CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO: O CASO DA MORTE CRUZADA EQUATORIANA

27/05/2023

Coluna Por Supuesto

O Constitucionalismo construído na América Latina e o Caribe tem seus próprios compromissos epistemológicos, convenções analíticas e espaços políticos. Há um pensamento jurídico produzido em cada país, que embora tenha como objeto de estudo elementos resultantes de uma transposição daqueles do chamado Constitucionalismo clássico, de alguma maneira também há de se preocupar com a utilidade e serventia dos instrumentos moldados para atender peculiaridades regionais.   

A “morte cruzada”, que consta no artigo 148 da Constituição equatoriana, recentemente utilizada no presidencialismo daquele país, possibilita examinar sob perspectiva crítica a conflituosidade política e jurídica nas entranhas do Estado, bem como a relação entre o Estado e a cidadania.

Com efeito, há alguns dias vários jornais de ampla circulação no Brasil e outros países deram amplo destaque a chamada “crise equatoriana”. Em apertada síntese as notícias expuseram o significado da “morte cruzada”, explicando que o presidente dissolveu o legislativo e deverão ser convocadas novas eleições. A curiosidade para muitos e muitas sobre a utilidade jurídica do instrumento, aparentemente em favor do Executivo, emana do fato de que com a medida constitucional também o presidente coloca seu cargo à disposição. De maneira que as eleições serão tanto para o Legislativo como para o Executivo, ficando ambos órgãos sujeitos à necessidade de obter novamente o favorecimento popular.

No marco do exame do Constitucionalismo de nossos dias analisar esta experiencia resulta não só pertinente, mas também um exercício necessário. Sugere-se no Equador uma saída aos atritos frequentes entre os órgãos Legislativo e Executivo. No entanto, subsistem inquietações em torno à forma de materializar freios e contrapesos, de favorecer a soberania popular e sobre tudo plasmar direitos fundamentais. É dizer, permanecem dificuldades de compreensão sobre como a morte cruzada contribui a evitar o arbítrio e impedir o retrocesso dos direitos.

Sem maiores delongas, observemos que diz o artigo 148 da Carta equatoriana:

La Presidenta o Presidente de la República podrá disolver la Asamblea Nacional cuando, a su juicio, ésta se hubiera arrogado funciones que no le competan constitucionalmente, previo dictamen favorable de la Corte Constitucional; o si de forma reiterada e injustificada obstruye la ejecución del Plan Nacional de Desarrollo, o por grave crisis política y conmoción interna. Esta facultad podrá ser ejercida por una sola vez en los tres primeros años de su mandato. En un plazo máximo de siete días después de la publicación del decreto de disolución, el Consejo Nacional Electoral convocará para una misma fecha a elecciones legislativas y presidenciales para el resto de los respectivos períodos. Hasta la instalación de la Asamblea Nacional, la Presidenta o Presidente de la República podrá, previo dictamen favorable de la Corte Constitucional, expedir decretos-leyes de urgencia económica, que podrán ser aprobados o derogados por el órgano legislativo.

Destarte, existem causas formais para a medida de dissolução da Assembleia Nacional pelo Executivo. A saber: a) por se atribuir funções que não lhe competem constitucionalmente, caso no qual se estipula controle prévio da Corte Constitucional do país; b) por, de forma reiterada e injustificada, obstruir a execução do Plano Nacional de Desenvolvimento; c) por grave crise política e comoção interna.

Parece-nos que o controle da Corte, na primeira causa, é essencial porque, como se estabelece no artigo, o Chefe ou a Chefa do Executivo podem dissolver a Assembleia quando “a seu juízo”, é dizer, quando assim o consideram, ou melhor, quando eles no seu saber e entender assim o julguem necessário. Nas outras duas causas, a questão se torna um pouco mais objetiva, porque a atuação dos membros do Legislativo obstruindo a execução do plano nacional de desenvolvimento pode se dar de múltiplas formas – desde quebras de quórum de instalação e votação até rejeição a medidas concretas constantes no plano –. Naturalmente, aqui é necessário precisar que não se estaria a falar na atuação normal do Legislativo, que exerce controle político e fiscalizador nos marcos republicanos diante da atuação do Executivo, mas de uma atuação notadamente disposta a boicotar exercício legítimo de função típica da Administração e gestão pública.   

