CONSTITUIÇÃO CIDADÃ: 30 ANOS DE LUTAS E CONQUISTAS POR DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

06/10/2018

 

A Constituição Cidadã, completa, no próximo dia 5 de outubro, trinta anos da sua promulgação. Nestas três décadas, a Constituição se firmou como grande marco de afirmação da democracia e da promoção de direitos fundamentais. Garantias como o devido processo legal, a presunção de inocência, a ampla defesa, o pleno exercício do contraditório e o dever de fundamentação das decisões judiciais são exemplos de conquistas do cidadão contra o arbítrio e o poder estatal. No entanto, a Constituição, desde sua promulgação, foi considerada um obstáculo para a governabilidade e para a legítima ação estatal. Diante dessa visão equivocada, surgem iniciativas legislativas e decisões judiciais voltadas à mitigação de garantias constitucionais, notadamente de cunho processual, embasadas no discurso de fim da impunidade e na garantia da aplicação da lei (penal). Nunca é demais lembrar que a Constituição de 1988 é uma conquista e marca o início de um novo paradigma, que abandona o Estado autoritário e inaugura o Estado Democrático de Direito.

Certamente a mais polêmica mitigação (ou relativização) de direitos constitucionalmente protegidos, é a que se refere à presunção de inocência. Diante de um Poder Judiciário cada vez mais questionado a respeito da sua eficiência e diante do clamor por respostas a demandas que permeiam as páginas dos jornais na atualidade, passou-se a considerar como possível o início da execução de pena privativa de liberdade após decisão condenatória por órgão colegiado de segundo grau. O interessante é que este entendimento passou a ser adotado a partir do julgamento de um Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal (HC 126.292, relator Ministro Teori Zavaski), ocorrido em 2016. Tal entendimento foi questionado por meio de duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC 43 e 44), nas quais o Supremo é indagado sobre a constitucionalidade do artigo 283, do Código de Processo Penal. Ambas as ações já estão liberadas para julgamento. No entanto, em razão de uma suposta estabilidade na jurisprudência do tribunal, as ações (de grande relevância) não são pautadas. Convém destacar que em tempos de Operação Lava-Jato, este posicionamento é muito conveniente para sustentar a bandeira de combate à corrupção. Contudo, esta jurisprudência afeta, sobremaneira, a principal clientela do sistema de justiça criminal – os pobres, negros e desvalidos.

Também merece reflexão o entendimento segundo o qual a Polícia, com “evidências” acerca da existência de drogas dentro de um imóvel, poderia realizar a busca e apreensão (caso a suspeita se confirmasse) sem mandado expedido por autoridade judiciária. Certamente a jurisprudência, de cunho autoritário, amolda-se a uma realidade extremamente pragmática para o aparato policial. No entanto, este entendimento vai de encontro com a garantia prevista no artigo 5º, inciso XI, da Constituição. Tal jurisprudência é confirmada no Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC 423.838/SP, relatado pelo Ministro Sebastião Reis Júnior. Eis a ementa do julgado:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO  DE DROGAS. ALEGAÇÃO DA DEFESA DE ILEGALIDADE POR INVASÃO DE DOMICÍLIO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CRIME PERMANENTE. FORTE ODOR DE MACONHA. NERVOSISMO DO PACIENTE. RAZÃO PARA REALIZAR A BUSCA NO IMÓVEL. SITUAÇÃO DE FLAGRÂNCIA. MANUTENÇÃO EM DEPÓSITO DE 667 PORÇÕES DE CRACK  (286,14 G), 1.605 INVÓLUCROS DE MACONHA (6.731,81 G), 1.244 INVÓLUCROS DE COCAÍNA (1.533,23 G) E 35 FRASCOS DE LANÇA-PERFUME.

Consta nos autos que os policiais perceberam o nervosismo do paciente e que ao chegarem à residência, já sentiram um forte odor de maconha, razão pela qual fizeram a busca dentro da residência. 2. Agravo regimental improvido. (STJ. AgRg no HC 423.838/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 08/02/2018, DJe 19/02/2018).[1]

Assim, sob alegação de ser um crime permanente, prevaleceu o entendimento de que seria desnecessário o mandado para ingresso no domicílio do acusado. Este argumento, no tocante aos delitos que envolvem drogas, é descabido por serem estes delitos de perigo abstrato. Para relembrar o que ensina Roxin acerca da diferença entre delito de lesão e de perigo, este último exige a possibilidade de penalização sem que se gere, efetivamente o perigo.[2] Para que se constate a existência do resultado (que perdura no tempo) é imprescindível a confirmação do perigo que a ação do agente esteja gerando. Logo, é necessária a entrada da autoridade policial para confirmar o perigo supostamente gerado, o que, por si só, não constitui estado de flagrância. Somente os indícios de que dentro de um imóvel esteja ocorrendo tráfico de drogas são insuficientes para autorizar o ingresso da autoridade policial sem mandado expedido por juiz competente. Ademais, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 138.565, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, assentou acerca da imprescindibilidade de mandado de busca, sob pena de nulidade, para produção da prova no delito de tráfico de drogas. Para pacificar a jurisprudência, o Supremo firmou tese com repercussão geral (Tema 280) acerca da matéria. Assim definiu o Supremo Tribunal Federal:

