Conhecimento, força e o domínio jurisdicional

29/07/2017

Por Thiago M. Minagé – 29/07/2017

Tradicionalmente, aprende-se e assim permanece o ensino de uma ideia contraditória, de que, para prevalecer a liberdade é necessário estabelecer uma relação de domínio: de uns [poucos] sobre outros [muitos]. Como se a garantia de uma vida mais feliz passasse pela preocupação e constituição de um estado dominador; que ao ser constituído deve introduzir restrições à liberdade dos subordinados, para um convívio comum dessas pessoas; sendo que, parte-se da ideia que todos, antes da constituição do Estado, viviam em constante guerra entre si, fruto das paixões e condições naturais das pessoas, que nessa perspectiva, seriam contraditórias e egoístas [eis a ideia perigosa de redução dos direitos individuais e prol da coletividade]. Logo, o exercício do poder se faz necessário para impor respeito e temor às punições, que serão impostas àqueles que vierem a descumprir as regras do pacto social firmado[1] [em nome da coletividade pune-se a individualidade].

Esse apego a uma compreensão, mais que contraditória [perda da liberdade para ser livre], em que as paixões humanas são colocadas em contraposição às leis naturais [tendo ideia de respeito, apenas, quando convém] e, por conseguinte, afetam diretamente a justiça e a equidade, nada mais faz que, alimentar o exercício do poder intimidador, que visa uma pseudo-segurança social justa que evitaria o confronto em sociedade. Concepção essa que pressupõe uma ideia de vontade universal, de segurança permanente e luta contra o inimigo [cria-se o inimigo], pois, sempre haveria uma iminente guerra entre os homens, a todo o momento, por conta de desejos e paixões individuais[2].

Normalmente, não se percebe, mas a mantença desse raciocínio leva ao culto da honra[3], ou seja, o poder de um homem, universalmente considerado que consiste nos meios de que dispõe para alcançar um bem, posição social, ou mesmo, exercer algum poder. Logo, essa iminência constante da guerra, de uns contra os outros, leva à busca de um meio de contê-la [leis].

Assim, somente estaria apto a exercer um poder em nome do estado; como por exemplo, ocupar um cargo de juiz; aquele que possui as melhores qualidades exigidas para o bom desempenho de suas funções, ou seja, de acordo com sua riqueza, cargo, função, família, estima pública, honrarias, títulos honoríficos e, ainda, detentor agraciado dos secretos desígnios de Deus, por meio dos quais viabilizaria uma forma de ostentar toda essa honraria em face dos outros [subordinados], para que, ao ser designado para ocupar o cargo de exercício do poder, fosse respeitado pelos demais[4]. O poder precisaria ser visível para imposição de respeito e temor à punição[5].

Por isso, afirmações como: o fato de que as pessoas, constantemente, se envolvam em competições pela honra e por dignidade, acaba por ensejar ódio e inveja entre elas, faz com que encontrem felicidade apenas nas comparações entre si; julgam-se mais sábios e capacitados que os outros; apresentam o que é bom, sob aparência de mal e, o que é mal, sob aparência de bom; as pessoas quanto mais satisfeitas, mais conturbadas ficam; o acordo entre si é possível apenas mediante um pacto. Ou seja, tudo leva a compreender que as pessoas, por si só, não sabem conviver em sociedade; não diferenciam bem individual do bem comum; o uso da razão é um problema de convívio; a linguagem deturpa o sentido de todas as coisas ditas pelas pessoas; sendo a satisfação do próximo um problema para o outro, no seio de convívio social e, por fim, que as pessoas não sabem conviver sem regras impostas por outro par[6].

Compreender nada mais é que um jogo, ou seja, o resultado do jogo, uma composição entre rir, deplorar e detestar. O jogo e a luta, pautado por esses três instintos, que impedem naturalmente de se aproximar do objeto e de se identificar com ele, faz evitar, quase que como uma proteção, criando uma ruptura de afastamento, ou mesmo destruição pelo ódio entre a pessoa e o objeto.

O conhecimento não se identifica com o objeto, não possui relação de assimilação, mas uma relação de distância, e necessária dominação para controlar e não ser controlado. Essa hostilidade cria um sistema precário de poder, percebe-se aqui, especificamente, nesse ponto, a íntima relação entre poder e conhecimento. A ideia política de localização do poder é a que melhor explica seu exercício, como dito, há adequação entre formas de poder e estrutura política, mesmo porque, o aparato estatal é uma forma concentrada de apoio.

