Constitucionalismo garantista e decisão judicial:  a (in)constitucionalidade da aplicação do in dubio pro societate

07/03/2017

Por Rodrigo Hendges - 07/03/2017

INTRODUÇÃO

A constitucionalização do Direito é um fenômeno jurídico que tem sua gênese assentada na força vinculante dos princípios e normas fundamentais consagradas no texto constitucional. Neste aspecto, nossa Constituição Federal, promulgada em 1988, é exemplo de Constituição dirigente, já que possui uma normatividade forte, de regulação, consubstanciada na existência de princípios constitucionais – notadamente os direitos fundamentais – que atuam como regras proibitivas de lesão ou, em alguns casos, impositivas de prestações, portanto, designadas de garantias (FERRAJOLI, 2012, p. 19).

Para assegurar a observância e eficácia desses direitos fundamentais, o Constitucionalismo Garantista propõe um sistema jurídico e uma teoria do direito que prevê o controle tanto do aspecto formal de produção do direito (leis) como do aspecto material e substancial (conteúdo) deste, desenvolvendo os elementos científico-jurídicos necessários à compreensão e (re)produção do Direito segundo os preceitos constitucionais conformadores, abrangendo inclusive a decisão judicial, pois, como fonte de (re)produção do Direito, necessita da conformação do seu conteúdo com sistema de garantias constitucionais.

O presente trabalho abordará a problemática da decisão judicial que pronuncia o Réu a julgamento perante o Tribunal do Júri com base no princípio do in dubio pro societate, a fim de perquirir-se a sua conformidade jurídico-teórica com o atual paradigma constitucional garantista orientador do processo penal e do tratamento do Réu enquanto sujeito de direitos diante da pretensão punitiva do Estado exercida contra ele.

Isso porque, diante do inegável tensionamento existente entre a resposta estatal a ser dada à sociedade e as garantias do Acusado, tais como a presunção de inocência (como regra de tratamento e julgamento) e o decorrente princípio do in dubio pro reo, observa-se atualmente a prevalência do in dubio pro societate como critério de racionalização das decisões que submetem o Acusado a julgamento perante o Tribunal do Júri, sempre que o Juiz se depara com a dúvida acerca da Autoria ou Materialidade delitivas, sendo necessário discutir-se os elementos substanciais deste conflito e trazer contribuições teóricas que o desvelem.

Para tanto, o atual trabalho de conclusão de curso desenvolver-se-á em três capítulos. No primeiro, o estudo se ocupará da definição conceitual do Constitucionalismo Garantista e do estabelecimento das bases teóricas para a intepretação e aplicação da norma fundamental. Já no segundo capítulo, será estruturada a correlação entre o Direito Processual Penal e o Constitucionalismo Garantista, abordando-se o papel da decisão judicial dentro desse contexto jurídico e a problemática da aplicação do in dubio pro societate. Por fim, no terceiro capítulo será desenvolvida uma análise teórica tratando da (in)constitucionalidade da aplicação do princípio do in dubio pro societate nas decisões de pronúncia do Réu.

Por isso, o presente trabalho é resultado de um estudo bibliográfico realizado pelo aluno do Curso de Pós-Graduação em Processo Penal, tendo como objetivo o estabelecimento de uma resposta teoricamente válida para a problemática proposta no projeto de pesquisa.

1 DO CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA E SUA CONCEITUAÇÃO

Com o final da 2ª Guerra Mundial, o mundo viu surgir novas formas de organização político-jurídica entre as nações. Tendo sucumbido os regimes autoritários da época, erigiram-se então os denominados Estados constitucionais que, sepultando aqueles governos despóticos, “adotaram constituições caracterizadas pela forte presença de direitos, princípios e valores e de mecanismos rígidos de fiscalização da constitucionalidade” (RUFINO DO VALE, 2007, p. 68).

Com isso, o Direito nestes novos Estados, agora sob a égide de uma Lei Maior – a Constituição –, começou a ser afetado (leia-se: transformado), pois, uma nova cultura jurídica anunciou-se a partir da rediscussão das estruturas do Direito então posto, ao passo que tendências doutrinárias e posicionamentos teóricos adquiriram uma certa identidade de sentido e convergiram para o estabelecimento de um paradigma constitucionalista, no qual a Constituição passou a ser o centro das discussões na medida em que atua como principal fonte de elementos teóricos balizadores da teoria do Direito.

