Conflitos Agrários e Ocupação de Terras na Amazônia: Uma análise crítica acerca da Dinâmica Fundiária Paraense

25/11/2019

A pesquisa tem como objetivo responder a pergunta “Em que medida as fronteiras implicam em violência no campo?” e para solucionar tal questão irá trazer um aparato histórico da reforma agrária, dispositivos de convenções internacionais, e diversas análises dos conflitos fundiários presentes no Brasil, em especial no Estado do Pará, explanando também a questão nacional de amparo àqueles que têm menos possibilidades de sobreviver no meio rural e que por isso são diversas vezes banalizados, como os imigrantes e os pequenos agricultores.

Desta maneira, será ressaltado neste trabalho a questão da formação territorial brasileira e críticas à ocupação de terras no Brasil, os conflitos socioambientais e territoriais na Amazônia, os direitos dos povos e das comunidades tradicionais com ressalva para os povos ribeirinhos, a violência e violações de direitos praticadas contra os defensores de direitos humanos em virtude das disputas fundiárias, e a função da política da reforma agrária. No entanto, não irá se limitar apenas nesses pontos como também irá estender a linha de raciocínio até a dinâmica agrária e fundiária do Estado do Pará, ao direito humano dos povos e comunidades tradicionais resguardado por convenções internacionais, à prática do trabalho escravo para a maior barganha dos latifundiários e capitalistas, e à questão da grilagem de terras e a festão territorial.

Neste diapasão, serão demonstrados alguns dados de violência no campo, através da exposição de registros do Caderno de “Conflitos no Campo” da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que é atualmente uma das principais organizações de combate à violência, contra a pessoa e à posse ilegal de propriedades de camponeses e trabalhadores rurais. Como também, serão levantadas questões que são escondidas pelo Estado, através da Política de Reforma Agrária, como crimes que ocorrem contra pessoas, meio ambiente, trabalho escravo, grilagem de terras, desmatamento ilegal e despejos violentos, onde lamentavelmente essa rotina violenta por disputas fundiárias tem marcado a vida da população pobre do campo no Brasil.

 

1. Formação Territorial Brasileira e Críticas à Ocupação de Terras no Brasil

O comportamento que uma dada categoria socioambiental tem em relação ao ambiente é influenciado por características de sua formação social, tais como a orientação de sua produção econômica, o grau de envolvimento com o mercado e a posse de uma cultura ecológica. No entanto, nenhum atributo social isolado pode ser apontado como responsável pelo diagnóstico de sustentabilidade da ocupação do ambiente, como será discutido a seguir. Sem pretender cobrir toda a diversidade social da Amazônia, distinguimos nove categorias socioambientais de produtores rurais: povos indígenas de comércio esporádico, povos indígenas de comércio recorrente, povos indígenas dependentes da produção mercantil, pequenos produtores “tradicionais”, latifúndios “tradicionais”, latifúndios recentes, migrantes/ fronteira, grandes projetos e exploradores itinerantes.

Como em qualquer classificação, as categorias produzidas são ideais e constituem uma simplificação da realidade em um dado momento histórico. Trata-se de um ordenamento da diversidade empírica para permitir uma análise de tendências, e não uma enumeração exaustiva e engessada da variedade socioambiental na Amazônia. O critério usado para julgar o grau de sustentabilidade ambiental relativo a cada categoria foi baseado em uma avaliação do impacto ambiental de sua ocupação.

Uma alta sustentabilidade ambiental significa que a ocupação humana não interfere nos processos ecológicos essenciais para o pleno funcionamento do ecossistema. Uma alta sustentabilidade é verificada em uma ocupação que não degrada o ambiente, não provoca alterações microclimáticas, não polui, não destrói hábitats, não explora recursos naturais renováveis acima de sua capacidade de regeneração, nem resulta em extinções de espécies.

Associado à classificação do grau de sustentabilidade da ocupação, identificamos o tipo de conhecimento que cada categoria socioambiental tem a respeito do ambiente que ocupa. Cultura ecológica “mitógena” (advinda do mito) é aquela em que os elementos do ambiente natural são pensados segundo seu papel no mito e seu lugar no cosmo nativo. Esse tipo de cultura ecológica, eminentemente indígena, tem em comum com a cultura ecológica aqui chamada de “tradicional cabocla” a transmissão oral de conhecimentos de uma geração para a outra.

Mas à diferença da indígena, a cultura ecológica cabocla compõe-se de fragmentos de diversas tradições (principalmente indígenas e ibéricas), não sendo referida a um cosmo único nem a um ciclo coeso de mitos. No entanto, a cosmologia amazônica não índia tem em comum com as cosmologias indígenas uma perspectiva não dualista isto é, que concebe uma ordem integrada e comunicante entre a sociedade e a natureza, como se revela numa série de histórias de transformação de pessoas e espécies animais em seres míticos pelo “encante” (Slater, 1994), além de vastos conhecimentos ecológicos. Como entre as sociedades ameríndias (cf. Descola, 1994; Århem, 1996), a esta cosmo-ecologia não dualista correspondem modelos de interação com o ambiente embasados em uma série de mitos, sanções e tabus que regulam as atividades de exploração de espécies naturais, como o curupira, as mães de “bichos”, a panema e outros tantos (Galvão, 1951 e 1955; Da Matta, 1973).

   

1.1. Dinâmica Agrária e Fundiária do Estado do Pará

Devido à aceleração industrial ocorrida no Brasil por volta do século XX, foram desencadeando grandes investimentos pelo Estado em infraestrutura para auxiliar o crescimento industrial no país, criando-se planos de integração, com o objetivo de levar as regiões ao desenvolvimento. 

Um dos principais Estados mais afetados pela política agrária e pelas políticas públicas, voltadas para a Amazônia com a integração, foi o Estado do Pará. Os empreendimentos provocaram grandes impactos ambientais e conflitos sociais iniciadas pela “operação Amazônia”, onde fizeram parte dessa estratégia como fiscais a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Na década de 70 foi criado o Plano de Integração Nacional (PIN) com intuito de povoar os grandes “espaços vazios” da Amazônia, um de seus projetos foi a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém, abrindo novas transformações para o Estado do Pará. Mudanças essas, com ritmos mais lentos e mais acelerados, ligados principalmente à agroexportação, da pecuária, minério, e soja.

Esse processo acelerado de expropriação e exploração irracional do território trouxeram danos irreversíveis ao Estado como o desmatamento, violência, desemprego e a miséria. A grande marca da formação fundiária brasileira se dá pela “grilagem” que são as apropriações ilegais de terras públicas. Existe cerca de 100 milhões de hectares de território ocupado por grandes latifundiários no Brasil, uma área correspondente a três vezes o território da Alemanha, duas vezes o país da Espanha ou até mesmo dez países como Portugal, são dados impactantes. Tudo isso se deu pela fragilidade do sistema de registro de terras, através da falsificação de títulos e de seus registros, que segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário, a grilagem acontece principalmente em órgãos governamentais, que de forma direta ou indiretamente, admitem a titulação de terras a correligionários, com nomes fictícios ou até mesmo em nome de terceiros (Laranjas), para levar estas fraudes aos cartórios e torna-los posseiros destas terras.

 

1.2 Conflitos Socioambientais e Territoriais na Amazônia

Em um período em que as opções macroeconômicas nacionais e internacionais apontam para processos de “superação” da crise econômica que acirram, ainda mais, o avanço da mercantilização dos recursos naturais e da terra como fenômenos da reagrupação e intensificação do capitalismo neoextrativista e/ou noedesenvolvimentista, reclamar o legado do direito territorial é colocar em pauta diferentes formas de mobilização e atuação político-organizacional de povos e comunidades tradicionais na luta pela contraposição às correntes hegemônicas da economia e da própria intervenção estatal que acirram os conflitos socioambientais. Conforma-se, então, a dimensão do território num campo mais amplo e complexo de significação da vida e do viver bem, portanto, de efervescência da capacidade criativa e contestatória de identidades étnico-culturais transmutadas em sujeitos coletivos de direitos para resistirem às investidas estatais e empresariais, e anunciarem o valor ético e profético das lutas sociais na busca por condições mais favoráveis de co-existência social.

