CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO (parte 2)

22/08/2019

 

Dando prosseguimento à análise da Lei nº 9.613/98, que dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, além da prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos nela previstos, iniciada em artigo anterior, cumpre tecer algumas considerações sobre a tipificação da conduta e também sobre algumas questões processuais atinentes ao assunto ora tratado.

O art. 1º da lei, com a redação dada pela Lei nº 12.683/12, assim dispõe: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.” A pena prevista é de reclusão de 3 a 10 anos e multa. Há, ainda, outras figuras equiparadas nos §§ 1º e 2º.

Sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro pode ser qualquer pessoa, inclusive o sujeito ativo da infração penal antecedente (p. ex., o de tráfico de drogas) ou qualquer outra pessoa. Nada impede, a nosso ver, que o sujeito ativo do crime de lavagem seja o sujeito ativo da infração penal antecedente. Há, entretanto, quem entenda que a lavagem, nestes casos, poderia constituir exaurimento da infração penal antecedente, como forma de ocultação do produto do crime, e, portanto, impunível (“post factum impunível”). Sujeito passivo é o Estado.

A conduta típica se desenvolve por meio dos verbos “ocultar” e “dissimular”, dando a noção de esconder ou disfarçar a natureza (qual tipo de bem), a origem (a sua proveniência), a localização (local onde está o bem), a disposição, a movimentação (de que forma o bem está sendo utilizado) e a propriedade (qual o verdadeiro proprietário do bem). Além da existência de indícios suficientes da infração penal antecedente, há necessidade de indícios de ocultação ou dissimulação de bens, valores e direitos.

A autonomia do crime de lavagem de dinheiro é relativa (relação de acessoriedade limitada), pois, tal qual ocorre na receptação, a configuração desse crime depende da infração penal antecedente. Deve, nesse caso, o representante do Ministério Público, se for o caso, trazer cópias de processo-crime envolvendo o ilícito penal em que o agente da lavagem foi o próprio autor ou beneficiário. No caso de crime praticado por organização criminosa, podem ser abrangidos outros delitos de alta concentração de lavagem de dinheiro, como os de receptação e sonegação fiscal.

O crime de lavagem de dinheiro requer, para sua configuração, a existência de uma Infração penal antecedente, que é justamente aquela que gera o objeto material do crime subsequente (o de lavagem de dinheiro), ou seja, o produto ou o proveito. O Brasil adotava anteriormente o sistema de lista (ou de rol), nomeando expressamente os crimes que poderiam gerar a lavagem de dinheiro. Portanto, na sistemática anterior, somente haveria crime de lavagem de dinheiro se os valores ou bens tivessem sido originados da prática dos crimes expressamente arrolados no art. 1º da lei. A Lei nº 12.683/12, entretanto, conferindo nova redação a vários dispositivos da Lei nº 9.613/98, retirou o rol de crimes antecedentes, permitindo que se configure como crime de lavagem a dissimulação ou ocultação da origem de recursos provenientes de qualquer crime ou contravenção penal, como, por exemplo, o jogo do bicho e a exploração de máquinas caça-níqueis.

A citada lei também inovou ao ampliar o rol de pessoas obrigadas a prestar informações ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (art. 9º), atualmente denominado “Unidade de Inteligência Financeira”, pela Medida Provisória 893, de 19 de agosto de 2019.

O crime de lavagem de dinheiro é doloso, caracterizado pela vontade livre e consciente de ocultar ou dissimular bens, valores e direitos provenientes de infração penal.

A consumação do crime ocorre com a simples ocultação ou dissimulação de bens, direitos ou valores espúrios, independentemente do efetivo proveito. Assim, basta que os valores estejam ocultos ou dissimulados, sem necessidade de que sejam efetivamente colocados em circulação.

Outra questão digna de nota é que o “caput” do artigo 1º trata do que se convencionou chamar de “lavagem primária” (ou lavagem direta), enquanto que o § 1º trata da chamada “lavagem secundária” (ou lavagem paralela). As condutas tipificadas no § 1º são também denominadas “reciclagem”.