“A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.”[3] 

Pode-se perceber que o Supremo definiu que a legalidade da entrada fica condicionada a fundadas razões devidamente justificadas. O que seriam fundadas razões? Como definir situações que justifiquem uma diligência policial dessa natureza? É evidente que há um viés consequencialista na jurisprudência diante da escalada da violência.

Também merece destaque a inobservância do dever de fundamentação das decisões, particularmente as judiciais. O que ocorre, de forma recorrente, é a mera citação de dispositivos normativos como forma de atribuir fundamento a uma decisão. Esta prática é comumente evidenciada quando da decretação de prisões cautelares. Contra essa inobservância do artigo 93, inciso IX, da Constituição, o Supremo Tribunal Federal concedeu ordem de Habeas Corpus no sentido de considerar a fundamentação inidônea e a motivação genérica de decreto de prisão preventiva em precedente relatado pela Ministra Rosa Weber, assim ementado:

EMENTA HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. DECISÃO MONOCRÁTICA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SUPERVENIÊNCIA DO JULGAMENTO DE MÉRITO PELA CORTE ESTADUAL. SUBSTITUIÇÃO DE ATO DECISÓRIO. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. ARTIGO 33 DA LEI 11.343/2006. PRISÃO PREVENTIVA. REVOGAÇÃO DO DECRETO PRISIONAL. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. MOTIVAÇÃO GENÉRICA E ABSTRATA. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. 1. Não cabe habeas corpus impetrado contra decisão monocrática que nega seguimento a writ requerido a Tribunal Superior. Precedentes. 2. A superveniência da decisão de mérito exarada pela Corte Estadual altera substancialmente o quadro fático da impetração, a desafiar nova impugnação perante o Superior Tribunal de Justiça (HC 123.431/RJ, Rel. p/ acórdão Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, DJe 06.02.2015). 3. O decreto de prisão cautelar há de se apoiar nas circunstâncias fáticas do caso concreto, evidenciando que a soltura, ou a manutenção em liberdade, do agente implicará risco à ordem pública, à ordem econômica, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal (CPP, art. 312). 4. A motivação genérica e abstrata, sem elementos concretos ou base empírica idônea a amparar o decreto prisional, esbarra na jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal Federal, que não lhe reconhece validade. Precedentes. 5. Ordem de habeas corpus concedida de ofício, tornando definitiva a liminar anteriormente deferida, para revogar a prisão preventiva do paciente. (STF. HC 127.962/SP, Rel. Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 29/03/2016, DJe 29/04/2016).[4]

A fundamentação das decisões é garantia ao cidadão. Segundo Lênio Streck, é condição de possibilidade para a validade de uma decisão judicial. Põe fim àquilo que se chama comumente de livre convencimento do magistrado.[5]

O que parece incompreensível e grave é que, após três décadas, algo que deveria ser tão comum e corriqueiro, ainda não é uma realidade. Magistrados, muitas das vezes, limitam-se a mencionar dispositivos de lei como fundamentação sem fazer qualquer argumentação que legitime um determinado entendimento.

Após três décadas, pode-se concluir que a democracia é uma obra inacabada. Sempre necessita de constante vigilância com intuito de impedir retrocessos, consubstanciados por medidas que visam relativizar e, por vezes, extinguir direitos. A onda de insegurança, a crise econômica e a crescente marginalização geram aspirações por mudanças que inviabilizam o exercício de direitos fundamentais, merecendo, de toda a comunidade jurídica uma constante vigilância. Os exemplos acima mencionados demonstram o quanto ainda é preciso avançar e caminhar na consolidação de uma sociedade verdadeiramente fundada no Estado Democrático de Direito. Que esta provocação seja o motivo para fomentar o debate para promoção de avanços e conquistas futuras voltadas a construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=423838&&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true. Acesso em 13 set. 18.

[2] ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general, tomo I. Traducción y notas: Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y Garcia Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madrid (Espana): Civita, 1997, p. 336.

[3] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/abrirTemasComRG.asp. Acesso em 13 set. 18.

[4] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28127962%2ENUME%2E+OU+127962%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/y7zex66o. Acesso em 25 set. 18.

[5] STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC. Consultor Jurídico, 2016. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28127962%2ENUME%2E+OU+127962%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/y7zex66o>. Acesso em 25 set. 18.

 

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