Neste passo, apesar das inúmeras concepções diferentes de Constitucionalismo, o ponto comum na discussão é a existência de normas superiores, como aquelas que, nas constituições atuais, sancionam direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2012, p. 13) e subjugam todos os poderes públicos quanto à sua observância e aplicação.

Neste sentido, ensina Luigi Ferrajoli que:

[...] o constitucionalismo equivale, como sistema jurídico, a um conjunto de limites e de vínculos substanciais, além de formais, rigidamente impostos a todas as fontes normativas pelas normas supraordenadas; e, como teoria do direito, a uma concepção de validade das leis que não está mais ancorada apenas na conformidade das suas formas de produção a normas procedimentais sobre a sua elaboração, mas também na coerência dos seus conteúdos com os princípios de justiça constitucionalmente estabelecidos. (FERRAJOLI, 2012, p.13).

Entretanto, para compreender no que consiste o Constitucionalismo Garantista, é preciso avançar para além deste traço comum existente e analisar a ocorrência de duas maneiras distintas de concepção do constitucionalismo. Uma delas, denominada de constitucionalismo argumentativo ou principialista, e a outra, chamada de constitucionalismo normativo ou garantista, ambas concebidas por Luigi FERRAJOLI, dão conta da dualidade existente nas discussões que buscam explicar o Constitucionalismo e/ou o Estado Constitucional de Direito.

A primeira orientação, segundo o professor FERRAJOLI (2012), é caracterizada pela configuração dos direitos fundamentais como valores ou princípios morais diversos das regras, eis que dotados de normatividade mais fraca, logo, entregues à ponderação (e não à subsunção) do legislador e do juiz.

Já a segunda concepção, que serve de base para o presente trabalho, caracteriza-se pela ideia de que grande parte dos princípios constitucionais, notadamente os direitos fundamentais, comportam-se como regras consistentes em proibições de lesão ou obrigações de prestações que são suas respectivas garantias, portanto, de normatividade forte, de tipo regulativo.

Assim, segundo Ferrajoli, o Constitucionalismo Garantista pode ser definido como:

[...] um sistema jurídico e/ou uma teoria do direito que preveem – para a garantia daquilo que vem estipulado constitucionalmente como vinculante e inderrogável – a submissão (inclusive) da legislação a normas relativas à produção não só formais, relativas aos procedimentos (ao quem e ao como), mas também materiais, relativas aos conteúdos das normas produzidas (ao que se deve decidir e ao que não se deve decidir), cuja violação gera antinomias, por comissão, ou lacunas, por omissão. (FERRAJOLI, 2012, p. 19).

Diante da definição conceitual do que seria o Constitucionalismo Garantista, importa, agora, que sejam apresentadas e estabelecidas as bases teóricas norteadoras da interpretação e aplicação da norma fundamental, tomando como fonte este sistema jurídico e/ou teoria do direito ora identificado como Constitucionalismo Garantista.

1.1 AS BASES TEÓRICAS PARA A INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA FUNDAMENTAL

Inicialmente, vale destacar que o objetivo no presente tópico é explicitar de que maneira o Constitucionalismo Garantista concebe a interpretação e aplicação das normas fundamentais e no que consiste a base teórica desta concepção. Cabe esclarecer, contudo, que a exposição dos elementos teóricos aqui realizada não será exauriente do assunto, posto que a sua discussão detém uma interdisciplinaridade complexa, que exigiria maior espaço de abordagem e argumentação, o que será realizado num eventual trabalho futuro.

De todo modo, é necessário ter-se presente que a ideia do Constitucionalismo Garantista estrutura-se, primordialmente, a partir da concepção – para o Direito – de um “jus-positivismo reforçado, onde o constitucionalismo rígido apresenta-se não como a superação, mas sim como um reforço do positivismo jurídico, por ele alargado com a instituição dos direitos fundamentais” (FERRAJOLI, 2012, p. 22), os quais orientarão a produção do direito.

Nas palavras de Ferrajoli:

Todo o direito se configura (...) como uma construção inteiramente artificial, na qual são reguladas não apenas as formas, como ocorria no velho paradigma formalista do paleopositivismo, mas também os conteúdos, através dos limites e vínculos a eles impostos pelo paradigma constitucional. (FERRAJOLI, 2012, p. 23).

Ainda enquanto se fala na teorização do Constitucionalismo garantista, é preciso pontuar que, se por um lado o constitucionalismo propõe um sistema normativo que deve ser construído, por meio de políticas e leis de atuação, com base em idôneas garantias e instituições de garantias (garantismo como outra face do constitucionalismo), por outro lado, o Constitucionalismo jamais admitirá a conexão entre direito e moral (FERRAJOLI, 2012, p. 25).

