Constitucionalismo latino-americano e os juízes de controle das garantias (I)

19/08/2023

Coluna Por Supuesto

Consta na agenda jurídica do Brasil que o Supremo Tribunal Federal deverá concluir na próxima semana o julgamento das ações de inconstitucionalidade -ADI- 6298, 6299, 6300 e 6305.  Uma análise pormenorizada do conteúdo de tais ações foge à brevidade da nossa coluna. Entretanto, destacaremos a primeira delas, a ADI 6298, protocolada em 27 de dezembro de 2019, de autoria da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB e da Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE -, que impugna as alterações oriundas do art. 3º da Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 ao Código de Processo Penal -CPP e instituem o “juiz das garantias”.

Uma breve visita ao texto normativo legal permite distinguir o artigo 3 A, que determina in verbis: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Logo, o 3 B ordena que “O juiz de garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”.

A seguir, o legislador projeta um extenso leque de competências para o novo instituto. Não é o caso de mencioná-las todas, porém consideramos importante destacar, dentre outras, as faculdades de receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal e o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade, observado o art. 310 do CPP.

Igualmente cumpre ressaltar as faculdades de zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo; ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; decidir sobre o requerimento ou prorrogação da prisão provisória e sobre a produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral; também a de prorrogar o prazo de duração do inquérito ou determinar seu trancamento quando não tiver mais fundamento; decidir sobre a interceptação telefônica, o afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico, a busca e apreensão domiciliar e outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado; julgar, inclusive, o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 do CPP.   

É claro que introduzir órgãos, instâncias, procedimentos e figuras novas como o juiz das garantias implica uma metodologia, por razões estruturais e funcionais. O judiciário presta um serviço público que implica funções técnicas de interpretação e aplicação do Direito e cada modificação deve ser dirigida ao aprimoramento do acesso à justiça, à igualdade processual e à potencialização das garantias fundamentais das pessoas, atendendo às complexidades de uma sociedade plural e que enfrenta ainda ameaças à democracia.    

Neste ponto advertimos que, por ora, não entraremos no mérito da constitucionalidade ou não de algumas das competências anunciadas. Em tudo caso, em sede de distribuição de competências o artigo 3E da Lei expõe que O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal.’ E lá no final, o artigo 20 da Lei determina que esta “(...) entra em vigor após decorridos 30 (trinta) dias de sua publicação oficial.”

Pois bem, o pedido da ADI consiste em que se proclame a nulidade com redução do texto das normas, porque impossível admitir a validade do “Juiz das Garantias” ou, alternativamente, que em interpretação conforme à Constituição Federal e sem redução de texto, se declare que a Lei dispõe sobre normas de eficácia limitada que dependem da edição de outras leis ordinárias, de iniciativa dos tribunais, para permitir sua criação.

Os autores argumentam, dentre outras questões, que o Judiciário brasileiro não possui estrutura suficiente para a implementação do juiz de garantias e que não foi criada nenhuma regra de transição. Aduzem, ainda, possível invasão de competências por parte da União devido a que no leque de atribuições há questões de natureza procedimental para o qual há previsão de competência concorrente expressa no artigo 24, XI da Constituição -

Além do voto do Relator, Min. Luiz Fux, mais dois votos foram proferidos até o momento. Naturalmente foram já apontados elementos controversos, especialmente sobre as competências e prazos para se funcionamento. No entanto, também foram ressaltadas virtudes do juiz das garantias no voto do Min. Zanin, que menciona a contribuição que a figura pode proporcionar para fortalecer a luta jurídica contra os preconceitos.   

Por sua vez, e agora no seio o debate público, a AMB, autora da ação, em nota divulgada no dia 17 de agosto e enviada ao Conselho Nacional de Justiça expressa posicionamento contrário. Com efeito, na comunicação, a AMB manifesta que realizadas consultas e logo de constituir um grupo de trabalho para analisar o tema, entende que o Juiz das Garantias, “(...) no modo em que previsto pela Lei n.º 13.964/2019, além de, em termos práticos, apresentar inconsistências intransponíveis, traz flagrantes inconstitucionalidades formais e materiais — o que demonstra a inviabilidade de sua implementação imediata no ordenamento jurídico brasileiro”.

Para aqueles que estivemos há um bom tempo, quando recém formados no Direito, confrontados com figuras tão polêmicas como os arbitrários “juízes sem rosto” – declarados formal e substancialmente inconstitucionais pela Corte Constitucional colombiana - e que hoje vemos com preocupação como também estas modalidades jurisdicionais foram instaladas no México, sob pretexto de proteger ao judiciário e tomar decisões céleres contra as grandes máfias,  o debate sobre os juízes de controle das garantias no Brasil adquire dimensões próprias dentro das análises do conjunto de prioridades do Constitucionalismo regional. Por isso este julgamento é seguido com especial interesse no restante do subcontinente. 

