Consciência Negra e Sistema Penal

18/11/2015

Por Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho - 18/11/2015

Dizem que o diabo veio nos barcos europeus, desde então o povo esqueceu que entre os meus todo mundo era deus.

EMICIDA, 2015, MUFETE

Mulatos, cafuzos, caboclos, cabras, brancos e negros, mas porque não dizer pretos? Pés descalços, separados por tudo, apesar de unidos pelo que interessa, o ser, que felizmente é humano.

Olhos na Europa com pés fincados na senzala do barro preto, cabelos esticados sem respeito aos meus que são crespos; nobres, brasões, barões, porém pretos; pretos sem alma, cortiços ou valas.

Respeito sua fé, sua cruz, mas temos duzentos e cinquenta e seis odus, todos feitos de sombra e luz, bela, sensíveis com a luz das velas (tendeu?) EMICIDA, 2015, MUFETE

Perdoem a linguagem poética, mas às vezes somente através dela conseguimos alcançar a essência de algo que sentimos, mas que não logramos êxito em ordenar, em razão da escassez da linguagem e a imensidão do sentir, já que, nas palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho “sempre se teve presente que há algo que as palavras não expressam; não conseguem dizer, isto é, há sempre um antes do primeiro momento; um lugar que é, mas do qual nada se sabe, a não ser depois, quando a linguagem começa a fazer sentido (COUTINHO, 2000).

E tal sentir tem o gosto amargo de revolta, por termos nos deixado escravizar por um arsenal teórico acrítico que conduz à manutenção do status quo, a garantia da ordem de uma sociedade igual aos olhos distantes de nossas leis e profundamente desigual na realidade.

Em linhas gerais, garantir uma sociedade desigual é garantir a desigualdade; garantir a aplicação da lei penal é garantir a proteção dos interesses das classes dominantes, a não ser que se acredite na falácia da universalidade dos bens jurídicos, ou na universalidade de proteção, bem como no mantra de que o sistema penal resolve conflitos sociais.

Verdade seja dita, nosso sistema penal não resolve nem seus próprios problemas, quanto mais os conflitos que assolam a sociedade, e o que é pior, além de não ajudar agrava sensivelmente a situação, já que vivemos com um processo de criminalização que escolhe muito bem a sua clientela e a fideliza.

A sistemática penal nasce para cumprir finalidades dentro de uma sociedade que se organiza de determinada forma, para realizar algo e não para a simples celebração de valores eternos, tocando-lhe, portanto, uma função política. Função política que é identificada normalmente, por diversos autores, como garantia das condições de vida em sociedade, preservação do corpo social, sem levar em consideração que, por exemplo, o direito penal nazista garantia as condições de vida da sociedade alemã subjugada pelo movimento, bem como que não há forma de se trabalhar com interesse de corpo social em uma sociedade dividida em classes, na qual os interesses são logicamente antagônicos. Posto o pensamento dessa forma, fica nítido o caráter conservador da sistemática penal que visa garantir e estruturar determinada ordem econômica e social (BATISTA, 2005, p.18-21).

En la realidad, pese al discurso jurídico, el sistema penal se dirige casi siempre contra ciertas personas más que contra ciertas acciones (ZAFFARONI, 1986, p.32)

Como se depreende da análise de nossa sistemática, a interpretação das normas, leia-se fixação do sentido destas, não parece servir para a proteção dos indivíduos, mas sim de legitimação de um sistema de segregação. Defendemos um regime fascista e procuramos a solução do problema, sem nos dar conta, que muitas vezes somos o problema.

Regime fascista mesmo meus caros, pois equivoca-se quem pensa que tal movimento nasceu e morreu na Itália; como esclarecido por Rubens Casara “Mussolini nunca esteve sozinho. Diversos movimentos semelhantes surgiram no pós-guerra com a mesma receita que unia voluntarismo, pouca reflexão e violência contra os inimigos” (CASARA, 2015).

Os fascistas, como já foi dito, talvez não saibam o que querem, mas sabem bem o que não suportam. Não suportam a democracia, entendida como concretização dos direitos fundamentais de todos, como processo de educação para a liberdade e de limites ao exercício do poder. Essa mistura de pouca reflexão (o fascismo, nesse particular, aproxima-se dos fundamentalismos, ambos marcados pela ode à ignorância) e recurso à força (como resposta preferencial para os mais variados problemas sociais) produz reflexos em toda a sociedade. (CASARA, 2015)

Pensamento fascista tão arraigado no recôncavo baiano revolucionário, que de revolucionário não se vê mais muita coisa; basta verificar a jurisprudência majoritária do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia no que tange, por exemplo, às prisões preventivas, que levam em consideração todas as presunções possíveis, menos a de inocência, para o leitor compreender do que estamos falando.

