Contistas brasileiros: Affonso de Romano de Sant'Anna - Passar por cego virou moda

10/11/2015

Por Luiz Ferri de Barros - 10/11/2015

A Cegueira e o Saber, coletânea de crônicas de Affonso Romano de Sant’Anna, reúne 83 textos anteriormente publicados em sua coluna no jornal O Globo entre 2001 e 2006.

Buscando classificar a natureza da coletânea, em breve nota ele assinala que o subtítulo do livro poderia ser “crônicas culturais”, “diferenciando-as dos textos mais leves, que tiveram seus mestres em Rubem Braga e Fernando Sabino”.

O autor prossegue alertando que “estes escritos diferenciam-se também do que seria crítica e resenha” literárias, concluindo que o que lhe interessa é “entender a ‘contemporaneidade’ e rever a tradição”. Na verdade, várias crônicas farão referências à literatura, pinçando aspectos ou fixando a essência de obras clássicas ou contemporâneas; mas é a reflexão do autor o foco de cada texto, servindo as obras citadas como ilustração.

Os seis primeiros textos emprestam o título ao livro, versando sobre o saber e a cegueira. No último texto sobre a cegueira, o escritor comenta notícia de 2004 sobre um recém inaugurado restaurante em Paris, Dans le noir, que oferece aos clientes a experiência de comer no escuro, simulando cegueira, servidos por garçons cegos. A análise sociológica não é inimiga da ironia e Affonso aponta: “É pitoresco, mas repito: as pessoas pagam para não ver, pagam para comerem no escuro”, e finaliza esse breve ensaio sobre a cegueira contemporânea constatando que “passar por cego virou moda”.

Nos outros cinco textos sobre a cegueira, o autor registra uma “série de lendas, mitos e textos literários em que há cegos, como o adivinho Tirésias [personagem do teatro de Sófocles], que interpretam melhor os fatos do que os que enxergam. Há, por outro lado, a comunidade dos cegos arrogantes, dos que negam que se possa ver, como no conto Em terra de cego de H.G. Wells. Há a cegueira que sobrevém a uma comunidade como uma praga temporária, uma doença, uma ideologia, como no Ensaio sobre a cegueira, de Saramago. Há a visão excessiva com sua racionalidade irritante, que não enxerga o óbvio, como em A carta roubada, de Poe. Há, na história de Lady Godiva, o ato de ver, como forma de desafiar a interdição instaurada pela autoridade, que ordena o não-ver. Ver a nudez das coisas é já transgredir. E há, como na lenda A nova roupa do imperador, de Andersen, a denúncia do pacto social da comunidade que faz um acordo em torno do não-ver.”

As demais crônicas abordam enorme variedade de assuntos, desde a vida de Cervantes e a publicação de D. Quixote há 400 anos, até uma análise de nova tradução da Bíblia com linguagem adaptada para os tempos atuais. Há reflexões sobre a guerra de Bush e Blair no Iraque, a partir do livro e do filme de Lawrence da Arábia. Passando ainda por muitos outros cantos e contos do mundo, o livro traz a literatura para o cotidiano jornalístico e narra muitas histórias de escritores, até mesmo como uma mecha de cabelos de Clarice Lispector foi entregue em doação à Biblioteca Nacional por um monge beneditino.

Trata-se de escritos bem humorados e de agradável leitura, que encerram sagaz crítica cultural e social, e que são cultos, pois escritos com a saudável erudição de quem não se amofina em demonstrar conhecimento e nem o faz de forma ostensiva.


Serviço:

A Cegueira e o Saber. Affonso Romano de Sant’Anna. Rocco, Rio de Janeiro, 2006. 311 páginas.

Publicado originalmente no Diário do Comércio. São Paulo, 2006.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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