À luz de alguma corta experiência, nos atrevemos a afirmar que a figura do juiz com funções de controle das garantias, como um dos pilares do sistema penal acusatório, é essencial porque transmite de maneira reforçada a segurança, a responsabilidade e o compromisso com os direitos fundamentais de todas as partes envolvidas. Pedimos escusas por apelar ao país de nacionalidade e esclarecemos que não se pretende de modo algum ter a última palavra sobre o tema. O Brasil segue uma trilha própria, desbravando e retirando obstáculos à cidadania. Em reiteradas oportunidades em conferências e debates em Bogotá e outras cidades, onde já tivemos a alegria de poder transmitir mensagens sobre o constitucionalismo regional, temos nos referido a ações como o mandado de injunção, invenção brasileira que desperta tanta admiração pela sua originalidade, ou à paradigmática decisão do STF no HC 82424, o conhecido caso Ellwanger.

A aspiração é intercambiar opiniões sobre experiencias constitucionais - por sinal, o propósito central desta coluna - na nossa região. Em tal sentido, vale a pena observar como a Carta Constitucional colombiana no artigo 250, modificado no ano 2002, estabelece que:

“La Fiscalía General de la Nación está obligada a adelantar el ejercicio de la acción penal y realizar la investigación de los hechos que revistan las características de un delito que lleguen a su conocimiento por medio de denuncia, petición especial, querella o de oficio, siempre y cuando medien suficientes motivos y circunstancias fácticas que indiquen la posible existencia del mismo. No podrá, en consecuencia, suspender, interrumpir, ni renunciar a la persecución penal, salvo en los casos que establezca la ley para la aplicación del principio de oportunidad regulado dentro del marco de la política criminal del Estado, el cual estará sometido al control de legalidad por parte del juez que ejerza las funciones de control de garantías”.  (Constitución Política de Colombia. Artigo. 250)

Igualmente, verificar que a Corte Constitucional do país, destacou em outra importante decisão que:

La salvaguarda de los derechos fundamentales del investigado es función prioritaria adscrita al juez de control de garantías. Así, toda actuación que involucre afectación de derechos fundamentales demanda para su legalización o convalidación el sometimiento a una valoración judicial, con miras a garantizar el necesario equilibrio que debe existir entre la eficacia y funcionalidad de la administración de justicia penal y los derechos fundamentales del investigado y de la víctima. (C-979. 2005).

Em outros cenários da América Latina esse controle realizado pelo juiz das garantias é especialmente notável e é valioso na verificação da legalidade da atuação de agentes públicos dotados de poderes para realizar “capturas facultativas”, “allanamientos” (busca e apreensão domiciliar) e interceptação de comunicações. O juiz das garantias torna-se o ator estatal ao qual as partes requerem proteção de seus direitos ante a força e capacidade persecutória e punitiva do Leviatã contemporâneo e as constantes tentações de se fugir ao não -direito.  

Lembro também, rapidamente, de outra decisão da Corte colombiana, na qual se estabelecia uma conexão entre o juiz de controle de garantias e a capacidade de conformação do legislador, porque, nas palavras da Corte, este não pode outorgar ao Ministério público funções de natureza jurisdicional, em detrimento da competência de tais juízes. (C-591 de 2014).

Voltando ao Brasil vale a pena ressaltar que o Min. L. Fux afirma em seu voto que todos os juízes brasileiros são juízes de garantia. Sobre o ponto, é perfeitamente compreensível o esclarecimento do Ministro. É claro que todos os juízes devem procurar realizar um exercício hermenêutico no qual a interpretação/aplicação do direito tenha limites na principiologia constitucional. Mas o assunto em pauta não parecer ser exatamente esse. O Juiz de garantias é juiz constitucional que tem uma função especial, particular, no processo no qual em jogo está a liberdade. Não se confundem estas funções com as dos chamados “juízes de conhecimento” e bem por isso, possuem uma margem de interpretação que lhes permite intervir e corrigir atuações em curso, que de tão grosseiras vulneram de forma direta os direitos fundamentais. Seus limites se enquadram nas próprias características e necessidades do procedimento penal. Sua tarefa é substancial.  

As opiniões são resultado de uma visão oriunda de cenários vividos e por supuesto, voltaremos ao assunto porque, em nossa opinião, bem ajustado à realidade nacional, o Brasil só tem a ganhar com o juiz de garantias.   

 

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