Por sua vez, a comoção interna de alguma forma implica, desde logo, um estado ou situação de anormalidade, na qual se torna manifesta uma impossibilidade de gerenciar a “pólis” ou dar continuidade ao exercício do governo por causas ou forças que com regularidade e contundência atingem aos poderes públicos.

Pois bem, decretada a morte cruzada, no prazo máximo de sete dias depois da publicação do ato normativo que dissolve a Assembleia, o Conselho Nacional Eleitoral convocará para uma mesma data eleições legislativas e presidenciais, de sorte que os eleitos deverão cumprir com o período restante de mandato. Contudo, para eliminar o vazio de poder, até a instalação da nova Assembleia, o Presidente está facultado a emitir decretos-leis de urgência econômica, prévio controle da Corte Constitucional, que podem ser aprovados ou revogados pela nova Assembleia.

É dizer, na prática, o Presidente continua exercendo sua função, pela via dos decretos-leis. E, nos termos do artigo 144 da Carta Equatoriana, o Presidente pode ser candidato à reeleição.

Há duas questões que nos parecem de extrema relevância na análise da figura, as quais misturam de alguma forma valorações políticas e técnico-jurídicas, como frequentemente acontece quando se realizam análises constitucionais. Isso porque a dogmática e a aplicação das técnicas de hermenêutica irradiam seus efeitos na realidade política, modificando ou conservando a correlação de forças e, por sua vez, a correlação impacta a forma de construção do próprio direito porque como fenômeno histórico-cultural este reflete essa condição existencial da comunidade política. Já autores como De Maistre, Gierke ou o próprio Hesse nos advertem sobre tais tensões.

No caso atual, há de se valorar que no Equador há um debate no Legislativo sobre se o chefe do Executivo praticou ou não crimes de responsabilidade, circunstância que autorizaria, em caso positivo, o julgamento político do presidente.   

A questão é importante porque tecnicamente o método da “morte cruzada” se instala para impedir a hegemonia de um órgão sobre o outro. Por isso, se existe atrito entre o Legislativo e o Executivo, a dissolução dos dois órgãos e o apelo à soberania popular se afigura como uma alternativa válida. Mas há atritos e atritos. É dizer, se do que se trata é de impedir a ação do Legislativo para instalar um processo de crime de responsabilidade, para o qual os requisitos constitucionais estão presentes e as motivações são minimamente plausíveis, o Presidente, simplesmente, pode utilizar o mecanismo como forma de não ser alvo de um juízo parlamentário, ganhando incluso um período de 90 dias para tomar medidas através de decretos-leis. Mesmo com o controle da Corte Constitucional, examinando cada decreto, a tarefa de fiscalização popular encomendada ao Legislativo e que consiste num dos postulados básicos da forma de governo republicana, ficaria prejudicada.  

A segunda questão que valoramos é que um plano de governo que implique uma agenda na qual os direitos fundamentais sejam reduzidos ou a proibição de retrocesso atingida, ou ainda, que medidas referentes a liberdades públicas em confronto sejam resolvidas por decretos leis ante a ausência do legislativa, continua a ser uma fórmula perigosa, que conduziria a uma modalidade de acanhamento de direitos. O papel da Corte, neste caso, é inestimável, tamanha a envergadura de que se revestiriam suas decisões. 

Contudo, se misturamos os dois fatores, aliados às necessidades das exigências de fatores reais de poder, nacionais e internacionais, o que resulta são as melhores condições para uma situação explosiva, na qual nem ganha o aprimoramento da técnica tão cara ao Constitucionalismo, nem se soluciona a comoção, senão que pelo contrário, podem-se surgir, em tão delicada e complexa situação, novas formas de crise.   

Esta semana, a Corte Constitucional do Ecuador rejeitou seis ações públicas de inconstitucionalidade que impugnavam o Decreto do Executivo equatoriano nº 741, pelo qual o presidente resolveu, dissolver a Assembleia Nacional por grave crise política e comoção interna.   

