Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos – 22/04/2017
Segundo a quase totalidade da doutrina nacional, as formas de instauração do inquérito policial dependerá da natureza da ação penal do crime a ser investigado. Desse modo, o inquérito policial pode ser instaurado, segundo a doutrina dominante, de seis formas, a saber: 1) de ofício (art. 5º, I, do CPP), nas hipóteses dos crimes de ação penal pública incondicionada; 2) mediante representação (art. 5º, § 4º, do CPP), nos crimes de ação penal pública condicionada à representação do ofendido; 3) mediante requisição do Ministro da Justiça (art. 145, par. único, do CPP), nos crimes de ação penal pública condicionada à autorização do Ministro da Justiça; 4) mediante requerimento do ofendido (art. 5º, II e § 5º, do CPP), no caso de ação penal privada; 5) mediante requisição de membro do Poder Judiciário e do Ministério Público (art. 5º, II, do CPP), em qualquer crime, inclusive nas hipóteses de ação penal pública condicionada e ação penal privada, desde que satisfeitas as condições objetivas de procedibilidade; 6) mediante auto de prisão em flagrante (art. 8º, do CPP).
Apesar disso, esse não nos parece o melhor posicionamento, pelas razões que seguem.
Primeiro, a presidência do inquérito policial é um ato privativo do Delegado de Polícia. Disso decorre que, no âmbito da Polícia Judiciária, a atribuição para instaurar o inquérito policial, assim como proceder às diligências necessárias à sua conclusão, é do Delegado de Polícia. Com efeito, a Lei nº 12.830/2013 estabelece, no art. 2º, § 1º, da referida lei, que, “ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais”. Como regra, a atribuição será da autoridade policial da circunscrição onde ocorreu o crime (art. 4º, caput, do CPP). Porém, nada impede que o delegado realize diligências em outras circunscrições (art. 22 do CPP). Somente um ato do Delegado de Polícia, portanto, pode instaurar um inquérito policial.
Segundo, a requisição do Ministro da Justiça, a representação e o requerimento do ofendido são condições objetivas de procedibilidade, sem as quais o Estado não pode iniciar a persecução criminal. Podem ser, de igual modo, a forma de comunicação da prática de um crime às autoridades constituídas, especialmente ao Delegado, ao membro do Ministério Público e ao Juiz. Nesta hipótese, funcionam como notitia criminis e não como forma inaugural do inquérito policial.
Terceiro, a requisição do Poder Judiciário ou do Ministério Público configuram uma ordem para a instauração do inquérito. E se é ordem, ela não pode ser a forma instauradora. Seria um contrassenso afirmar que a ordem do juiz ou promotor para que o delegado de polícia instaure inquérito policial fosse, ao mesmo tempo, sua peça inaugural. Ora, a requisição feita por essas autoridades é dirigida exatamente ao Delegado de Polícia para que este instaure o respectivo inquérito. Noções mais elementares de lógica evidenciam que, nestes casos, quem instaura é a autoridade policial e não quem requisita.
Também não parece acertada a doutrina segundo a qual, nestas hipóteses, a autoridade policial deva fazer apenas um simples despacho, na própria requisição, determinando as providências a serem realizadas pelo escrivão[1]. A doutrina que assim entende, salvo melhor juízo, confunde o que provoca (notitia criminis) uma investigação com o que a inaugura (ato administrativo).
Dito isso, quais os atos instauradores do inquérito policial? Em verdade, apenas dois[2], ambos a serem realizadas pelo Delegado de Polícia: a) a portaria, em todas as hipóteses em que não houver prisão em flagrante, atendidas as condições objetivas de procedibilidade, claro; e b) o auto de prisão em flagrante, quando esta for formalizada.
O critério diferenciador do ato inaugural do inquérito, portanto, não é a natureza da ação penal do crime a ser investigado, como defende a doutrina majoritária, mas a prisão em flagrante ou não do imputado.
Com efeito, o auto de prisão em flagrante é, sem dúvida, forma de instauração de inquérito policial. Aliás, sobre isso não há qualquer divergência doutrinaria.
Não sendo o caso de prisão flagrante, portanto, em todas as demais formas de comunicação da prática de fato criminoso, o inquérito deve ser instaurado mediante portaria da autoridade policial.
