou existência própria.
Com 157 páginas, o livro se divide em seis partes, que podem ser entendidas como contos ou como capítulos ou partes de um romance. A escrita por vezes é regada ao sabor do contar causos, pitorescos, maliciosos e bem humorados, como os mineiros fazem, mas não há regionalismos na linguagem. Autran Dourado, como outros escritores hoje fazem, utiliza-se neste livro de pontuação diferenciada, em especial suprimindo as formas convencionais do diálogo que se mescla, então, ao contínuo do texto.
Ao meio das seis narrativas, irrompem divagações sobre o tempo e sobre a morte, por vezes em falas dos personagens, por vezes em reflexões intimistas e pessoais do autor, que as expressa, então, de forma metafórica e poética.
A identidade entre o autor-narrador, os personagens e os relatos é sugerida já no início, pela coincidência de idades entre o personagem que dá nome ao livro e o autor: “Toda vez que morria um parente mais chegado dele ou lhe acontecia algo dramático, o velho coronel (tinha oitenta anos) parava de vez um relógio. Quando ele parou o primeiro relógio da casa e não deixou que ninguém mexesse nele, foram contar ao dr. Viriato de Abreu e este, com sua malícia de sempre, disse o coronel quer ser dono do tempo, senhor das horas.”
Deixar-se mergulhar na memória da infância, evocando a longínqua, onírica e tão mineira Duas Pontes faz também recordar dores do tempo, quando o lembrar se impõe ao narrador. E, nesses momentos, projetando-se do passado ao futuro, é também como um sonho que vê a morte este escritor que sempre a teve como tema.
“Ai! Como me dói o exausto coração quando as ondas brandas, as velas pandas da nau da memória, de repente me chegam e me assaltam como agora, sem eu querer! E procuro me apaziguar pensando no azul de quieta luz, numa praia lúcida e branca. Eu agora, tantos anos depois, adulto, no Rio de Janeiro, inerte na tarde alheia a beira-mar, passada de muito a idade madura, mais próximo da morte, o pesado e eterno sono, o sonho.”
Trecho
“Enquanto dona Guilhermina sofria as dores do parto (ela gritava muito, nunca foi de comedimento, vontade forte e imperativa estava ali), o coronel andava aflito e nervoso de um lado para o outro da sala bufando grossa fumaça do charuto mamado com avidez e angústia: também ele sofria, moralmente mas sofria. De vez em quando não agüentava, ia até a porta do quarto, abria-a cautelosamente e uma vez disse, na aflição da culpa por ser, ao seu coração e aos seus olhos, o responsável indireto por tanta dor, será que eu posso fazer alguma coisa? Ao que dona Guilhermina gritou não, você já fez demais, você não faz outra coisa na vida senão emprenhar, a mim e às escravas.”
LFB/
Publicado originalmente no Diário do Comércio, São Paulo.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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