Martelo para quem? Respeito para quem? Mandado para invadir a casa de quem? Pecado de quem e pena para quem?

Esquecemos até que vivemos em um Estado de Direito; direito que está para o poder da mesma forma que as garantias estão para a eficiência da violência estatal, daí a necessidade de se focar na natureza protetiva das normas penais e processuais penais e não ao contrário, sob pena de realçar a exceção (violência estatal) e enfraquecer a regra (não violência) (BINDER, 2003, p.26).

Processo penal como aglomerado de discursos repressores, jurisdição penal a serviço do status quo, raciocínio abstrato conceitual que por assim ser não leva em consideração a concretude da vida. Rezamos em latim para falar com um deus que ouve em Iorubá e em Tupi, vai entender!

Já defendemos aqui no Empório, mais precisamente no texto “As Masmorras Tupiniquins” (acesse aqui) a imperiosa necessidade de se trabalhar com um pensamento decolonial, com o fito de atender as necessidades locais, afinal, nas palavras de Salah Khaled: “A distância que separa nossos jardins devastados dos jardins floridos da Europa é incomensurável: afinal, nós convivemos diariamente como um sistema penal predador de direitos humano”. (KHALED, 2015)

Se João Ubaldo Ribeiro fosse penalista certamente diria que trabalhamos com um sistema penal de Perilo Ambrósio (RIBEIRO, 2015), cheio de rancor, nobreza e escravidão, com vergonha do solo que nos abençoa e nojo da mistura que constitui nosso povo.

Bem e mal na terra dos deuses; conceito abstratamente desconhecido para os habitantes da Vera Cruz de Itaparica em 1647. Difícil de entender um conceito que divide os homens em bons e maus, a não ser como um maniqueísmo estúpido a serviço do domínio; de qualquer sorte a maioria daqueles ignorantes nem sequer tinham uma lista para o Bem e o Mal, nem ao menos dispunha de palavras para designar essas duas coisas tão importantes. (RIBEIRO, 2015, p. 37)

Depois da redução, viu-se que alguns eram maus e outros eram bons, apenas antes não se sabia. Mulher má não ir à doutrina, quer andar nua, não quer que o padre pegue na cabeça do filho e lhe besunte a testa de banha esverdeada, dizendo palavras mágicas que podem para sempre endoidecer a criança. Feio, feio, mulher má. Mulheres boas não falam com mulher má, mulher má fica sozinha (...) Cada vez mais maluca, castigo do céu porque é mulher má. (...) vai para um lugar onde o fogo queima sem cessar (...). (RIBEIRO, 2015, p. 37)

Ao fim, não me restam maiores palavras para dar conta da imensidão da revolta e vergonha; vergonha de ser baiano e fascista, nascido no recôncavo e reacionário; de meus pés tocarem o solo de Pirajá onde outrora fora travada batalha contra o colonialismo português, consolidando a independência da então província baiana.

Negritude que outrora era desalmada ostenta hoje um título de nobreza rara, sem brasão, sem opressão; Reis e Rainhas do Ilê, assim posso dizer, essa é a forma do nosso pensar, essa é a cara de nosso ser.

Por favor meus caros, respeitem meus cabelos crespos!


Notas e Referências:

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Renavan, 2005;

BINDER, Alberto Martins. Introdução ao Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003;

CASARA, Rubens Roberto Ribeiro Casara. Conversar com um fascista: um desafio. 2015. Disponível em: < http://justificando.com/2015/10/24/conversar-com-um-fascista-um-desafio-/>. Acesso em 11 nov 2015;

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. 2010. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/introducao-aos-princHYPERLINK "http://emporiododireito.com.br/introducao-aos-principios-gerais-do-direito-processual-penal-brasileiro-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/"ipios-gerais-do-direito-processual-penal-brasileiro-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/. Acesso em 16 nov 2015;

KHALED, Salah H.. Garantismo à La Carte: integral, desnatado, ou semi-desnatado?. 2015. Disponível em: < http://justificando.com/2015/09/26/garantismo-a-la-carte-integral-desnatado-ou-semi-desnatado/> Acesso em 01 out 2015.

OLIVEIRA, Leandro Roque (Emicida). Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa. São Paulo, 2015.

RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 1986;


*Assessoria Linguística: Fernanda Quaranta Lobão Bairral.
Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho .

Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho é Advogado Criminal. Pós-Graduado em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Pós-Graduado em Direito e Magistratura (Universidade Federal da Bahia em convênio com a Escola de Magistrados da Bahia). Membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal.

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Imagem Ilustrativa do Post: Faces at the Pow Wow // Foto de: Tony Alter // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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