As razões da impugnação consistem em que, a juízo dos autores, este não cumpre com a mínima motivação fáctica e normativa, isto é, não existe nexo entre a realidade e a motivação utilizada. Vale dizer que se esta conexão não fica caracterizada, então, como diz a petição inicial no Caso 39-23, ocorre uma “instrumentalização da figura para evitar um processo de controle político”. A petição avança expondo que “uma série de ações do legislativo como exercer a faculdade fiscalizadora contra as demais funções do Estado” não pode ser tomada como motivação para a “morte cruzada” porque não afeta o exercício dos direitos” e finalmente, que “o processo de juízo político não causou na cidadania alarma social considerável”. E advertem que a maior dificuldade cidadã no país é a (in) segurança pública, que fica ainda em mãos do Executivo.

Outra petição – no Caso 40-23 - diz claramente que o decreto utiliza como fundamento “a existência de numerosos juízos políticos e pedidos de informação” é dizer, o cumprimento da tarefa de fiscalização do Executivo pelo Legislativo. Expõem que o caso é uma fraude à Constituição, pois o que pretende o Executivo é “evitar que se produza a votação no Plenário da Assembleia que conduza a sua eventual censura e destituição”

 A Corte rejeitou a ação publica de inconstitucionalidade sob o argumento de que o controle é somente possível quando a causal arguida no decreto consiste em que o Legislativo se atribua funções. Destarte, está impedida de examinar a constitucionalidade do decreto porque não lhe corresponderia verificar a configuração material da causa invocada nem da motivação exposta pelo Presidente porque simplesmente a Constituição não lhe deu essa faculdade à Corte.  Assim, seu entendimento é que a dissolução da Assembleia permite que por grave crise política e comoção interna, para o qual não haverá nenhum exame de constitucionalidade, o povo soberanamente arbitre os atritos elegendo os membros do Executivo e do Legislativo para o restante do período. É dizer, entre o controle feito pelo tribunal constitucional e o controle direto da cidadania, preferiu o constituinte este último.

Veja-se que claramente a morte cruzada é um elemento de defesa ou de estabilização constitucional, ou seja, faz parte do chamado “sistema constitucional de administração de crises” dentro do Estado democrático. Não pode, por isso, server para uma espécie de licença que lhe permite ao presidente fugir da responsabilidade política perante o Legislativo. Por isso, as causas que motivam a dissolução do Legislativo devem ser claramente expostas, tendo assento numa realidade na qual esse órgão avança sem fórmulas de juízo plausíveis por sobre os outros, o que caracteriza uma anomalia, atípica, inconveniente jurídica e politicamente, que não se confunde com arrogar-se funções, senão que promove a ingovernabilidade.  

É claro que o tema é de difícil apreciação. Contudo, um tribunal constitucional não somente analisa texto normativo, mas também fatos, para poder construir uma norma de decisão que defenda a supremacia da Carta, que não pode ser algo meramente formal, senão que deve ser substancial, ancorada na preeminência dos fins e valores constitucionais.

O que queremos afirmar é que promover um juízo político contra o presidente por crime de responsabilidade é questão que foge das causas para invocar a morte cruzada. Porque se assim for, a morte cruzada serviria para fugir da responsabilidade do juízo político. Também importa observar que o controle cidadão se apresenta como soberano. Entretanto, o governar por 90 meses, enquanto se pronuncia o soberano popular, implica um tempo extenso para impor, sem o Legislativo, ainda que com o controle do tribunal constitucional, uma agenda econômica-social.  

Não temos a palavra final, há que aguardar o desenvolvimento do instituto. Nem se pretender gratuitamente impedir seu desenvolvimento de forma prematura. Mas, o norte interpretativo no caso não pode ser outro senão fortalecer a democracia e impedir que os direitos que tanto custa conquistar sejam perdidos ou escamoteados. A morte cruzada é um meio, não um fim em si mesmo. Deve estar disposta, por supuesto, a atender as finalidades de fortalecer o Estado democrático e social de direito. 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Paisagem Lunar // Foto de:  // Sem alterações

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