Neste passo, ao propor uma teoria da democracia como sistema jurídico e político articulado em garantias fundamentais – Constitucionalismo garantista–, Ferrajoli reforça a necessidade de separação entre direito e moral, tanto no plano da teoria do direito como no plano axiológico da filosofia política.

Na lição de Ferrajoli:

Nesse sentido assertivo ou teórico, a separação é um corolário do princípio da legalidade que impede, para a garantia da submissão dos juízes somente à lei, a derivação do direito válido do direito (por eles suposto) justo e, para a garantia da autonomia crítica do ponto de vista moral externo ao direito, a derivação do direito justo do direito válido, mesmo se conforme a Constituição. No sentido prescritivo ou axiológico, a separação é um corolário do liberalismo político que rejeita, para a garantia das liberdades fundamentais em relação a tudo que não lesiona os outros, a utilização do direito como instrumento de reforço da (ou de uma determinada) moral. (FERRAJOLI, 2012, p. 25).

Ao analisar-se detidamente tais ensinamentos, pode-se compreender que, no primeiro sentido (teoria do direito), a separação equivale a um limite ao poder dos juízes e ao seu arbítrio moral, demonstrando que o Constitucionalismo garantista configura-se como o novo paradigma juspositivista do direito e da democracia que complementa – enquanto sistema de limites e vínculos substancias, relativos ao “quê” das decisões, em acréscimo àqueles somente formais – o velho modelo paleo-jus-positivista. (FERRAJOLI, 2012, p. 26).

Por fim, cabe ressaltar a acepção do constitucionalismo garantista como sistema jurídico, para dizer que, como modelo de direito, o constitucionalismo garantista se caracteriza, em relação ao modelo paleo-jus-positivista, pela positivação também dos princípios que devem subjazer toda a produção normativa (FERRAJOLI, 2012, p. 24). Trata-se de um sistema de limites e vínculos que as Constituições rígidas impõem a todos os poderes do Estado, efetivados pelo controle jurisdicional de constitucionalidade sobre o seu exercício, visando garantir os princípios da igualdade e da liberdade e direitos sociais que, uma vez violados, seja por ação ou omissão interpretativa/legislativa, dão ensejo ao surgimento de inconstitucionalidades.

2 CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA E O DIREITO PROCESSUAL PENAL

Após estabelecer-se, ainda que minimamente, as bases teóricas que o Constitucionalismo Garantista propõe para a interpretação e aplicação da norma fundamental, passa-se então a abordar a correlação deste sistema jurídico com o Direito Processual Penal, a fim de se identificar os contornos jurídico-argumentativos da teoria garantista aplicada ao Processo Penal.

Pretende-se abordar, neste capítulo, a problemática da decisão judicial – com suas implicações teóricas – a partir do paradigma do Constitucionalismo Garantista, projetando-se as implicações da epistemologia Garantista (DA ROSA, 2004, p. 130) no processo penal enquanto corolário do modelo penal mínimo.

Convém destacar que, apesar de o termo “garantismo” compreender três acepções distintas, o presente artigo limitar-se-á àquela que assinala um modelo normativo de direito.

Na lição de Ferrajoli:

[...] “garantismo” designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade” SG, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do estado em garantia dos direitos do cidadão. (FERRAJOLI, 2006, p. 785-786).

Portanto, para Ferrajoli, o (modelo de) direito penal mínimo corresponderia, estruturalmente, ao Estado de direito, entendendo-se por esta expressão:

[...] um tipo de ordenamento no qual o Poder Público e especificamente o poder penal estejam rigidamente limitados e vinculados à lei no plano substancial (ou dos conteúdos penalmente relevantes) e submetidos a um plano processual (ou das formas processualmente vinculantes). (FERRAJOLI, 2006, P. 101).

Ao sintetizar a ideia central do modelo de direito penal garantista proposto por Ferrajoli, o professor Alexandre Morais da Rosa explica que, para este modelo penal mínimo, apesar de o tipo penal estar previsto em lei, somente quando comprovada processualmente a conduta do agente é que poderá se impor sanção, levando a sério a “presunção de inocência”. (DA ROSA, 2004, p. 133).

Segundo explica Da Rosa:

Garantismo e racionalidade encontram-se, pois, imbricados na pretensão de construir a legitimidade do sistema punitivo, mediante o estabelecimento de uma tecnologia apta e democraticamente sustentada pelos Direitos Fundamentais (Cap. 3º). (DA ROSA, 2004, p. 133).