O território é o lugar da produção da cultura e dos saberes locais que tencionam a afirmação do caráter diferenciado dos direitos coletivos de povos e comunidades tradicionais. Diferenciado no exato sentido em que aciona diacríticos socioculturais para afirmar as identidades e as fronteiras dos “outros”, assim como questionar os modelos hegemônicos que conformam os mecanismos de produção e de compreensão dos direitos, da saúde à educação, da terra à economia, e, com isso, da disputa de sentidos de direitos humanos. Ao mesmo tempo, o território é o campo de batalha que explicita as relações de poder assimétricas, as formas desiguais de acesso ao Estado, e, particularmente, à Justiça e às políticas públicas, mas também de configuração de estratégias plurais de insurgência dos grupos para tornarem-se protagonistas de suas lutas e de seus conflitos.

Ressignificar as relações de poder e o que foi constituído historicamente como “natural” ou “normal” para instituir desigualdades e discriminações, no périplo de descolonização de povos e comunidades tradicionais, da expressão de suas forças e identidades, contra e/ou para além dos direitos e das composições hegemônicas de desenvolvimento, sociedade e Estado. O caminhar diário dessas múltiplas jornadas é constituído por conflitos com agentes e instituições, com discursos e práticas sociais, que buscam negar a diversidade e mercantilizar os sujeitos, recursos, territórios e natureza para impor o seu valor de troca.

Ao negar essa “troca perversa”, povos e comunidades tradicionais afirmam o sentido maior da autodefesa, da indignação, das lutas, do amor, da transgressão, enfim, do viver, ou melhor, do bem viver, invertendo a dimensão de quem, de fato, é o atrasado, o primitivo e o selvagem que dilacera a diversidade e a riqueza da condição humana ou da condição planetária, por apego a modos de produção e consumo capitalistas, por apego a práticas de morte e de invisibilidade social. O trabalhador rural que se estabelece como posseiro nas frentes amazônicas de expansão agrícola utiliza-se do desmatamento como forma de legitimar sua ocupação. No entanto, as semelhanças terminam aí, pois no primeiro caso, o desmatamento é originário de uma política de ocupação de “vazios demográficos” e “vazios econômicos” através da concessão de títulos fundiários e incentivos fiscais por parte do poder público, ao passo que no caso dos migrantes trata-se principalmente de uma tomada espontânea de posse, cuja expressão é a área desmatada, que passa então a ser vista como benfeitoria na tentativa de garantir o direito de ocupação. Ademais, dado o caráter doméstico de sua produção, o posseiro não desloca os resultados de sua atividade para a região de origem, como faz o latifundiário. Pelo contrário, a região de origem é fonte de “parceiros” na formação dos novos núcleos que se vão estabelecendo nas frentes de expansão agrícola a partir dos anos de 1960 e 1970. Oriundos a maioria do nordeste e do sul do país (Ianni, 1979a; Hébette, 1991), esses migrantes chegam à Amazônia premidos pela escassez de terras em suas regiões de origem.

O caráter recente do estabelecimento das posses tem implicações ambientais importantes. Além de portadores de um conhecimento ecológico limitado da floresta, concentram seus esforços em cultivos exóticos e impactantes para o ambiente tropical, principalmente as culturas intensivas e perenes que implicam a remoção da cobertura florestal. Acrescente-se que, na ausência de uma cultura ecológica específica da região, a população de migrantes deixa de se beneficiar de uma série de recursos naturais de que o “caboclo” faz amplo uso, tais como ervas medicinais, frutas e tubérculos selvagens, cipós e outros materiais de construção. Não compartilhando um conhecimento da floresta que se traduza não apenas em técnicas de manejo, mas também em uso do ambiente mais amplo e socializado, pratica a caça, a pesca e o abate de madeiras nobres sem a preocupação de preservar para seus descendentes. Não há, enfim, um passado econômico no local, daí a busca de investimentos a curto prazo e de caráter depredatório, como a exploração de madeiras nobres e a criação de gado em áreas de desmatamento.

Reverberar tais enunciados em textos, que procuram analisar criticamente múltiplas situações de conflitos socioambientais e de disputa por direitos territoriais que instrumentalizam os direitos humanos, como parte de um contexto mais amplo de mobilizações sociais e de reinvenção da democracia. Por diversas entradas teóricas e analíticas, chega-se a mesma conclusão de que é pelas vias do protagonismo e da autodeterminação de povos e comunidades tradicionais, que se chegará não apenas a garantia de seus direitos, mas a própria reconstrução do Estado, pensando-o de maneira plural.

 

2. Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais

O conceito de “comunidade tradicional” é disciplinado no Decreto Federal 6.040/2007, mas em princípio na tentativa de tratá-lo em âmbito normativo deu-se na Lei 9.985/2000 a qual dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação.

O inciso XV do art. 2º da Lei 9.985/2000 (BRASIL, Lei 9.985 de 2000) possuía a seguinte redação:

População Tradicional: grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para a sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável.

No entanto, o dispositivo foi vedado, sob o fundamento de haver dificuldade para alcançar uma definição capaz de contemplar diversos grupos sociais, que poderiam se beneficiar de uma participação no novo sistema de unidade de conservação. Por isso, constou na Mensagem de Veto nº 967/2000 que tratava do veto presidencial, onde o conteúdo da disposição do inciso XV do art. 2º era tão abrangente que nela constava a seguinte justificativa: “Com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil” (BRASIL, Lei 9.985/2000). Nas razões para o veto também se verificou que determinados grupos humanos, apenas por habitarem continuadamente em um mesmo ecossistema, não poderiam ser definidos como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Leu-se ainda que o conceito de ecossistema não se prestava para delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o número de gerações não deve ser considerado para definir se a população é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a noção de tempo de permanência em determinado local, caso contrário, o conceito de populações tradicionais se ampliaria de tal forma que alcançaria, praticamente toda a população rural de baixa renda, impossibilitando a proteção especial que se pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais. O referido dispositivo dispõe que (BRASIL, Lei 13.123 de 2015):

Comunidade Tradicional: grupo culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma própria de organização social e ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição.

Nessa propriedade o bem é visto a partir dos sujeitos e sua capacidade de se fazer livre por sua própria atuação e poderes garantidos ao proprietário. Esses poderes são expressos no domínio, sob o escólio de GATTI que seria “o complexo de todos os direitos subjetivos possíveis no bem, próprio ou de outrem, materializado nas respectivas relações entre titular e o bem da vida. No domínio o dono constitui o árbitro do destino da coisa” (1996, pág. 89 apud BARRETO, 2019, pág. 37). Portanto o domínio e propriedade constituem termos que traduzem conceitos autônomos, ainda que não excludentes. Em uma lógica distinta da propriedade imobiliária moderna, a propriedade coletiva da terra possui uma plataforma comum, que é a de garantia de superveniência para os membros de uma comunidade plurifamiliar, na qual o conteúdo fundamental consiste no gozo condicionando o bem com um indiscutido primado do objetivo sobre o subjetivo. Assim, não se trata de apropriação da terra por um sujeito, mas sim, por um grupo de pessoas com regras próprias, em que os sujeitos são considerados a partir de suas relações concretas e reais.