Vale ressaltar, outrossim, que a regra, na Lei de Lavagem de Dinheiro, é a competência da Justiça Estadual. A competência será da Justiça Federal quando os crimes previstos na lei forem praticados contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira; quando forem praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas; ou quando a infração penal antecedente for de competência da Justiça Federal.

A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos na lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente.

Nesse aspecto, o crime de lavagem de dinheiro seguirá o rito comum ordinário, previsto pelos arts. 394 e s. do Código de Processo Penal.

Mesmo que ainda não processado pela infração penal antecedente, pode o acusado pelo crime de lavagem ser processado normalmente, a teor do art. 2º, II, da lei. Há necessidade, contudo, de um mínimo de provas em relação à infração penal antecedente.

Entretanto, não há necessidade de narrar com exatidão toda a sequência da lavagem de dinheiro. Isso porque exigir um total rastreamento do dinheiro tornaria a lei inaplicável. Basta, no caso, a narração, por exemplo, de depósitos e saques em conta corrente, já que o ônus da origem lícita deverá ser comprovado pelo réu. Se o agente, por exemplo, faz operações do Brasil para diversos países, retorna o dinheiro para o Brasil, mistura-o a capitais de origens lícitas, adquire dólares e depois automóveis e imóveis, normalmente  se torna impossível descrever todo esse “iter criminis” com detalhes.

Estabelece a lei, ainda, a possibilidade de decretação de medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas (vulgarmente conhecidas como “laranjas”) que sejam instrumento, produto ou proveito dos crimes nela previstos ou das infrações penais antecedentes.

Como cautelares, destinam-se essas medidas à reparação do dano oriundo do crime, embora, no caso, ocorra a perda em favor da União e dos Estados (nos casos de competência da Justiça Estadual) dos bens, direitos e valores objeto de crime previsto na lei (art. 7º, I, da Lei de Lavagem de Dinheiro).

A Lei nº 12.683/12, ao modificar a Lei de Lavagem de Dinheiro, possibilitou a alienação antecipada para preservação do valor dos bens sempre que estiverem sujeitos a qualquer grau de deterioração ou depreciação, ou quando houver dificuldade para sua manutenção. O procedimento da alienação antecipada vem regulado pelo art. 4º-A, que trata, inclusive, da destinação dos valores apurados.

Se comprovada a licitude da origem dos bens, direitos e valores apreendidos, o juiz ordenará a imediata liberação destes, mantendo-se a constrição daqueles necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração penal. Isso porque, tal qual ocorre na esfera cível, o juiz, ao decretar liminarmente a medida cautelar, faz tão só uma cognição sumária. O pedido de restituição deverá ser feito necessariamente com o comparecimento pessoal do acusado ou da interposta pessoa (“laranja”).

Vale ressaltar que, quando as circunstâncias o aconselharem, o juiz, ouvido o Ministério Público, nomeará pessoa física ou jurídica qualificada para a administração dos bens, direitos ou valores sujeitos a medidas assecuratórias, mediante termo de compromisso.

Pode haver tratado (em geral, entre apenas dois países) ou convenção (envolve normalmente vários países, como a Convenção de Viena de 1988, que tratou de medidas de combate ao narcotráfico e à lavagem de dinheiro) sobre o assunto, e, nesse caso, pode-se determinar medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores por solicitação da autoridade estrangeira (carta rogatória). Se não houver tratado ou convenção entre os países, poderá ser cumprida a medida por meio de promessa de reciprocidade. Aqui, os recursos serão repartidos pela metade entre o Brasil e o outro país (art. 8º).

A lei determina, por fim, a inversão do ônus da prova. Ao mencionar a expressão “quando comprovada a licitude de sua origem”, para possibilitar a liberação total ou parcial dos bens pelo juiz, a lei inverteu o ônus da prova (normalmente cabe à acusação comprovar a ilicitude da origem). Nesse caso, caberá ao requerente (através de seu defensor e com a sua presença física) a prova da licitude da origem dos bens, direitos e valores apreendidos ou sequestrados. Se não houver essa comprovação, presumem-se eles obtidos por meio ilícito.

 

 

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