Coluna Práxis / Coordenadoras Juliana Lopes Ferreira e Fabiana Aldaci Lanke
Historicamente, o olhar terapêutico esteve focado no sintoma que o indivíduo apresentava, sem considerá-lo em um contexto maior e participante de vários sistemas. Com o avanço científico, profissionais e pesquisadores ampliaram o olhar para o sistema familiar, buscando ali “emaranhamentos” produtores dos sintomas do qual um membro, ou mais, se torna porta-voz do desequilíbrio sistêmico.
Jacob Moreno (1889-1974), nascido na Romênia e naturalizado americano, médico, filósofo e dramaturgo criou, inicialmente, o “teatro da espontaneidade”. A ideia era fazer uma apresentação espontânea sem decorar falas, era feito tudo no momento. Posteriormente, criou o “Jornal Vivo”, em que ele e o grupo de atores dramatizavam notícias veiculadas nos jornais diários, após anos trabalhando no hospital, usando o teatro da espontaneidade, criou o teatro terapêutico, que depois se tornou o psicodrama terapêutico. Inicialmente, Moreno queria compreender o que chamava de espontaneidade e criatividade, fatores presentes nos seres humanos mesmo em situações limites, como a guerra. Dizia que poderia fundar uma religião ou fazer ciência optando pela última (MARTIN, 1996). Como cientista não positivista, que isolava variáveis para ter uma compreensão objetiva do fenômeno, criou o Teatro da Espontaneidade e juntou numa só pessoa as posições de ator e autor criando peças de vários atores/autores sem um script definido. Percebeu a potência terapêutica da técnica utilizada quando um jovem casal passa a se modificar e modificar sua relação. Estava criado o Psicodrama.
Em meados da década de 1950, foi fundado o Centro de Estudos Superiores de Palo Alto, na California. Von Bertalanffy, biólogo; Boulding, economista; Rapport, biomatemático e Gerard, fisiologista, pertenciam ao grupo. Bertalanffy dava sequência à formulação de sua Teoria Geral dos Sistemas[1] [1].
Também em Palo Alto, em outra linha de pesquisa, o antropólogo Bateson (1904-1980) liderava outro grupo do qual fazia parte Halley, estudante de comunicação; Weakland, engenheiro químico; Jackson, psiquiatra e, mais tarde, entra no grupo Virginia Satir, Assistente Social e Paul Watzlawick, linguista e filósofo. Bateson e sua esposa Margaret Mead, também antropóloga, haviam estudado, na década de 1930, os “Iatmul” de Nova Guiné e constataram que a maneira como os indivíduos se comportam é determinada pela reação dos que os cercam. Bateson cria o conceito do “Duplo Vínculo”, que são relacionamentos contraditórios, nos quais são expressados comportamentos de afeto e agressão, simultaneamente, onde ambas pessoas estão fortemente envolvidas emocionalmente e não conseguem se desvincular uma da outra. Não é mais o duplo vínculo no seio do sistema familiar, mas o sistema familiar no seio do duplo vínculo. É o Ser Humano visto na sua inter-relação com o sistema.
Bunny e Fred Duhl criaram o “Boston Family Institute” e desenvolveram uma terapia familiar integrativa, no início da década de 1950, e, juntamente com David Kantor e Sandy Watanabe, combinaram várias teorias familiares e desenvolveram as Esculturas Familiares.
Virginia Satir foi a responsável pela divulgação da nova abordagem criada, as Esculturas Familiares, mas já com a base teórica do grupo de Palo Alto e com a visão
sistêmico-cibernético adquirida no grupo de Baterson. Cibernética é a ciência que tem
por objeto o estudo comparativo dos sistemas e mecanismos de controle automático,
regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas.
Trabalhando com Reconstrução Familiar, Virginia Satir levava todos os membros da família a “experienciarem” os lugares de conflito e, com isto, terem a possibilidade de promoverem mudanças em si e, consequentemente, no sistema familiar. Foi a forma usada para que cada membro da família visse a si e aos outros, e então, as dinâmicas ocultas do sistema familiar viessem à superfície e pudessem ser reconfigurados. Eram processos terapêuticos eficazes, mas que poderiam durar dias. Muitas vezes existiam dificuldades para reunir todos os membros da família do cliente já que alguns moravam longe. Então, Virginia Satir, no início dos anos 60, resolveu colocar representantes para os membros do sistema familiar que por algum motivo não estavam presentes. Criou a “Escultura Familiar” e observou que a mesma expressão gera os mesmos sentimentos, ou seja, um representante mesmo sem conhecer o representado poderia sentir as mesmas emoções reproduzindo a mesma realidade do sistema em questão.
Bert Helinger (2001), em contato com o trabalho de Virginia Satir, em Palo Alto, percebeu que, na Escultura Familiar, existia um movimento que era contido. Solto o movimento, os representantes reportavam não apenas as emoções dos representados, mas também a dinâmica do sistema. Bert Helinger (2001) começou um período de estudo e testes com um grupo de pessoas na Alemanha e percebeu uma regularidade nos sistemas familiares em desequilíbrio: são as leis sistêmicas que regem os sistemas familiares e que ele denominou de Leis do Amor.
O nome original do trabalho desenvolvido por Bert Hellinger, em alemão, é Familienaufstellung e significa, numa tradução literal, “Colocação [Representação] familiar”. Porém o verbo stellen, em alemão, foi traduzido ao inglês como, constellate, ou seja, posicionar certos elementos numa configuração dada. Como o primeiro livro traduzido ao português veio do inglês, e não do original em alemão, foi então traduzido como “Constelações Familiares”.