Ou seja, a partir do sistema penal ideal garantista, o processo penal passa a estruturar-se em garantias penais e garantias processuais, consubstanciadas em dez princípios necessários e sucessivos de legitimidade do sistema penal e, portanto, da sanção, quais sejam: delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa, de sorte que a ausência de uma delas torna a resposta estatal ilegítima. (DA ROSA, 2004, p. 130).

Feita a correlação entre o Constitucionalismo Garantista e o Direito Processual Penal, com a demonstração dos elementos teóricos constitutivos da ideia do garantismo penal (minimalista) e conformadores de um processo penal constitucional, passa-se a analisar especificamente qual o papel da decisão judicial na efetivação das normas fundamentais (em especial os direitos e garantias do Réu) bem como do julgador na efetivação do processo de constitucionalização do direito processual penal, considerando ainda a problemática deste ato jurisdicional como ato de vontade (discricionariedade).

2.1 DECISÃO JUDICIAL E O PAPEL DO JULGADOR NA EFETIVAÇÃO DAS NORMAS FUNDAMENTAIS

O Constitucionalismo Garantista, ao romper com a tradição do positivismo normativista – que concebia ao julgador certo arbítrio no momento de determinar sua decisão, como elemento externo e fora das possibilidades do conhecimento teórico (STRECK, 2010, p. 63) –, estabelece uma nova racionalidade para a Ciência do Direito ao (re)trabalhar o paradigma e suas bases constitutivas, impondo um comprometimento ético ao operador jurídico (CARVALHO, 2006, p. 289).

Significa dizer que a decisão judicial – considerada como ato da jurisdição constitucional – desempenha a tarefa de realizar a Constituição na medida em que torna eficaz as normas constitucionais (COSTA, 2003, p. 82).

Segundo Thiago Fabres de Carvalho:

A teoria garantista, nesse plano, oferta o desenvolvimento de uma postura crítica perante o ordenamento vigente, evidenciando as antinomias e as máculas inquisitoriais presentes no universo do Direito posto. Assim sendo, perquirindo a validade substancial das normas, este instrumental teórico opera a deslegitimação do perfis antiliberais e das investidas de arbítrio do Direito efetivo. (CARVALHO, 2006, p. 288).

Por sua vez, aos juízes não se admite que possam criar direito, mas apenas (in)aplicá-los de acordo com sua constitucionalidade, atuando apenas na esfera ilegítima da política (TRINDADE, 2012, p. 129).

Segundo André Karam Trindade:

No constitucionalismo garantista, os juízes encontram-se vinculados à lei e, sobretudo, à Constituição, de maneira que sua tarefa é garantir e concretizar os direitos positivados, respeitando o princípio da separação de poderes. (TRINDADE, 2012, p. 129).

Observa-se, assim, que a constitucionalização do direito processual penal perpassa, necessariamente, pela tomada de posição do julgador como ator efetivo e inderrogável da concretização dos princípios constitucionais, calcado no paradigma teórico que advém da concepção de um modelo de direito penal mínimo, correspondente estruturalmente ao Estado de Direito que assimilou o ideal garantista contido no ordenamento constitucional.

2.2 A DECISÃO DE PRONÚNCIA E A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE

Antes de adentrar-se no campo de discussão que envolve a problemática da aplicação do in dubio pro sicietate, mostra-se oportuno uma análise preliminar sobre o elemento fenomenológico central deste estudo, qual seja, a decisão de pronúncia, compreendendo e conceituando-a como condição de possibilidade teórica.

Neste passo, convém anotar, portanto, que a pronúncia trata-se de uma decisão interlocutória mista, não terminativa, prevista no artigo 413 do Código de Processo Penal brasileiro, a qual marca o acolhimento provisório, por parte do juiz, da pretensão acusatória, determinando que o réu seja submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri (LOPES JR., 2014, p.1022).

Conforme ensina Aramis Nassif:

Ela cuida, apenas, de verificar a admissibilidade da pretensão acusatória, tal como feito quando do recebimento da denúncia, mas, e não é demasia dizer, trata-se de verdadeiro re-recebimento da denúncia agora qualificada pela instrução judicializada. (NASSIF, 2009, p. 56)

Por conseguinte, encontra lugar comum no discurso tanto da doutrina quanto da jurisprudência nacionais, a ideia de que, neste momento decisório, deve imperar o princípio do in dubio pro sicietate, pois, o “interesse da sociedade” em ver o Acusado submetido ao Tribunal do Júri deve conduzir a racionalização do julgador, donde resulta a máxima de que, em havendo dúvida sobre a responsabilidade penal do Réu, deve ele ser pronunciado (LOPES JR., 2014, p.1025).