Analisar a ideia de [des] legitimação do poder tem uma forte base em Nietzsche, sendo melhor trabalhada por Foucault. A análise do exercício do poder, segundo o critério de dominação [conhecimento] e repressão [força], como uma guerra, em que se opor a este poder, não seria mais trabalhar na seara da [i] legitimidade e, sim, na oposição entre luta e submissão, é uma tarefa árdua que requer maiores delineamentos para entendimento do tema proposto. Imprescindível estabelecer que a guerra não se limita a um único ato político, mas, sim, em um verdadeiro instrumento de exercício cotidiano da política, ou mesmo, uma continuação das relações políticas, ou seja, a política é a guerra continuada por outros meios, tendo em vista que, essa multiplicidade das relações de força jamais poderá ser codificada de forma completa, seja como guerra ou como mero ato político[7].

Todo exercício de poder, tem como ponto de partida uma relação de conhecimento e força, estabelecida em um dado momento histórico, na guerra e pela guerra, ou seja, o poder político, como forma de expressão da guerra, tem como finalidade a pseudo-busca da paz na sociedade civil, perseguida pelos detentores do conhecimento e executores do poder. O poder político tem como função perpetuar a relação de força, por meio de uma guerra silenciosa, tendo como centro das atenções o foco de onde emanam as demandas do poder, as realidades sociais, tais como, as desigualdades econômicas, de conhecimento e demais disparidades.

Assim, Foucault[8], ao se referir sobre a análise do poder no discurso político, questiona a expressão ‘luta’ da seguinte forma:

Em alguns discursos políticos, o vocabulário das relações de forças é muito utilizado; a palavra “luta” é a que mais aparece. Ora, parece-me que o problema subjacente a esse vocabulário não é colocado: a saber, temos ou não de analisar essas “lutas”, como as peripécias de uma guerra, temos de decifrá-las segundo uma grade, que seria a da estratégia e da tática? A relação de forças na ordem da política é uma relação de guerra? 

Necessário, nesse contexto, a análise dos efeitos dos atos governamentais sobre as condutas, que propiciará uma melhor compreensão das relações de poder, pois, o termo conduta remete ao ato de conduzir os outros e, à maneira de se comportar de acordo com as possibilidades existentes, conhecidas, dominadas pelos conhecedores e detentores do poder.

O poder é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários, ou do compromisso de um com o outro, do que da ordem do governo, ou seja, deve ser esquecida a ideia de guerra pelo enfrentamento [de um contra o outro], e entender conforme os atos governamentais, que expressam as relações de poder e submissão. Uma sociedade inteiramente atravessada pela guerra foi sendo substituída, pouco a pouco, por um estado dotado de instituições militares[9]. Não se trata da guerra descrita por Hobbes, de uns contra todos[10], que é ilusória, não passando de um jogo de representações, para que cada um mensure o perigo que o outro lhe oferece e se tiver que lutar, qual a medida da força a ser utilizada. Na verdade, Hobbes trata como fundação do Estado e sua forma a não guerra.

Ao consumar essas transformações sociais, surge um discurso sobre relações da sociedade e da guerra, um típico discurso histórico, de cunho político, que se contrapõe ao discurso jurídico-filosófico, preocupado com a questão da soberania, fazendo da guerra e das batalhas reais [diferente da guerra de Hobbes], a origem de todas as instituições de exercício do poder, ou seja, o nascimento do próprio estado[11]. Pois, em meio às conquistas bélicas ou incendiárias, surgem as leis. Um motor secreto que constitui as instituições, a lei e a ordem[12].

Assim, como o discurso jurídico filosófico subordina-se à questão da soberania e da lei, acaba-se por identificar a permanência da guerra na sociedade por meio do discurso histórico, de cunho político que, na verdade, funciona como arma para uma vitória partidária, por exemplo, quando carregado de críticas constantes e superficiais, porém, de origens e soluções místicas, quase que inalcançáveis pelo senso comum[13].

Ao focar a ideia nas relações de poder, abandona-se a visão de classe social dominante, tais como, patrão e empregado, mestre e escravo e, passando a compreender o exercício do poder nas relações humanas, que sempre está presente, no que se refere à ideia de condução da vida, de uns pelos outros. Independentemente do âmbito de vivência social, pois, o que importa, são os conhecedores que detém o poder[14].