Esta abordagem terapêutica tem avançado muito no Brasil, tanto em questões familiares, como nas questões organizacionais. Pela sua eficácia, seu uso expande para outras áreas, inclusive em espaços públicos na área da Saúde e na Justiça. Mas, por serem cursos livres, ainda sem uma regulação, também atrai outras abordagens que são incorporadas de acordo com a visão de mundo de quem se propõe a se qualificar como “Constelador/Consteladora”. Então surgem as Constelações Xamânicas, Constelações Holísticas, Constelações dirigidas pelo Espírito, etc.
No Judiciário, a Constelação Familiar se faz presente com o trabalho pioneiro, no Brasil e no mundo, do Juiz Sami Storch que, desde 2007, introduziu a técnica obtendo um grande sucesso no número de acordos. Desde 2012, o juiz promove encontros vivenciais e acompanhamento dos processos tendo eficácia de 100% na resolução do conflito quando as partes estiveram presentes e 80% quando apenas uma parte participou da Constelação Familiar, segundo artigo publicado em sua página eletrônica.
Vemos que esta abordagem terapêutica, usada no Judiciário, desafoga o sistema e olha as partes não mais como mero número de um processo. Processo este que muitas vezes se cobre de poeira devido ao tempo que permanece na fila, que não para de crescer, e exige do Estado uma resposta que não pode ser dada visto que a demanda supera a estrutura física e pessoal do Judiciário.
No desempenho de prática da Constelação Familiar, e outras propostas inovadoras, é fundamental a consciência de que, muito mais do que desafogar o Judiciário de um Estado falido, o que deve nortear quem se propõe a trabalhar com esta abordagem neste espaço é a percepção de sua função no mundo. Percebendo-se como responsável na criação de um campo de solidariedade onde os cidadãos possam ser vistos e reconhecidos como pessoas que ainda precisam do Estado para decidir seus conflitos, criados no vácuo da falta de Autonomia Existencial. Por Autonomia Existencial, entende-se a capacidade de se perceber como pessoa única e que pode escrever sua própria história, sem replicar comportamentos automatizados do sistema familiar ou social.
Para que as pessoas se percebam como cidadãos plenos e indivíduos autônomos, será preciso uma ampla reforma no Sistema Educacional e as crianças sejam estimuladas a olharem sistemas familiares com gratidão e o Estado como o produtor de proteção aos direitos fundamentais. E também serem estimulados a se perceberem como seres em construção, a viverem no devir, com a responsabilidade individual e coletiva na construção de uma sociedade mais justa. Para tanto, é preciso existir apenas uma classe de cidadãos: os Humanos e sua interação com todos os seres viventes. É urgente que o Estado saia da barbárie de um Estado que olhe apenas a arrecadação de impostos, como espécie de Roma fora de época, e entre na era do Estado Cuidador. Não o Estado paternalista ou maternalista, mas Cuidador de toda forma de Vida. Recolha os impostos e cuide da Vida!
A expansão do uso das Constelações Familiares como instrumento eficaz na resolução de conflitos deverá levar em consideração a laicidade do Estado, que deve estar a serviço de todo e qualquer cidadão, independente de raça, gênero, religião ou ideologia. Garantir a laicidade do Estado é garantir o próprio Estado Democrático de Direito que, junto com a laicidade, ainda são plantas frágeis, e precisam dos cuidados e proteção dos que estão na estrutura estatal e mais ainda dos que se propõem a ir a campo quebrando a lógica da espera. E mais, cada profissional envolvido no trabalho no Judiciário deverá ter plena consciência do momento histórico que permite que outras práticas como a Mediação, a Conciliação, a Oficina de Parentalidade, a Justiça Restaurativa e a Constelação Familiar sejam usadas como instrumentos para a resolução consensual do conflito e aproveitar esta oportunidade para colaborar na construção do mundo solidário que já se mostra, ainda timidamente, em várias áreas do conhecimento e da prática humana.
Notas e Referências
BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. Petrópolis: Vozes, 2015.
BLANDER, Richard; GRINDER, John. A estrutura da magia: um livro sobre linguagem e terapia. Rio de Janeiro: LTC, 2017.
BOHM, David. O pensamento como um sistema. São Paulo: Madras, 2007.
HARARI, Yuah Naual. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2015.
HELLINGER, Bert. Ordens do Amor: um guia para o trabalho com constelações familiares.
São Paulo: Cultrix, 2001.
HELLINGER, Bert; HÕVEL, Gabriele Ten. Constelações Familiares: o reconhecimento das ordens do amor. São Paulo: Cultrix, 2007.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
GROCHOWIACK, Klaus; CASTELLA, Joachim. Constelações organizacionais: consultoria organizacional: sistêmico-dinâmica. São Paulo: Cultrix, 2007
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2013.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do conhecimento humano. São Paulo: Palas Athena, 2002.
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2011.
PAYÁ, Roberta. Intercâmbio das psicoterapias: como cada abordagem compreende os transtornos psiquiátricos. São Paulo: Roca, 2011.
STORCH, Sami. Direito sistêmico: a resolução de conflitos por meio da abordagem sistêmica fenomenológica das constelações familiares [online]. Disponível em: <https://direitosistemico.wordpress.com>. Acesso em: 01/04/2016.
VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas: Papirus, 2013.
[1] Em sua teoria, Bertalanffy (1975), definiu sistema como “um conjunto de partes interagentes e interdependentes que, conjuntamente, formam um todo unitário com determinado objetivo”.
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