Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont
A imposição de medidas cautelares no curso dos procedimentos criminais, com a consequente repercussão nas garantias individuais do sujeito passivo – liberdade, privacidade, intimidade, patrimônio, etc. –, é dos maiores desafios a serem enfrentados no decorrer da persecução penal.
E, exatamente por isso, deveriam ser sempre reconhecidas como medidas excepcionais. Afinal, assim determina a Constituição da República de 1988 (artigo 5º, incisos LVII e LXI) e o Código de Processo Penal (artigo 282, incisos I e II, incluídos a partir da Lei 12.403/11).
O poder excepcional de cautelaridade penal[1], portanto, somente deveria ser aplicado quando estritamente necessário (seja para garantir a aplicação da lei penal, seja para possibilitar a investigação ou instrução, seja para evitar a prática de infrações), evitando assim a antecipação da pena vedada pelo princípio da presunção de inocência.
Além disso, o poder excepcional de cautelaridade penal deveria ser vinculado às especificidades do caso concreto, adequando as medidas à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do sujeito passivo, em decisão escrita e fundamentada pela autoridade judiciária competente.
Sendo assim, diante de qualquer fundamento da cautelaridade, seria imprescindível a existência cumulativa de dois requisitos: (a) probabilidade da ocorrência de um delito - ou, na sistemática do Código de Processo Penal, a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria[2]; (b) perigo pelo estado de liberdade - do indivíduo, do patrimônio, do exercício profissional, etc.
A prática, todavia, revela uma realidade diferente. A decretação de medidas cautelares fundamentadas no clamor popular, na repercussão social ou mesmo na necessidade de obter confissões e delações[3] viraram rotina.
Com efeito, o ponto comum dessas decisões está na dificuldade de definição do requisito “perigo”.
Primeiro, porque deve ser efetivamente demonstrado. É dizer que, para decretar qualquer medida cautelar, o juízo precisa evidenciar, para além de qualquer dúvida, que a liberdade do sujeito passivo representa um risco real.
Como exemplo, seria legítima a decretação de prisão preventiva de pessoa que tenta fugir para outro país a fim de evitar a persecução penal; assim como legal a decretação de constrição patrimonial em contra aquele que busca se desfazer dos seus bens para evitar futuro cumprimento da lei penal; e também lícita a medida de afastamento do cargo eletivo em relação a indivíduo que se valesse dessa posição para a prática ou reiteração delitiva.
Segundo, porque deve ser iminente. A urgência é elemento inerente às medidas cautelares e impõe, consequentemente, a contemporaneidade dos fatos que justificam a existência de risco concreto, hábil a demandar imediata contenção por parte da justiça criminal.
Nas últimas semanas, a contemporaneidade – como requisito indispensável para caracterização do periculum libertatis – passou a ser objeto de interesse após a prisão do ex-Presidente da República Michel Temer.
De acordo com o Juízo da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro[4], o requisito da contemporaneidade da medida cautelar estaria preenchido, na medida em que Michel Temer teria se valido da posição de Presidente da República até 31/12/2018 para liderar a organização criminosa e promover atos de corrupção.
O Tribunal Regional da 2ª Região[5], por sua vez, ao analisar a necessidade atual da prisão preventiva, entendeu que os fatos criminosos efetivamente narrados pelo Ministério Publico Federal estariam concentrados até o ano de 2016, motivo pelo qual não haveriam fundamentos contemporâneos que justificassem a imposição da cautelaridade.
A decisão do TRF2 está em plena consonância com a jurisprudência dos Tribunais Superiores. No Superior Tribunal de Justiça, a Quinta e a Sexta Turmas já uniformizaram o entendimento no sentido de que a urgência intrínseca às cautelares exige a contemporaneidade dos fatos justificadores dos riscos que se pretende com a prisão evitar[6]. Para o Supremo Tribunal Federal, igualmente necessária a contemporaneidade entre os fatos imputados e a data de decretação da prisão[7].
Todavia, se nas hipóteses de decretação da prisão preventiva parece ser fácil compreender e reconhecer a necessidade de especial atenção ao requisito da contemporaneidade, as outras espécies de medidas cautelares parecem não gozar da mesma garantia.
Apesar de serem regradas pelo mesmo dispositivo legal (artigo 282 do Código de Processo Penal) e de estarem sujeitas a idênticos requisitos, há certa resistência – principalmente por parte da jurisprudência – em aceitar que o elemento contemporaneidade também é imprescindível para a decretação de medidas cautelares diversas da prisão.
E não poderia (ou deveria) ser diferente. As cautelares diversas da segregação provisória - sejam aquelas previstas taxativamente no rol do artigo 319, sejam as medidas inominadas – representam, em maior ou menor medida, restrições à liberdade e não devem ter caráter de punição antecipada.
Dessa forma, se não há contemporaneidade para a prisão provisória, não há para a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão.
Compreender esse raciocínio é fundamental, especialmente porque são comuns as decisões que reconhecem o constrangimento ilegal em caso de prisão provisória extemporânea, substituindo-a por outras medidas que mantêm o cerceamento - ainda que de maneira menos gravosa - à liberdade da pessoa acautelada.
Imagine, concretamente, a seguinte situação: fatos imputados ocorridos em 2015, com o primeiro requerimento do Ministério Público e posterior decisão judicial pela prisão cautelar somente em 2019. Por não restar preenchido o requisito da contemporaneidade, o Tribunal reconhece a ilegalidade do decreto prisional, impondo automaticamente ao paciente medidas cautelares diversas, como a proibição de afastamento da Comarca e uso de tornozeleira eletrônica.