A portaria é o documento hábil a inaugurar uma sindicância, como é o caso do inquérito policial. Segundo Diogenes Gasparini, portaria “é a fórmula pela qual as autoridades de qualquer escalão de comando, desde que inferiores ao Chefe do Executivo, expedem orientações gerais ou especiais aos respectivos subordinados ou designam servidores para o desempenho de certas funções ou, ainda, determinam a abertura de sindicância ou inquérito administrativo”[3].
No mesmo sentido é a previsão da Lei paulista nº 10.177/1998, a qual versa sobre o processo administrativo estadual. Com efeito, a referida lei prevê que são atos administrativos de competência comum “a todas as autoridades, até o nível de Diretor de Serviço; às autoridades policiais; aos dirigentes das entidades descentralizadas, bem como, quando estabelecido em norma legal específica, a outras autoridades administrativas, a Portaria” (art. 12, inc. II, a).
Ainda sobre este tema, na doutrina pátria, também predomina o entendimento segundo o qual o inquérito policial é discricionário ou facultativo. Ou seja, para essa corrente doutrinária, a instauração do inquérito policial não seria obrigatória[4]. Pensamos seja essa perspectiva um equívoco decorrente do parâmetro utilizado pela doutrina que defende esse posicionamento. Com razão, assim entendem pelo fato de ser o inquérito dispensável para a propositura da ação penal.
Não discordamos que seja o inquérito policial dispensável. Isso significa apenas que o titular da ação penal pode propô-la com base em outros elementos de convicção acerca da materialidade e autoria do caso penal em apreço. Esta característica é decorrência lógica do sistema multifacetado de investigação preliminar adotado no Brasil. Não há monopólio da investigação criminal pela Polícia Judiciária. Diversas outras instituições podem realizar investigações. E o resultado delas pode servir de base para a propositura da ação penal. Além disso, nas hipóteses de ação penal pública, qualquer do povo pode provocar a iniciativa do Ministério Público, fornecendo as informações essenciais quanto à autoria e materialidade, nos termos do art. 27 do CPP. Além desse dispositivo, também os arts. 12, 39, § 5º, e 46, § 1º, todos do CPP, lidos sistematicamente, dispensam o inquérito policial.
A dispensabilidade, porém, tem como parâmetro o sistema de investigação preliminar, como gênero que é e diz respeito à possibilidade que o membro do Ministério Público propor a ação penal com base em outras formas de investigação que não o inquérito.
O inquérito policial é, ao contrário do posicionamento dominante, obrigatório. Essa obrigatoriedade tem como parâmetro apenas a investigação policial e se dirige ao Delegado de Polícia. Ou seja, havendo aparência da prática de fato criminoso de ação penal pública incondicionada, de médio e de maior potencial ofensivo, a autoridade policial tem o dever de instaurar o respectivo inquérito policial. Obviamente, quando se tratar de crime de ação penal pública condicionada ou ação penal privada, a instauração do inquérito dependerá da satisfação das condições objetivas de procedibilidade, no caso, da representação da vítima ou da requisição do Ministro da Justiça, no caso de ação penal pública condicionada, e do requerimento da vítima, na hipótese de ação penal privada.
Veja-se, como exemplo dessa obrigatoriedade, a recente previsão da Lei nº 13.344/2016, no sentido de que, nos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, o inquérito policial deverá ser instaurado no prazo máximo de 72 (setenta e duas) horas, contado do registro da respectiva ocorrência policial (art. 13-B, § 3º, do CPP).
Notas e Referências:
[1] Neste sentido, cf. BRITO, Alexis Couto de; FABRETTI, Humberto Barrionuevo; LIMA, Marco Antônio Ferreira. Processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 2014, p. 61.
[2] Em sentido semelhante, cf. MARCÃO, Renato. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 133; NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: RT, 2014, p. 189; e ROSA, Alexandre Morais. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 105
[3] GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 81.
[4] LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 189, apesar de se filiar a esse entendimento, asserem que o ideal é que o sistema fosse o misto, ou seja, que o inquérito policial fosse obrigatório para os crimes graves e facultativo para os de menor gravidade.
Bruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor do MBA em Direito Público da FGV-RJ. Professor do CEI, Curso Preparatório para Delegado de Polícia Civil. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Fundador, em parceria com o juiz André Guasti Motta, do site Penso Direito (www.pensodireito.com.br) e colunista do site www.delegados.com.br.
.
Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.
Imagem Ilustrativa do Post: Printing the Web // Foto de: Andy Melton // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/trekkyandy/267851538
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.