Nesse sentido, BENATTI (2002) nos ensina que:

Essa apropriação do bem por uma pluralidade de sujeitos não se confunde com a ideia de condomínio. Nesse último, a coisa ou o bem pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas uma cota de parte ideal, tendo todos os condôminos direito qualitativamente iguais sobre a totalidade do bem. Contudo, diferentemente do condomínio, na propriedade comum não há essa noção de fração ideal, isto é, “nela não ocorre a distinção de cota em relação ao direito de uso da área comum”.

Essa concepção de uso coletivo da terra está associada aos sistemas de recursos naturais usados por vários indivíduos, como recursos de acervo comum, o que inclui o uso dos lagos e da floresta. Em muitos casos, esse modelo compatibiliza os espaços individualizados de caráter familiar (a casa ou pequenos plantações) e espaços coletivos, os quais integram uma unidade. Por outro lado, esta mesma propriedade coletiva ou comum por assim dizer, pode ser de domínio público (unidades de conservação de uso sustentável) ou privado (propriedade das comunidades remanescentes de quilombos) e se caracteriza pela existência de uma comunidade que tem ligação com um território determinado, cuja organização social, econômica e política estão intimamente relacionadas com as regras de uso e manejo dos recursos naturais renováveis, determinadas historicamente.

A referida propriedade também assume o caráter de inalienabilidade, imprescritibilidade, à medida que não pode ser vendida, doada ou transferida a uso de terceiro, sendo de posse e usufruto das comunidades tradicionais, ressalvada as exceções legais. A propriedade coletiva não se confunde com aquela expressa em um título, embora este deva respeitar e considerar o uso do território. A constituição do território coletivo envolve adaptações sociopolíticas em respeito às áreas de uso individual ou familiar e as de uso coletivo, desse modo, no caso de titulação coletiva, esta precisa atender as reinvindicações e práticas de determinados grupos sociais, sendo expressa e materializada em um documento. Todavia, não significa que tal propriedade só exista quando se tem um título ou documento, pois este pode ou não existir.

As normas nacionais reservam ao Estado o domínio das terras que recebem a influência das águas, sendo muitas delas constituídas por espaços ambientais de uso comum, que não permitam plenamente uso individualizado dos recursos naturais nela incidentes. Com isso, há certa dificuldade em conferir o domínio das terras aos membros da comunidade, sobretudo em áreas onde o uso dos recursos naturais não é exercido livremente. O segundo aspecto a ser enfrentado diz respeito à inexistência de previsão normativa quanto ao reconhecimento da propriedade coletiva da terra aos ribeirinhos, com domínio aos membros da comunidade. Diferentemente das comunidades remanescentes de quilombo, para os ribeirinhos não há norma que reconheça expressamente o domínio aos membros da comunidade, com autoadministração e autogestão das terras sem a participação do poder público. Para os quilombolas, o reconhecimento dessa propriedade tem como base constitucional o artigo 168 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual decorreu de contexto histórico pautado no sistema escravocrata, em que o Estado buscou corrigir as consequências e desigualdades decorrentes desse sistema, conferindo o direito às terras tradicionalmente ocupadas.

Os Ribeirinhos têm direito de decidir sobre a forma de regularização da ocupação, dentro de um processo democrático. Para isso, o Estado tem o papel fundamental de colocar à disposição as opções para essa escolha, a partir da avaliação dos comunitários, considerando cada realidade social e ambiental. Dessa forma, a propriedade coletiva ou comum da terra perpassa pela garantia do seu reconhecimento com ou sem domínio da terra aos ribeirinhos, o que envolve a análise do regime jurídico das terras que recebem a influência das águas. O conjunto material e imaterial é componente do patrimônio cultural titularizado por grupamentos humanos dos mais diversos, muito além de traduzir tão somente expressões artísticas, culinárias ou literárias, condensam e transmitem ditas experiências, únicas e irrepetíveis em razão exatamente da exclusividade que caracteriza as dimensões humanas, espirituais, religiosas e econômicas de cada povo ou nação.

Dita exclusividade constitui elemento que agrega importante fator consistente na valorização do conjunto de manifestações culturais retrocitado e por via de consequência, passível de aferição econômica com evidente atratividade para o mercado. Os casos envolvendo as riquezas imateriais dos povos indígenas no Brasil bem demonstra tal contexto em razão da intensa variedade e riqueza de suas manifestações artísticas, seu conhecimento da medida natural, única e própria de suas terras indígenas, seus grafismos e expressões musicais. É sob tal contexto que exsurge a necessidade do delineamento de normas e conduta e de conformidade para o relacionamento entre os atores econômicos, empreendedores e referidos povos, especificamente para a presente análise, as nações indígenas que habitam as terras brasileiras há milhares de anos, na medida em que o relacionamento e eventuais negociações com ditos povos implicam no domínio de conhecimento e compreensão que transpassam a mera competência técnica empresarial, relacionamento cujas consequências podem também implicar em resultados além do prejuízo econômico-financeiro, mas comprometer o próprio bem-estar e a existência de tais povos.

Compreender o processo de maturação do qual resultam as riquezas imateriais titularizadas pelos povos originários do Brasil, a conexão desses povos com suas crenças, o modo de vida delas resultante e a imprescindibilidade do respeito à titularidade coletiva sobre tal gama de riquezas, implica no prévio estabelecimento de normas éticas que pautem o relacionamento entre empreendedores e povos indígenas.

 

2.1. Direito Humano dos Povos e Comunidades Tradicionais

O direito humano à propriedade coletiva da terra encontra proteção na Convenção Americana de Direitos Humanos e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos casos envolvendo povos indígenas e povos tribais (quilombolas). Porém a Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que os povos tribais (quilombolas) têm direito assemelhados aos dos povos indígenas. Consequentemente, esses julgados servem de fonte de análise para a propriedade da terra dos povos tribais (quilombolas). A Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica consiste em um tratamento internacional elaborado no âmbito do continente americano, firmado com o objetivo de proteger os direitos humanos. A Convenção foi assinada em 22.11.1969, passando a vigorar em 18.07.1978, consolidando o Sistema Interamericano de Direitos Humanos durante a Conferência Especializada Interamericana sobre os Direitos Humanos, realizado em São José, na Costa Rica, entre os dias 07 e 22.11.1969. Atualmente, a Convenção Americana de Direitos Humanos conta com a adesão de 25 Estados-Nações que integram a Organização dos Estados Americanos, entre eles o Brasil, o qual aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos em 15.09.1992 e ratificou o seu comprometimento por meio do Decreto Federal nº 678 de 06 de novembro de 1992.

Na primeira parte da Convenção Americana de Direitos Humanos tem-se a definição dos direitos protegidos e compromissos que os Estados assumem ao aderi-la, incluindo o dever de adotar dispositivos de direito interno, para conferir efetividade aos direitos enunciados na Convenção Americana de Direitos Humanos. Também há o rol de direitos correspondentes às chamadas liberdades fundamentais ou direitos humanos de primeira dimensão, assemelhados àqueles definidos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, dos quais os direitos econômicos, sociais e culturais foram referenciados no presente artigo 22 do Protocolo de São Salvador de 1988, onde aduz que (BRASIL, Decreto 3.321 de 1999):

Artigo 22. Incorporação de outros direitos e ampliação dos reconhecidos:

1. Qualquer Estado Parte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos poderão submeter à consideração dos Estados Partes, reunidos por ocasião da Assembleia Geral, propostas de emendas com o fim de incluir o reconhecimento de outros direitos e liberdades, ou outras destinadas a estender ou ampliar os direitos e liberdades reconhecidos neste Protocolo.