Para corroborar as premissas teóricas acima delineadas e, também, para instrumentalizar a análise teórico-prática deste trabalho, colaciona-se a seguir algumas poucas decisões (apenas em suas ementas) do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que, na resolução de casos concretos, tem ratificado o brocardo em suas deliberações colegiadas, veja-se:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JÚRI. SÚMULA N. 7 DO STJ. NÃO INCIDÊNCIA. DECISÃO DE PRONÚNCIA. EXCLUSÃO DE QUALIFICADORA. IMPOSSIBILIDADE. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. IN DUBIO PRO SOCIETATE. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. [...]. 2. A exclusão de qualificadoras na decisão de pronúncia somente é cabível quando manifestamente improcedente ou descabida, o que não é o caso dos autos, nos termos do próprio acórdão impugnado. 3. A existência de dúvidas razoáveis quanto ao pleito da acusação deve ser dirimida pelo Conselho de Sentença. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1156770/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 05/02/2015, DJe 20/02/2015) (Grifei)[1]

AGRAVO REGIMENTAL. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. PENAL. PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. AUTORIA, MATERIALIDADE E QUALIFICADORAS. INDÍCIOS COMPROVADOS NOS AUTOS. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DÚVIDA RAZOÁVEL QUANTO À AUTORIA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. PRECEDENTES. 1. Não há como abrigar agravo regimental que não logra desconstituir os fundamentos da decisão atacada. 2. Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp 531.217/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 07/05/2015, DJe 18/05/2015) (Grifei)[2]

No mesmo sentido, ainda, oportuno destacar trecho da decisão proferida pela Sexta Turma do STJ, nos autos do AgRg no AREsp nº 644.325/BA, julgado no dia 23/06/2015 (DJe 03/08/2015), onde o Rel. Ministro ERICSON MARANHO, ao sustentar a tese de inaplicabilidade do in dubio pro reo na primeira fase do Tribunal do Júri, argumentando que a dúvida razoável deve ser resolvida aplicando-se o in dubio pro societate, assim aduz:

Ademais, esta Corte já se manifestou no sentido de que a sentença de pronúncia cuida-se de mero juízo de admissibilidade, diante dos indícios suficientes de autoria. Ressalta-se que a questão de insuficiência de provas de autoria por parte do ora agravante é resolvida em favor da sociedade, não havendo falar em princípio do in dubio por réu nesta fase processual.[3]

Conforme se observa, a aplicação do brocardo do in dubio pro societate tem sido amplamente aceita em nossa jurisprudência pátria, inclusive com o aval de parte da doutrina. No entanto, o presente cenário deixa transparecer o nítido desprestígio do princípio constitucional da presunção de inocência do Acusado, não obstante este representar uma garantia constitucional aos abusos do Estado e da “maioria dominante”, o que suscita a discussão acerca da recepcionalidade daquele princípio pelo Constitucionalismo Garantista, como se verá no próximo tópico.

3 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE

Inicialmente, cabe deixar claro que o princípio do in dubio pro societate diz respeito a carga probatória e gestão da prova no processo penal, de sorte que não há espaço, aqui, para invocar-se princípios constitucionais que dizem respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do Tribunal do Júri, como o da “soberania do Júri”, para negar a presunção constitucional de inocência (LOPES JR., 2014, p.1026), o que já seria uma inconstitucionalidade.

Mas, o ponto nevrálgico do brocardo em questão situa-se na sua própria condição autopoiética, substancialmente destituída de base legal autorizadora e, igualmente, carecedora de uma logicidade possível de ser construída a partir do sistema processual penal constitucional-garantista.

Na lição de Paulo Rangel, o princípio do in dubio pro societate:

[...] não é compatível como Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus. [...] O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal. (RANGEL, 2002, p. 79).

Assim, ao rememorar a ideia do Constitucionalismo Garantista de que, no plano substancial, a Constituição concebe um sistema proibitivo de lesão aos direitos e garantias fundamentais e, ao mesmo tempo, impositivo de um comprometimento ético do operador jurídico com os princípios positivados no texto constitucional, conclui-se que o in dubio pro societate não tem validade substancial, pois, não encontra supedâneo no sistema constitucional de garantias do cidadão.