Se, por um lado, não é razoável restringir o direito à liberdade sem que haja um referencial de necessidade atual, incabível a aplicação de outras medidas cautelares pessoais menos severas, cujo reflexo sobre a liberdade individual também é visível, com base em fatos ultrapassados.
Em determinadas hipóteses, a substituição da prisão extemporânea por outras medidas seria possível. Especificamente, por ocasião de novos fatos – como, por exemplo, reiteração delitiva, tentativa de fuga ou ameaça a testemunhas – que poderiam ensejar a aplicação de outras cautelares pessoais, desde que devidamente fundamentadas e adequadas às condições pessoais do agente.
Mas é verdade que, na maior dos casos, os decretos de prisão preventiva que não preenchem o requisito do risco atual e iminente são substituídos via habeas corpus por cautelaridade diversas, sem qualquer justifica válida ou atenção às condições individuais do paciente, ganhando contornos de prisão mitigada[8].
O raciocínio é linear: prende-se ilegalmente, em clara negativa de vigência ao artigo 282 do Código de Processo Penal; solta-se pela flagrante ilegalidade; impõe-se outras cautelares pessoais que continuam interrompendo o direito de locomoção, sem novos fatos suficientes para sua aplicação; nega-se novamente vigência ao artigo 282.
Em trabalho recente, de vasta análise quantitativa realizado junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Brunna Laporte Cazabonnet[9] verificou os seguintes exemplos que corroboram esse raciocínio:
“O segundo exemplo cuida de um habeas corpus por homicídio praticado, em tese, por indivíduo sem antecedentes, no qual o relator desenha todo seu voto no sentido de que estão ausentes os fundamentos do art. 312, do CPP, e, mesmo assim, determina a aplicação de três medidas cautelares alternativas.
Por derradeiro, o terceiro voto narra um caso de homicídio no qual o suposto acusa- do não é reconhecido pelas testemunhas, não há indícios de que possa estar constrangendo-as e apresenta cartão-ponto de que no horário do delito estava exercendo a sua atividade laboral. Contudo, mesmo sem a presença de necessidade cautelar, são-lhe aplicadas duas medidas, das quais uma cuida de proibição de manter contato com as testemunhas.
Entende-se que os últimos casos apresentados são exemplos de como as medidas cautelares diversas podem ser usadas indevidamente, de modo a alargar a seara penal, sem existência de qualquer indício de periculum libertatis”.
A contemporaneidade, requisito imprescindível para a decretação de cautelaridade pessoais, é triplamente desprezada: primeiro, pelo Juízo de Primeiro Grau, que mesmo conhecendo a já pacificada jurisprudência dos Tribunais Superiores, insiste em decretar prisões fora do espectro da atualidade; depois, pelos julgados de Segundo Grau, que mesmo reconhecendo a já pacificada jurisprudência dos Tribunais Superiores, aplicam medidas cautelares diversas sem fundamentos atuais de perigo; e, finalmente, pelos próprios Tribunais Superiores, cuja tradição é manter as cautelaridade aplicadas pelo ente a quo.
O que se critica, então, é exatamente essa tradição mantida pelo Judiciário disfarçar prisões decretadas por fundamentos ilegais com medidas cautelares tão ilegais quanto. Até porque, quando o assunto é liberdade, qualquer restrição ilegal é “produto de uma concepção inquisitória de processo que deseja ver o acusado em condição de inferioridade em relação à acusação”[10].
Notas e Referências
[1] Enquanto prevalece no processo civil o poder geral de cautela, no qual o juízo pode superar as limitações legislativas para impor medidas e restrições que entender adequadas, deve existir no processo penal o poder excepcional de cautela, sendo aplicáveis ao sujeito passivo somente as medidas cautelares previstas em lei e, especialmente, as cautelaridade cuja finalidade estão previstas em Lei. Nesse sentido: PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 535.
[2] Sobre o conceito da “probabilidade de ocorrência de um delito”, remete-se o leitor à interpretação sistemática e constitucional de LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 647-650.
[3] Sempre bom recordar das oportunidades em que o Ministério Público Federal defendeu a manutenção de prisões preventivas de investigados na Operação Lava Jato com fundamento na necessidade de obter confissões. Nesse sentido: <https://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes>. Acesso em: 29 mar. 2019.
[4] Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/leia-a-integra-da-decisao-pela-prisao-de-michel-temer.shtml>. Acesso em: 29 mar. 2019.
[5] Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/03/25/desembargador-trf-solta-michel-temer.htm>. Acesso em: 29 mar. 2019.
[6] Definição similar pode ser encontrada em precedente paradigma do Superior Tribunal de Justiça, replicado em julgados mais recentes: HC 214.921/PA, Relator Ministro Nefi Cordeiro, DJe: 25/03/2015.
[7] A título de exemplo, veja-se julgado do Supremo Tribunal Federal: HC 138.850/PR, Relator Ministro Edson Fachin, Relator para o Acórdão Ministro Ricardo Lewandowski, DJe: 09/03/2018.
[8] Referida expressão foi utilizada pelo Ministro Marco Aurélio Mello em decisão monocrática: STJ, AC 4.327/DF, DJe: 07/02/2018.
[9] CAZABONNET, Brunna Laporte. A recepção das medidas cautelares diversas da prisão preventiva pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Revista Videre, v. 10, n. 20, p. 140-160, 2018.
[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 512.
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