2. As emendas entrarão em vigor para os Estados ratificantes das mesmas na data em que tiverem depositado o respectivo instrumento de ratificação que corresponda a dois terços do número de Estados Partes neste Protocolo. Quanto aos demais Estados Partes, entrarão em vigor na data em que depositarem seus respectivos instrumentos de ratificação.

O protocolo de São Salvador é adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos, assinado em 17.11.1988, com vigência iniciada em 16.11.1999. Em seu texto, há a estreita relação entre os direitos econômicos sociais e culturais e os direitos civis e políticos, sendo as diferentes categorias de direitos integrantes de um todo indissolúvel, base do reconhecimento da dignidade humana. Desta forma, o Brasil promulgou este Protocolo por meio do Decreto nº 3.321 em 30 de dezembro de 1999, já na segunda parte da Convenção Americana de Direitos Humanos, há o estabelecimento dos órgãos destinados ao funcionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por meio da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, as quais exercem a função de fiscalização e aplicação dos direitos enunciados na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em síntese, a Convenção Internacional de Direitos Humanos possui função não contenciosa e é responsável por receber petições com denúncias ou queixas de violações de direitos humanos, formulados por qualquer pessoa ou grupo de pessoas ou entidades não governamentais legalmente reconhecidas em um ou mais Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, independentemente de terem ratificado ou não a Convenção Americana de Direitos Humanos. Entre os casos Contenciosos apreciados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos encontram-se aquelas decorrentes de peticionamento por violações à propriedade coletiva ou comunal da terra de povos indígenas e tribais (quilombolas), o que representa um cenário comum de violações no continente americano. Como se deu no caso das comunidades afrodescendentes versus Colômbia (CEJIL, Corte Internacional de Direitos Humanos, 20 Nov. 2013):

TRIBUNAL INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. CASO DAS COMUNIDADES AFRODESCENDENTES. DESLOCADAS DA BACIA DO RIO CACARICA. OPERAÇÃO GÊNESIS. VERSUS COLÔMBIA. SENTENÇA DE 20 DE NOVEMBRO DE 2013.

Em 20 de novembro de 2013, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (“doravante Corte Interamericana”, “a Corte ”ou“ a Corte”) proferiu uma Sentença, na qual declarou Responsável internacionalmente pelo Estado da Colômbia por violações de direitos humanos comprometidos por ter violado sua obrigação de garantir os direitos à integridade pessoal e não serem deslocados à força, em detrimento dos membros das Comunidades Afrodescendentes deslocados de Cacarica, em Rio sucio, Departamento de Chocó. Os fatos O caso também se refere à desapropriação ilegal de territórios ancestrais pertencentes a Comunidades afrodescendentes do rio Cacarica. Da mesma forma, o Tribunal declarou que os atos cruéis, desumanos e degradantes a que foi submetido o Sr. Marino López na cidade de Bijão, bem como a privação de sua vida, cometida por membros de grupos paramilitares são atribuíveis ao Estado pela aquiescência ou colaboração que forneceram policiais para as operações desses grupos, o que facilitou o processo incursões nas comunidades de Cacarica e levou ou permitiu a comissão deste tipo de atos Em consequência do exposto, a Corte concluiu que o Estado é responsável pela violação dos direitos reconhecidos nos artigos 4, 5, 8.1, 19, 21, 22 e 25 da Convenção Americana.

As motivações desses conflitos e disputas associam-se à omissão do Estado no reconhecimento da propriedade coletiva, o que envolve interesses econômicos nos recursos naturais existentes nesses territórios. Diante desses aspectos, mostra-se relevante analisar a aplicabilidade do artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos e o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em casos apreciados por este tribunal, com o intuito de refletir sobre a aplicabilidade dessa convenção no direito interno e sobre a proteção especial à propriedade coletiva da terra dos ribeirinhos. Senão vejamos (BRASIL, Decreto 678 de 1992):

Artigo 21.  Direito à propriedade privada:

1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.

2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.

3. Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser reprimidas pela lei.

A propriedade coletiva da terra constitui um direito humano, protegido pelo artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Embora esse dispositivo faça referência à “propriedade privada”, a sua compreensão passou por uma evolução, sendo a partir do conteúdo coletivo, em decorrência da interpretação progressiva empreendida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, mostra-se importante compreender seu alcance, partindo da análise da primeira parte do artigo 21.1 da convenção, diz que: “Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens”. Desta forma, o conceito de “bens” tratado nesse dispositivo foi considerado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como: “aquelas coisas materiais apropriáveis, assim como todo o direito que pode formar parte do patrimônio de uma pessoa”, que é compreendido como: “todos os móveis e imóveis, os elementos corporais e não corporais e qualquer outro objeto imaterial suscetível de ter um valor”. Nessa compreensão, o tribunal também leva em consideração o direito consuetudinário dos povos indígenas e tribais (quilombolas), concebendo que a estreita relação com terra não constitui mera posse e produção, se não um elemento material e espiritual.

De outra perspectiva, segunda parte do presente artigo 21.1 da convenção, também prevê que: “a lei poderá subordinar o uso e gozo dos bens aos interesses da sociedade”, o que tem sido interpretado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no sentido de que o direito à propriedade prevista no referido dispositivo não é absoluto. Portanto, pode sofrer restrições legalmente comtempladas, orientadas a satisfazer um interesse público imperativo. Essas restrições podem emergir do conflito real e aparente entre a propriedade privada individual e a propriedade coletiva ou comunal.

O conteúdo e o alcance do direito à propriedade coletiva ou comunal da terra prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos também estão conjugados com a Convenção 169 da OIT, sobretudo porque o Sistema Internacional Americano de Proteção dos Direitos Humanos está em relação de complementariedade com o sistema universal da Organização das Nações Unidas. Nesse aspecto, o estudo da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos demonstra que esse tribunal aplica outros tratados internacionais distintos da Convenção Americana de Direitos Humanos, para analisar o conteúdo e alcance desta, sendo a Convenção 169 da OIT importante para a aplicação do artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos. A convenção 169 da OIT foi promulgada no Brasil por meio do Decreto Federal 5.051, de 19.04.2004 e trata dos direitos dos povos indígenas e tribais. Essa Convenção consiste em um tratado internacional adotado na Conferência Internacional do Trabalho no ano de 1989 e representa o consenso sobre os direitos dos povos indígenas e tribais dentro do Estado-nação, impondo aos governos o dever de proteção dos direitos nela consagrados.

 

3. Grilagem de Terra e Gestão Territorial

O termo “grilagem” é amplamente conceituado na literatura brasileira, contando com algumas definições e conceitos diferenciados. De acordo com Raul Jungmann (1999) - Ministro da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário em 1999, responsável pela elaboração de um dossiê que, juntamente com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, visou fazer um levantamento das terras griladas à época, para que estas fossem reestabelecidas ao Patrimônio da União, a fim de constarem na Política de Reforma Agrária, explica que genericamente, toda a ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros constitui uma grilagem, que tem seu início em escritórios e se consolida no campo, mediante a emissão da posse de terras.

A apropriação irregular de terras públicas ainda é prática recorrente na constituição da estrutura fundiária brasileira, mostrando-se como um mecanismo importante do processo de concentração da terra no Brasil. Conforme levantamento realizado em 1999 pelo Governo Federal, existem comprovadamente extensões superiores a 100 milhões de hectares de territórios, sob suspeita de apropriação irregular por particulares, estima-se que a extensão apropriada por particulares irregularmente é por "quatro vezes a área do Estado de São Paulo ou a área da América Central, maior que o México" (JUNGMANN, 1999, p. 2).