Conforme pontua Carvalho:

[...] o Estado de Direito, tal como vislumbrado pelo paradigma garantista, se afirmaria como um sistema de limites substanciais impostos legalmente aos poderes públicos em garantia dos direitos fundamentais. Representa, pois, a possibilidade de que nenhuma maioria possa decidir a supressão (ou não decidir a proteção) de uma minoria ou de um único cidadão. Alguns direitos são elevados, portanto, à esfera de direitos invioláveis, garantidos como condição mínima e indispensável da convivência pacífica da comunidade. (CARVALHO, 2006, p. 297).

Evidencia-se, portanto, que a natureza do in dubio pro societate é essencialmente antidemocrática, não encontrando respaldo nos ideais sociais e humanísticos estabelecidos na Constituição Federal.

Logo, não se pode admitir que juízes pactuem com acusações infundadas, eivadas de dúvida, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, inconstitucional, portanto. (LOPES JR., 2014, p.1026).

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Após o estudo bibliográfico realizado no presente trabalho, exsurge a necessidade de concluir-se a discussão teórica sobre o tema proposto. Mas, tratando-se de um estudo sobre a ciência do Direito, o resultado apresentado não detém o condão da certeza científica e, tampouco poderia, já que não se trata de construir axiomas, mas sim, demonstrar o conhecimento da maneira mais clara e convincente possível, o que se dá sempre a partir de um ponto de vista da problemática estudada, de modo que a amplitude do tema e da discussão que o circunda são elementos impeditivos de proposições inquestionáveis ou insuperáveis – leia-se: juízo de certeza –.

Por conta disso, procurou-se compilar neste trabalho as ideias e teorias que convergem para o Constitucionalismo Garantista aplicado ao Processo Penal, tendo como referência teórica principal a doutrina garantista de Luigi Ferrajoli.

Demonstrou-se, no decorrer do trabalho, que a produção do Direito (tanto legislativa como judicial/jurídica) dentro do sistema jurídico arquitetado pelo Constitucionalismo Garantista, tem sua validade formal e material condicionada à observância dos preceitos Constitucionais vigentes.

A partir daí, pode se evidenciar que  a aplicação do princípio do in dubio pro societate nas decisões de pronúncia que levam o réu a julgamento perante o Tribunal do Júri é inconstitucional, pois, se o Constitucionalismo Garantista concebe um sistema de controle do conteúdo do Direito produzido, impondo ao julgador o dever ético de proteger e reverenciar os princípios fundamentais positivados, a aplicação do brocardo carece de validade substancial, já que não encontra previsão na norma fundamental positivada pela Constituição Federal, ao contrário do princípio da preseunção de inocência e do in dubio pro reo, derrogados nestas decisões.

Ao fim e ao cabo, tem-se que a ideia do Constitucionalismo Garantista necessita de um estudo teórico mais profundo, desvelador dos elementos constitutivos do sistema, que permitirá então ressignificar o Direito Processual Penal, sendo este o desejo do pesquisador em continuidade aos estudos aqui iniciados.


Notas e Referências:

[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudências. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/. Acesso em 21 out. 2015.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudências. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/. Acesso em 21 out. 2015.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudências. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1421012&num_registro=201500108483&data=20150803&formato=PDF. Acesso em 21 out. 2015, p. 4.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudências. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/.

COSTA, Maria Isabel Pereira da. Jurisdição Constitucional no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Síntese. 2003.

DA ROSA, Alexandre de Morais. Decisão no Processo Penal como Bricolage de Significantes. 2004. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/handle/1884/1203.

FERRAJOLI, Luigi. STRECK, Lenio Luiz. TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2012.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

LOPES Jr. Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

LUCAS, Doglas Cesar; SPAREMBERGER, Raquel Fabiana (Org.). Olhares Hermenêuticos sobre o Direito: em busca de sentido para os caminhos do jurista. Ijuí: Editora Unijuí. 2006.

NASSIF, Aramis. O novo júri brasileiro: conforme a Lei 11.689/08, atualizado com as Leis 11.690/08 e 11.719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

VALE, André Rufino do. Aspectos do Neoconstitucionalismo. Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC nº 09, jan./jun. 2007, p. 68. Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-09/RBDC-09-067-Andre_Rufino_do_Vale.pdf

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

STRECK. Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.


Rodrigo Hendges. . Rodrigo Hendges é Advogado (OAB/RS nº 89.299), Especialista em Direito Processual Penal.. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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