CONFLITOS E TEORIA GERAL DOS SISTEMAS

04/10/2019

Coluna Práxis / Coordenadoras Juliana Lopes Ferreira e Fabiana Aldaci Lanke

Não é novidade para operadores do Direito, em especial para os que atuam diretamente nos conflitos relacionados ao núcleo familiar, que a extinção de um processo judicial não significa o encerramento do conflito. Ao contrário, em muitos casos, os mesmos atores de um processo, em tramitação ou já extinto, protagonizam litígios em outros processos, produzindo um acúmulo de demandas.

O fenômeno pode ser explicado pelo paradigma desenvolvido por René Descartes [1], segundo o qual “toda a natureza humana funciona de acordo com leis mecânicas, e tudo no mundo material pode ser explicado em função dos arranjos e movimentos de suas partes” [2]. Essa concepção, sem dúvida, muito contribuiu para o desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade. Porém “os pensadores do século XVIII levaram esse programa até ainda mais longe, aplicando os princípios da mecânica newtoniana ao estudo da natureza humana e da sociedade humana” [3]. Ao passo que Locke “tentou reduzir os fenômenos observados na sociedade ao comportamento de seus indivíduos” [4]. Como consequência, “o comportamento humano tinha de ser explicado pelo esquema mecanicista estímuloresposta (E-R)” [5].

Nessa perspectiva, após Descartes, a visão mecanicista de mundo “modelou as percepções das pessoas não somente a respeito da natureza, do organismo humano e da sociedade, mas também das organizações humanas dentro da sociedade” [6]. Por isso, normalmente “as pessoas têm uma visão muito fragmentada da realidade, uma vez que foram educadas com base em paradigma cartesiano-newtoniano” [7].

No decorrer do tempo, o enfoque cartesiano, contudo, mostrou-se inadequado para muitas questões. As lacunas deixadas pela teoria mecanicista fizeram surgir uma teoria sistêmica chamada “tectologia” [8], desenvolvida por “Alexander Bogdanov (1873-1928), médico pesquisador, filósofo e economista russo” [9].

Posteriormente, surgiram outras “obras preliminares” [10] no campo da teoria geral dos sistemas.

Todavia, só em 1937, com a publicação dos estudos do biólogo Ludwig von Bertalanffy [11], é que a Teoria Geral dos Sistemas surgiu como um novo paradigma de “princípios universais aplicáveis aos sistemas em geral” [12]. Para Bertalanffy, um sistema é “conjunto de elementos em interação” [13] e pode ser classificado em fechado e aberto. Para o Autor, “um sistema é ‘fechado’ se nenhum material entra nele ou sai dele. É chamado ‘aberto’ se há importação e exportação de matéria” [14].

A mudança de perspectiva da Teoria Geral dos Sistemas fez surgir “o pensamento sistêmico como um novo paradigma da ciência” [15]. Segundo Capra e Luisi:

A primeira característica do pensamento sistêmico, e a mais geral, é a mudança de perspectiva das partes para o todo. Os sistemas vivos são totalidades integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas às de partes menores. Suas propriedades essenciais, ou ‘sistêmicas’, são propriedades do todo, que nenhuma das partes tem. Elas surgem de padrões de organização característicos de uma classe particular de sistemas. As propriedades sistêmicas são destruídas quando um sistema é dissecado, física ou conceitualmente, em elementos isolados [16].

A importância do assunto reside no fato de que a Teoria Geral dos Sistemas é aplicável à pessoa humana, considerada isoladamente enquanto “sistema de personalidade ativa” [17], bem como aos mais diversos sistemas existentes na sociedade. No dizer de Bertalanffy:

[A] sociologia, com seus campos afins, é essencialmente o estudo de grupos ou sistemas humanos, desde os pequenos grupos como a família ou a equipe de trabalho (...) até as maiores unidades como nações, blocos de poder e relações internacionais [18].

A constatação de Bertalanffy nos permite concluir que a análise de uma conduta considerada isoladamente, destacada do sistema no qual foi produzida, não permite a apreensão da real extensão do conflito, tampouco sua origem. Convém lembrar que a proximidade de algo, por óbvio, contribui para a limitação da visão do observador a respeito do todo. Já a possibilidade de análise de um ponto de vista mais amplo permite ao observador uma compreensão mais abrangente, a qual pode revelar aspectos que sequer haviam sido percebidos.

Por certo, o paradigma cartesiano de percepção da realidade, seja ela interna ou externa, contribuiu para inúmeros confrontos e disputas que fazem parte da história da humanidade, já que, ao desconsiderar a interação do universo existencial humano no qual as condutas são produzidas, seja por ação ou omissão, limita a percepção das partes envolvidas acerca do conflito. Evidencia-se, assim, a importância de um novo paradigma sistêmico:

A concepção de sistema e o reconhecimento das interações vêm limitar a aplicação dos procedimentos analíticos na ciência, uma vez que os sistemas não são inteligíveis por meio da investigação de suas partes isoladamente. As relações são o que dá coesão ao sistema todo, conferindo-lhe um caráter de totalidade ou globalidade, uma das características definidoras do sistema. [19]

A oportunidade de compreender o conflito de forma sistêmica é, portanto, fundamental para a construção de soluções que atendam aos sistemas em interação. Daí a importância da constelação, ferramenta que permite uma visão sistêmica do conflito, suas variáveis e interações.

 

Para saber mais sobre o assunto, confira o livro “Conversando sobre Constelação Familiar na Justiça.”, coordenada pelos autores André Tredinnick e Juliana Lopes Ferreira e publicada pela Empório do Direito, editora Tirant Lo Blanch, lançada no dia 03 de outubro de 2019.

 

Notas e Referências

[1] “Aquilo que consideramos o ‘racionalismo’ encontra neste filósofo uma de suas grandes expressões”. In: DESCARTES. Discurso do Método. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre: L&P, 2017, p. 16.

[2] CAPRA, Frijot; LUISI, Pier Luigi. A Visão Sistêmica da Vida: Uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Tradução: Mayra Teruya Eichemberg e Newton Roberval Eichemberg. São Paulo-SP: Cultrix, 2014, p. 61.

[3] CAPRA, op. cit., p. 72.

[4] Idem.

[5] BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. Tradução: Francisco M. Guimarães, Petrópolis, RJ: Vozes, 2015, p. 25.

[6] CAPRA, op. cit., p. 87.

[7] SOUZA, Gilberto de; DI BIASI, Francisco. Organizações Auto-Organizadoras. São Paulo-SP: Pontes Editores, 2016, p. 34.

[8] CAPRA, op. cit., p. 117.

[9] Idem.

[10] BERTALANFFY, op. cit., p. 31.

[11] “Ludwig von Bertalanffy nasceu em Viena em 1901. Biólogo e filósofo, foi o criador e principal expoente da teoria geral dos sistemas; reconhecido no mundo inteiro como o pioneiro em defender a visão organística na biologia e o papel da simbologia na interpretação da experiencia humana. É autor de diversos livros, sendo muitos deles traduzidos para outras línguas.” In: BERTALANFFY, op. cit..

[12] BERTALANFFY, op. cit., p. 57.

[13] BERTALANFFY, op. cit., p. 63.

[14] BERTALANFFY, op. cit., p. 162.

[15] VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: o novo paradigma da ciência. 10ª edição revista e atualizada. Campinas-SP: Papirus: 2013, p. 147.

[16] CAPRA, op. cit., p. 113.

[17] BERTALANFFY, op. cit., p. 246.

[18] BERTALANFFY, op. cit., p. 249.

[19] VASCONCELLOS, op. cit., p. 199.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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