A grilagem, como é de conhecimento, através de levantamentos realizados pelo próprio governo, muitas vezes se concretiza por fragilidade do sistema de registro de terras, e vem se configurando no decorrer da história, através de diversos mecanismos, tais como: a) o registro de escrituras de compra e venda, sem a linhagem de transmissão; b) a falsificação de títulos e seus registros, por acréscimo de área em documento de posse; c) a invasão de áreas para prática da pecuária extensiva e derrubada da floresta. Outro fator que contribuiu significativamente para a ocorrência da grilagem foi à superposição de competências entre a União e o Estado para proceder à titulação em vários momentos históricos do Brasil. De acordo com informações do Ministério do Desenvolvimento Agrário coordenado por Raul Jungmann (1999, p. 4):

A grilagem de terras acontece normalmente com a conivência de serventuários de Cartórios de Registro Imobiliário que, muitas vezes, registram áreas sobrepostas umas às outras — ou seja, elas só existem no papel. Há também a conivência direta e indireta de órgãos governamentais, que admitem a titulação de terras devolutas estaduais ou federais a correligionários do poder, a laranjas ou mesmo a fantasmas — pessoas fictícias, nomes criados apenas para levar a fraude a cabo nos cartórios. Depois de obter o registro no cartório de títulos de imóveis, o fraudador repetia o mesmo procedimento no Instituto de Terras do Estado, no Cadastro do INCRA e junto à Receita Federal. Seu objetivo era obter registros cruzados que dessem à fraude uma aparência de consistente legalidade.

Em 2001, a Câmara dos Deputados, iniciou uma investigação por meio de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar irregularidades na obtenção de forma ilegal de grandes extensões de terras públicas na Região Amazônica. Essa CPI concluiu que a respeito da aquisição irregular de terras públicas a atividade notarial e registral tem grande importância no contexto da grilagem, porque é através da lavratura de certidões e do registro que são aparentemente legitimados os títulos que servirão para alicerçar a apropriação ilegal de terras.

A grilagem de terras na Região Norte é considerada uma das mais graves de todo o território brasileiro: de acordo com levantamentos realizados pelo INCRA, na região Norte as áreas ocupadas irregularmente através de grilagem de terras públicas é superior a mais da metade da totalidade das ocupações irregulares de todo o território brasileiro.

Nesse sentido, o relatório final da CPI da grilagem, apresentado em 29 de agosto de 2001, apurou que existem mais 30 milhões de hectares grilados apenas no território pertencente ao Estado do Pará. No Estado do Amazonas, as extensões foram igualmente elevadas: 37 milhões de hectares. No Acre e em Rondônia, pelo menos 1,5 milhões de hectares foram identificados como propriedades, fruto de ocupações irregulares ou griladas. As características dos proprietários e/ou detentores dos imóveis suspeitos de grilagem da região Norte em relação aos demais Estados do país, segundo o INCRA, também tem perfis distintos: é na região Norte que se verifica a maior quantidade em área média por proprietário (em torno de 69 mil hectares), outro perfil que chama à atenção é número médio de imóveis por proprietário (1,4 imóveis).       

Comparando os estados da região norte, o Estado do Pará é o que tem a maior área média por proprietário (88 mil hectares). Cerca de 15 milhões de hectares no Pará não apareciam na contabilidade do governo e surgiram depois que o INCRA iniciou o levantamento de áreas abaixo de 10 mil hectares, registradas em cartórios paraenses. Constatando-se que: Apenas os três maiores grileiros de terras no Estado do Pará, juntos, alegam possuir cerca de 20 milhões de hectares (Carlos Medeiros diz possuir 13 milhões de hectares, o grupo CRAlmeida reivindica em torno de 6 milhões e a Jari Celulose cerca de 3 milhões de hectares). O “fantasma Carlos Medeiros”, como veremos abaixo, possui cerca de 1.200 títulos de propriedade (falsos), espalhados por mais de 83 municípios, totalizando mais de 13 milhões de hectares.

A concentração tão irregular de terra no Pará apresenta alguns fatores essenciais que sobrevivem até os dias atuais. Entre eles estão a exploração sem limites racionais dos recursos naturais e do trabalho humano de populações tradicionais e indígenas, que caminhou junto com a grilagem de terras públicas durante todos os ciclos de desenvolvimento da região, desde mineração, exploração da madeira, pecuária e mais recentemente, a produção de soja.

Conforme foi apurado pelo relatório da CPI da Câmara dos Deputados, no Estado do Pará, o relatório descreve certamente, alguns dos maiores casos de grilagem do Brasil. Em apenas um destes casos, o relatório aponta que o resultado foi à apropriação privada de cerca de 12 milhões de hectares, o que corresponde a 8% do Estado do Pará ou 1% de todo o território brasileiro.

Essas megas operações de falsificação de títulos e documentos públicos tiveram início na metade da década de 70, por intermédio de uma pessoa conhecida por Carlos Medeiros — que atualmente se tem conhecimento que nunca existiu. Recebeu uma Carta de Adjudicação que lhe teria sido transmitida através de um processo judicial de inventário, relativo à transmissão dos bens de Manoel Fernandes de Souza e Manoel Joaquim Pereira. Os imóveis descritos na mencionada Carta foram todos “legitimados” em 1975 pelo juiz da 2ª Vara Cível de Belém, Armando Bráulio Paul da Silva, em um procedimento ilegal.  Conforme apurado pela CPI elaborada pela Mesa da Câmara dos Deputados (2001, p. 136):

Tal pilhagem foi possibilitada por uma sentença prolatada em data de 1º de julho de 1975, pelo então Juiz da 2ª Vara Cível da Capital, Armando Bráulio Paul da Silva, afastado da magistratura pela prática de tantas outras irregularidades cometidas. O citado Juiz deferiu o pedido de abertura do inventário, promovendo a legitimação dos supostos direitos dominiais alegados, violentando completamente os requisitos estabelecidos na legislação federal e estadual para que se operasse a legitimação das áreas cobertas com meros títulos de posse muitos dos quais originados de Cartas de Sesmaria não Confirmadas.

Depois de adquirir os documentos via poder judiciário, Carlos Medeiros, utilizava-se sempre de prepostos e procuradores, passou a comercializar as terras a terceiros, negociando áreas de todas as extensões e produzindo novos documentos fraudulentos. Através destas práticas fraudulentas, muitas áreas que eram habitadas e trabalhadas por pequenos posseiros e populações tradicionais foram tomadas por grandes grileiros.

De acordo com a publicação realizada pela Comissão Pastoral da Terra (2005, p. 26-27): 

O processo judicial que deu origem às titulações irregulares desapareceu do Cartório da comarca em 1981. Os autos desse processo foram restaurados apenas em 1993 e, ainda naquele ano, o Poder Judiciário determinou o registro de parte das áreas vendidas por Carlos Medeiros. O inventário e todos os atos processuais e registros feitos a partir desse processo só foram anulados em 1995, quando o Tribunal de Justiça do Estado do Pará proferiu acórdão favorável a uma Apelação interposta pelo Instituto de Terras do Estado do Pará (ITERPA).

A apropriação de terras públicas, esta integralmente ligada à extração ilegal de recursos minerais e florestais, e alguns momentos históricos favorecidos pela omissão das próprias entidades governamentais e do Judiciário. A ocorrência em muitas ocasiões obteve favorecimento pelo próprio ente estatal. O Instituto de Terras do Pará (ITERPA), idealizado e criado em 1975 com o objetivo de organizar e controlar no âmbito administrativo as terras, segundo Flávio Pinto acabara de se transformar numa instância governamental para a resolução de problemas de grandes grupos interessados em terras no Pará. Em depoimento na apuração realizada pela CPI da Assembleia Legislativa do Pará, segundo elencado pela Comissão Pastoral da Terra (2005, p. 29), o jornalista Flávio Pinto ressaltou que:

Em 1975 foi a última tentativa do Estado em ter um controle administrativo, quando criou o ITERPA. [...] Quem for ler com atenção a lei que criou o ITERPA, verificará que ali está cheio de alçapões e armadilhas para os poucos privilegiados de escritórios de advocacia utilizarem aquela estrutura para seus parceiros, seus clientes. [...] Então, o ITERPA acabou se transformando numa instância governamental para resolução de problemas de grandes grupos interessados em terras no Pará, e eu acho que o ITERPA não conseguiu cumprir sua função.