E preciso observar, também, que só pode haver relações de poder, na medida em que, os sujeitos são livres [oposto a Hobbes, que coloca a liberdade como fruto do exercício do poder]. Se um dos dois estiver completamente à disposição do outro e se tornar sua coisa, um objeto sobre o qual ele possa exercer uma violência infinita e ilimitada, não haverá relações de poder. É necessário, portanto, para que se exerça uma relação de poder, que haja sempre dos dois lados, pelo menos, uma forma de liberdade[15]. Mesmo quando a relação de poder é completamente desequilibrada, quando verdadeiramente pode-se dizer que um tem todo o poder sobre o outro, um poder só pode exercer-se sobre o outro, quando reste, ainda, a este último, a possibilidade de se matar, de saltar pela janela, ou de matar o outro. Isso quer dizer que, nas relações de poder, há forçosamente a possibilidade de resistência, porque se não houver possibilidade – de resistência violenta, de fuga, de astúcia, de estratégias que invertam a situação –, não haverá, de modo algum, relações de poder. Se há relações de poder, em todo o campo social, é porque há liberdade em todo lugar.

Ao se afirmar que o poder está em todo lugar, não há espaço para a liberdade e acaba-se por incidir no mesmo erro contraditório, de que para ser livre é necessário abrir mão da liberdade[16], logo, a ideia de que o poder é um sistema de dominação e que não deixa margem para qualquer tipo de liberdade, peca por permitir uma afirmação exclusiva da própria liberdade. O problema não está no poder em si, mas no seu exercício, é indispensável identificar quando o poder se torna um mal pela forma como é exercido, e não o eliminar como se fosse um erro sua existência[17].

Dentro dessa perspectiva, aqui traçada, compreende-se melhor o porquê da violação constante do contraditório, da publicidade e da oralidade na investigação criminal ou no próprio processo penal. Quando se admite que o exercício do poder se perfaça através do conhecimento e exercício da força, nada mais estratégico, que impedir a parte contrária [aquela que é ou será submetida às consequências do exercício do poder] acesso às informações ou decisões que possam afetá-la diretamente. Ou seja, se publicamente é permitido o contraditório para que o pretenso afetado possa falar e participar diretamente na construção do ato decisório [ato de poder] este poderá ser enfraquecido ou mesmo frustrado [certamente isso não interessa ao detentor do poder].

Nada mais útil, que um decreto de prisão preventiva, onde o preso [investigado ou acusado] seja surpreendido e impossibilitado de tomar conhecimento prévio das imputações ou mesmo dos fundamentos que levaram à privação de sua liberdade. Assim, cria-se o [mal] dito contraditório diferido, manipulando de forma retórica, um ilusório respeito ao contraditório, porém, nesse caso, reduzido à escrita e sem qualquer possibilidade de influência no ato decisório [ato de poder], pois o mesmo já foi tomado, praticado e fundamentado.

O exercício do poder, mediante o conhecimento e uso da força, com violação permanente do contraditório público e oral, fomentado diariamente em decretos judiciais, acaba por corroborar o que na semana passada escrevi [ver aqui]: [...] me torno cético, cada vez mais, com a possibilidade de que o direito poderia ou possa influenciar positivamente uma sociedade. Loucura, delírio? Talvez. Mas há de considerar a ideia como possível.  


Notas e Referências:

[1] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução: Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2014, p. 138.

[2] Ibid., p. 139.

[3] Ibid., p. 81-82.

[4] Ibid., p. 80-86.

[5] Ibid., p. 138-139.

[6] Ibid., p. 140-141. Essa parte é parafraseada a partir de Hobbes, na comparação entre homem em sociedade e o convívio dos animais. Sendo que, estes não possuem a figura do Estado para que possam viver em harmonia.

[7] Nesse sentido, fica melhor o entendimento do porquê de não podermos ter o poder decorrente da lei e, também, a ineficácia do governo do império das leis.

[8] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 206.

[9] Ibid., p.72.

[10] HOBBES, 2014, p. 83.

[11] FOUCAULT, 1997, p.73.

[12] Ibid., p. 73.

[13] Ibid., p. 75.

[14] FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits, 1954-1988, v. IV: 1980-1988. Daniel Defert e François Ewald. Paris: Gallimard, 1994, p. 237.

[15] MAGALHÃES, Theresa Calvet de. Violência e/ou política. In: PASSSOS, Izabel C. Friche. Poder, normalização e violência (Org.). 2. ed. Belo Horizonte: Authêntica, 2013, p. 23-40.

[16] HOBBES, op. cit., p. 138.

[17] FOUCAULT, 2001, loc. cit.


Sem título-15

Thiago M. Minagé é Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Professor substituto da UFRJ/FND. Professor de Penal da UNESA. Professor de Processo Penal da EMERJ. Professor da Pós Graduação ABDConst-Rio. Colunista do site www.emporiododireito.com.br. Autor do Livro Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. Membro do IAB. Advogado Criminalista.

E-mail: thiagominage@hotmail.com


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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