Além disso, em seu livro: “O FIM DA AMAZÔNIA: DESMATAMENTO E GRILAGEM” o jornalista Lúcio Flávio Pinto (2014, p. 109) denunciou as práticas irregulares realizadas por cartório de registro localizado na cidade de Altamira no Estado do Pará:

A oficial do cartório imobiliário da comarca efetuou, em janeiro de 1984, o registro, em nome da firma Incenxil, de uma gleba de quatro milhões de hectares, com a denominação de Fazenda Curuá, supostamente formada a partir da junção de 10 imóveis.

Em onze anos em 1995, através de várias aquisições não documentadas nos órgãos responsáveis pelo controle de registro de imóveis e com várias disputas em andamento o caso chega ao conhecimento do poder judiciário, constatando-se várias irregularidades nos documentos registrados configurando a grilagem de grandes extensões de terras que pertenciam ao governo federal como veremos a seguir:

Chamados a dirimir tecnicamente a questão, quando ela chegou à esfera judicial, representantes do governo federal e da administração federal, verificaram que a chamada gleba Curuá, considerada a descrição que dela faziam seus autodeclarados proprietários, seria ainda maior do que os 4,7 milhões de hectares do último registro. Além de se superpor a 2,7 milhões de hectares do Estado do Pará, onde foram executados os loteamentos Altamira I, II e III, essa autêntica ameba fundiária abocanhou ainda terras sob jurisdição federal, sendo 2,5 milhões de hectares do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 2,7 milhões de hectares do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) e 200 mil hectares da Fundação Nacional do Índio (Funai) (PINTO, 2014, p.110).

As reivindicações por mecanismos mais eficazes e céleres de políticas agrárias e de uma justiça especial agrárias são antigas e necessárias no intuito de promover a resolução de conflitos, em tempo hábil, essas reivindicações não são apenas de brasileiros, nesse sentido leciona professor Benedito Ferreira Marques em seu livro: “Direito Agrário Brasileiro”, quando cita que "os participantes do 1° Seminário Ibero-Americano de Direito Agrário, realizado em outubro de 1975, recomendaram, na chamada “CARTA DE CRUZ ALTA", a criação da Justiça Agrária" (MARQUES; MARQUES, 2015, p. 16).

O autor Octávio Mello Alvarenga, faz questão de demonstrar que o anseio pela implementação da Justiça Agrária é antiga, e nem apenas dos brasileiros, ao citar palavras atribuídas ao jurista e imortal Rui Barbosa, que em hora muito oportuna é citado na publicação do professor Benedito Ferreira Marques em colaboração de Carla Regina Silva Marques, conforme veremos a seguir: 

Praticamente, porém, essas reformas, bem assim quantas do mesmo gênero se queiram multiplicar, ainda não acertam no ponto vital. Consiste ele na efetividade vigorosa dessas garantias, isto é, na criação de uma justiça chã e quase gratuita, à mão de cada colono, com um regime imburlável, improtelável, inchicanável. Toda a formalística, em pendência entre colono e patrão, importa em delonga, em incerteza, em prejuízo, em desalento. Nesta categoria de débitos, não sendo facílima, o mesmo é que não ser exequível, a cobrança. Sugeriu-se que o juiz mais acessível, o de direito, ou o de paz, receba a queixa e proceda ex officio, de plano, quase administrativamente, como nos casos policiais as autoridades respectivas, mediante sumaríssima inquisição, com simples audiência da outra parte. Seja como for, ou se abrace este alvitre ou algum outro equivalente, o essencial está em cometer este gênero de pleitos a uma judicatura que inspire confiança ao estrangeiro desprotegido, a liquidá-lo mediante um processo ligeiro, correntio, rudimentar, mas claro, justo e seguro (ALVARENGA, OCTÁVIO MELLO apud MARQUES; MARQUES, 2015, p. 16).

A falta de implementação de uma Justiça Agrária ágil e bem aparelhada facilita a proliferação dos inúmeros conflitos fundiários e invasões de terras de populações indígenas e tradicionais que resistem bravamente. Na maioria das vezes fundando movimentos sociais de resistência semelhantes os apresentados pela professora Francisca Marli Rodrigues de Andrade (2019, p.15) que veremos a seguir:

a) Cabanagem - revolta popular que ocorreu entre 1835 e 1840 no Estado do Pará; b) Manifesto do Rio Negro; c) Manifesto Ecológico de José Lutzenberger, com o tema “Fim do Futuro? Manifesto ecológico brasileiro”, publicado em 1976; d) Aliança dos povos da floresta, liderada por Chico Mendes nos primeiros anos da década de 1980; e) Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), ampliado no final da década de 1970; f) Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), o qual tem como objetivo impedir a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu/Pará; entre outros.

Esses e outros movimentos organizados traduzem, também, a tentativa de resistência aos processos de apropriação irregular e comercialização da natureza, na busca de manter suas identidades e seus territórios com o objetivo de produzir um desenvolvimento sustentável, possibilitando que a propriedade rural cumpra realmente a sua função social contribuindo para o bem da sociedade em geral e possibilitando uma exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Propiciando um melhor atendimento as populações indígenas e tradicionais que lutam para se manter na terra vítimas de violência constante por parte de invasões e da omissão do Estado brasileiro. 

 

3.1. Conflito e Violência no Meio Rural

O Brasil é conhecido Internacionalmente pelo seu elevado índice de violência, a qual é oriunda de diversos motivos, como por exemplo, a violência contra mulher, no âmbito carcerário, nas ruas e etc. No entanto, iremos abordar a violência que ocorre no meio rural, em específico em razão da ocupação de terras na Amazônia e a ligação desta com as fronteiras.

Como dito anteriormente, em que pese o Brasil seja intencionalmente conhecido pela violência que possui, pode-se dizer que a ocupação ilegal de terras na Amazônia contribuiu de forma significativa para a elevação do índice de violência da após dia, visto que tais ocupações, vem ocorrendo de forma indiscriminada dia após dia.

A Amazônia por ser um dos maiores biomas do mundo, um dos mais conhecidos por sua extensão territorial, bem como por sua riqueza natural no que versa a fauna e a flora, há anos vem sendo alvo do capitalismo no Brasil, despertando nos grandes empresários interesse econômico, fazendo com que metaforicamente estes se tornem cegos, a pontos de ignorar normas agrárias, trabalhistas e consequentemente Direitos Humanos, expondo pessoas a situações de trabalho análogos ao de escravo, desmatando a floresta, comprando o sigilo de órgãos fiscalizadores e se preciso for, até matando.

Cumpre ainda dizer que, boa parte daqueles que ficam sujeitos ao trabalho análogo ao de escravo, são nada mais, nada menos, imigrantes que atravessam ilegalmente pelas fronteiras em busca se tentar uma vida melhor, bem como, de liberdade e condições dignos de sobrevivência, planos estes que restam frustrados, uma vez que caem nas mãos de empresários e pistoleiros.

Outro principal causador da violência no meio rural amazônica são os conflitos de interesses econômicos existentes no meio daqueles que ocupam ilegalmente determinadas áreas, visto que o objetivo de alguns é ter a terra para fim de trabalho, enquanto para outros é para fim de exploração.

Pode-se ainda dizer que tais conflitos muitas vezes passam despercebidos pela mídia e pelos governantes pela foto de que muitos entendem que estes conflitos fazem parte do processo de modernização da agricultura.

Dessa forma, é possível concluir que tamanha violência ocorre por negligência estatal e/ou governamental, ou agir com descaso ante a situação, tratando como se normal fosse compactar para o crescimento do índice de violência e posse ilegal de alvos rurais amazônicas.

 

3.2. A Prática do Trabalho Escravo

Sabe-se que o Pará aparece no cenário Nacional por uma série de crimes cometidos contra pessoas, meio ambiente, trabalho escravo, grilagem de terras, desmatamento ilegal, despejos violentos, etc. onde lamentavelmente essa rotina violenta tem marcado a vida da população pobre e do ecossistema amazônico. Nos últimos anos muitas fazendas foram denunciadas pela prática de trabalho escravo, envolvendo milhares de trabalhadores, cujas denúncias resultaram na liberdade de mais de 50% desses trabalhadores pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

O trabalho escravo e utilizado por expoentes do agronegócio no Estado do Pará para diminuir custos da produção, com o aumento da competividade do produto nos mercados internos e externos, uma vez que os encargos trabalhistas não serão repassados ao preço final do produto. Esta e a realidade do agronegócio no Estado do Pará, que também se repete em outros estados Brasileiros, onde e verificada a utilização de ao de obra escrava, é o ser humano vivendo em sua mais degradante condição. Apesar da dura fiscalização esta realidade ainda persiste em grande parte do Estado Paraense, realidade essa que parece não incomodar as autoridades, o Judiciário e o governo do Estado. A situação do trabalho escravo no Pará é amplamente conhecida e documentada e repetidamente noticiada pela imprensa e diante de várias reincidências de denúncias dessa prática de trabalho escravo por parte dos donos de fazendas, o Governo Federal lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, tendo como objetivo principal a total erradicação das formas contemporâneas de escravidão. O plano também apresenta um conjunto de ações visando melhorias das estruturas administrativas do grupo de fiscalização móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia Federal e do Trabalho, Ministério Público Federal e do Trabalho, prevendo ainda a elaboração de ações especificas de promoção à cidadania, combate a impunidades, de conscientização, capacitação e sensibilização. Sendo o Pará alvo desse plano nacional, por infelizmente concentrar um grande número de fazendas que se utilizam dessa mão e obra escrava, como também por seus municípios serem palcos de aliciamentos de trabalhadores que se tornam escravo.

O plano previu também como meta a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 438/2001, que dispõe sobre a expropriação de terras, onde houver trabalho escravo sem qualquer direito a indenização, tendo ainda o intuito de que os bens confiscados sejam convertidos em recursos onde serão destinados a um fundo especial a ser regulamentada em lei própria, cuja sugestão seria a aplicação desses recursos em programas de habitação, recuperação de dependentes químicos ou ainda para melhoria das condições de moradias dos trabalhadores resgatados. A PEC do Trabalhador Escravo é considerada pelos órgãos governamentais e entidades da sociedade civil que atuam nas áreas trabalhistas e de direitos humanos como um dos projetos mais importantes de combate a escravidão, não apenas pelo forte instrumento de repressão que pode criar, mas também pelo seu simbolismo, pois revigora a importância da função social da terra já prevista na constituição.

 

3.3. Violência e Violações de Direitos contra Defensores de Direitos Humanos

As distorções quanto a distribuição de terras no campo em todo o território brasileiro já são registrados desde o início de sua colonização. A desproporcionalidade na destinação das terras acarreta à maioria dos conflitos fundiários no meio rural. Essa questão teve como um dos seus marcos iniciais a década 1530, com a criação das capitanias hereditárias e o sistema de sesmarias, nesse período o Rei de Portugal iniciava a distribuição de terras para nobres portugueses ou pessoas do Brasil que tivessem condições para produzir, com o intuito de arrecadar um sexto da produção para a Coroa portuguesa que passava por uma grande crise na produção de alimentos.

Essa distribuição mais tarde se tornaria um grande problema para a produção de alimentos, pecuária e outros produtos de origem rural no Brasil. Visto que grandes extensões de terra foram entregues ao um limitado número de pessoas com capacidade financeira para realizar o cultivo dessas terras, estabelecendo-se desde esse primeiro momento os primeiros grandes latifúndios no país. Com poucas famílias concentrando grandes propriedades rurais, obrigou-se os camponeses mesmo que de forma indireta a trabalhar como empregados para os grandes proprietários de terra que se formam devido as condições da distribuição impostas pela coroa portuguesa. Contudo, a violência no campo se mostra mais visível depois independência em 1822, quando a maioria das demarcação de novas propriedades rurais ocorreu pela lei do mais forte, provocando várias violações à direitos humanos e inclusive assassinatos de camponeses que tentaram se manter nas pequenas propriedades.

Depois desses eventos que novamente beneficiam os grandes proprietários de terra que mesmo de forma desorganizada tiveram como ampliar ainda mais seus domínios, ampliando em muito as demissões de suas propriedades por intermédio da força, ocasionado a formação de latifúndios ainda maiores do que os já existentes à época do império. Outro fator que é a atual organização da produção agrícola, a mecanização e a utilização de tecnologia de alto custo para a  produção em grande escala  no campo têm impossibilitado que pequenos produtores consigam competir com os grandes latifundiários se vendo obrigados  a se desfazerem de suas propriedades  por não conseguirem  mecanizar sua produção, fato que resulta no baixo rendimento, tornando impossível a permanência nas suas terras e polarizando ainda mais os conflitos e violações a direitos humanos de pessoas que defendem a permanência dos pequenos produtores rurais, populações tradicionais ,quilombolas e índios em suas terras.

Ao pesquisar sobre os temas de violência e violações de direitos humanos relacionados à conflitos agrários de uma maneira geral, ficou constatado que a principal entidade na coleta e fornecimento de dados para os demais órgãos é a Comissão Pastoral da Terra. De tal forma à se perceber uma espécie de monopólio informativo, uma vez que vários órgãos da própria administração pública se utiliza de seus levantamentos, bem como jornais e revistas em suas publicações. Desta forma a Comissão vem alertando em seus levantamentos para um crescimento das violações de direitos humanos de representantes dessas minorias através de ameaças que não raramente impõem o silêncio à essas violações e não raramente se transformando em verdadeiras tragédias humanas, com assassinato desses representantes e de seus familiares. Com o passar dos anos esses conflitos tem se intensificado em todo território nacional com maior frequência e maiores proporções na região amazônica, que tem despertado cada vez mais os olhares do mercado nacional e internacional para além do seu histórico potencial na extração de produtos naturais e madeiras nobres. A região amazônica vem se destacando nesse novo momento histórico como grande potencial na produção de grãos, pecuária e outras vertentes do agronegócio brasileiro despertando os olhares grandes grupos empresariais. Esses novo momento da região com grande demanda por áreas cultivável tem também intensificado o número de conflitos, mas notadamente no Estado do Pará que sempre foi palco de grandes disputas agrárias produzindo também grandes tragédias e histórico de violações de direitos humanos. O Estado do Pará ocupou o primeiro lugar com relação aos assassinatos em decorrência de conflitos no ano de 2017, como veremos a seguir no levantamento publicado pela Comissão Pastoral da Terra em 17 de abril de 2018 com relação aos assassinatos que tiveram um crescimento brusco entre os anos de 2003 a 2017 analisados pela pesquisa que serão expostos a seguir:

A Comissão Pastoral da Terra classificou também os principais massacres ocorridos no campo entre os anos de 1985 a 2017. A Comissão tornou público e mantém atualizado os dados de massacres com números de pessoas vitimadas em assassinatos com relação a conflitos agrários ocorridos em todo o território brasileiro, sendo uma das instituições de referência utilizada inclusive por órgãos oficiais do governo sobre a divulgação desses levantamentos. Os dados tendem a demonstrar que sempre foram práticas constantes no campo e muitas vezes atingindo alcance nacional e internacional como veremos e alguns desses casos que repercutem negativamente a imagem do Brasil a Comissão Pastoral da Terra reconhece como "massacre", casos em que três ou mais pessoas tenham sido assassinadas no mesmo contexto fático envolvendo conflito agrário conforme publica em sua página virtual anualmente.

Os entes governamentais tem tentado coibir essas práticas incessantemente, mas devido a limitações dos mais variados tipos inclusive geográficas, pessoais, políticas e financeiras para realizar uma fiscalização mais efetiva não conseguiram alcançar os resultados almejados por todas as parte envolvidas nesses eventos de grave repercussão social que continuam a ser praticados. Mesmo sendo constantemente noticiado pelos Governo Federal e pelos Governos  Estaduais o combate a esses tipos de violência e ameaça a direitos humanos ainda é muito comum  no campo em todas as regiões do país, ainda estando muito aquém de uma solução de via satisfatória para esse tipo de conflito que poderia em grande parte ser evitados por meio de uma política agrária de distribuição de terras às pessoas e empresas interessadas no desenvolvimento de novas tecnologias, na produção rural de alimentos, pecuária e todo o agronegócio brasileiro. Esse projeto já tem sido bastante discutido politicamente através do projeto de distribuição de terras por meio de desapropriações de terras improdutivas viabilizando uma distribuição equânime por meio da reforma agrária, mas caminha lentamente sem previsão de uma solução definitiva para as desigualdades e ameaças a direitos fundamentais das pessoas envolvidas nesse contexto de conflitos agrários. 

 

5. Função da Política de Reforma Agrária

Desde o Brasil Império o poder público tenta construir um modelo adequado de distribuição fundiária que garanta à todos o acesso à terra em quantidade necessária para promover o desenvolvimento no meio rural. Essas tentativas já se iniciam de forma desordenada proporcionalmente no período colonial com a distribuição das Seis Marias pela coroa portuguesa, com o intuito de alavancar a produção de alimentos e garantir a segurança das novas áreas conquistadas.

Esse modelo organizado se transformou no sistema posteriormente nas capitanias hereditárias, mas manteve os mesmos critérios de distribuir grandes extensões de terra divididas por linhas imaginárias da que tinham início do litoral e se estendiam até o limite estabelecido pelo tratado de Tordesilhas. No entanto foram utilizados os mesmos critérios de distribuição das Seis Marias, as terras eram destinadas às pessoas da elite da época ou a amigos do Rei, permanecendo de forma desordenada o sistema de capitanias se encerraria pouco mais de um ano depois de iniciado com a declaração de independência do Brasil em 1822. Com a independência sem uma regulamentação especifica sobre a distribuição de terras e sem forma definida sobre o modelo que regulamentasse à propriedade no Brasil, a política fundiária adotada foi a" lei do mais forte". Entre os antigos proprietários, grileiros associados a bandos armados e grandes fazendeiros, a única limitação era a proibição de ocupar terras públicas salvo se fossem adquiridas com recursos do Império o que ocasionou uma concentração de terras e a constituição de latifúndios ainda maiores por serem poucas as pessoas que detinham poder financeiro para adquirir terras públicas.  

Nesse período se iniciam as discussões sobre a necessidade de uma estruturação fundiária em muito motivadas pelo elevado número de mortes relacionadas as disputas de terras. Mas só em 1850, surge a primeira legislação voltada para esse tema numa tentativa do império de consolidar a nação brasileira denominada "Lei de Terras", na tentativa de conferir um caráter mais comercial do que social. Com a lei de 1950 passou a existir o registro público das terras e o governo passou a controlar as terras devolutas, apesar de se comprovar mais adiante sua ineficácia no controle das aquisições de terras ficou conhecido como o primeiro plano de reforma agrária no Brasil. Essa primeira legislação diminuiu o aumento dos latifúndios na época, com tudo os latifúndios passariam às mãos do governo e de algumas autoridades que tinham influência política em suas regiões territoriais distantes dos centros urbanos. Somente por volta de 1950 com o crescimento e desenvolvimento industrial e a urbanização do país, é que se volta-se a debater sobre a questão de terras no país e foi nesse período surgiram as primeiras superintendências agrárias. Com o intuito que regularizar ainda mais a situação, em 1966 o governo federal lança o Plano nacional de Reforma Agrária, que nunca foi implementado, só em 1970, através do Decreto n°1.110 criou-se o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária que ainda é o órgão responsável para resolver as demandas agrárias do país.

A pauta da reforma agrária voltaria à ser discutida novamente a partir da redemocratização em 1984, com o lançamento do Decreto n° 97.766, que estipulava data de até 1989, para a implementação de um novo Plano Nacional de Reforma Agrária. Com a Constituição de 1988, o panorama da reforma agrária muda novamente, passando a se determinar de competência exclusiva da União para legislar sobre às matérias de Direito Agrário e Desapropriação para fins de reforma agrária de terras que não estejam atendendo aos requisitos predeterminados.

No artigo 184, da Constituição federal de 1988, verifica-se a exigência de lei regulamentadora de como serão definidos os demais critérios de aplicação da política agrária voltada para a desapropriação e distribuição equânime de terras que estejam descumprindo os requisitos exigidos. Esse fato ocasionou mais uma vez um entrave a concessão dos benefícios esperados pela distribuição justa da terra pelo sistema de reforma agrária, a lei n° 8.629/93, que disciplina a política agrária só entrou em vigor em 25 de fevereiro de 1993. Na Lei n° 8.629/93, definiu os requisitos para o cadastramento das pessoas interessadas em ingressar, os impedidos de participar e todos os outros critérios referentes ao programa de reforma agrária com quase que total repetição do texto literal da Constituição Federal. No ano de 2017, os critérios para ingresso e impedimentos sofreram uma nova modificação pela Lei n° 13.645/17. Como podemos acompanhar mesmo depois da Constituição Federal de 1988, ainda é muito lento o processo de criação de uma política agrícola baseada em oportunidades iguais para todos, ainda é possível se perceber com facilidade a imensa disparidade na distribuição da terra e consequentemente  na renda das pessoas que produzem nos zonas rurais de todo país, devido à formação de grandes latifúndios improdutivos e também de minifúndios um dos objetivos que reforma agrária visa coibir para que ocorra um aumento no poder produtivo e uma desenvolvimento regional equilibrado em todo Brasil. 

 

6. Conclusão

Analisando todas as questões supramencionadas fica evidente que as fronteiras são constantes alvos de disputas fundiárias e em consequência disto há no Brasil vários casos registrados de violência no campo, e inclusive a ocorrência de diversas mortes em virtude da disputa agrária que são ocasionadas principalmente pela entrada forçada dos grandes latifundiários em terras de pequenos agricultores que lutam por sua subsistência. Essa lógica perversa tem sua eficácia vinculada aos mais variados crimes: grilagem de terras, assassinatos, intimidações e perseguição às lideranças, uso de trabalho escravo, formação de milícias privadas, destruição ambiental, corrupção e desvio de recursos públicos, marcada por uma omissão, conivência e até mesmo apoio do Estado.

Ocorre que após a Constituição Federal de 1988 houve maior proteção ao direito agrário propriamente dito e em virtude disso existe também um maior auxílio de Convenções Internacionais que regem os Direitos Humanos de proteção à pessoa e a propriedade. Entretanto é importante frisar o relevante papel que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) tem feito na proteção da população mais pobre do campo de forma a catalogar os conflitos de terra ocorridos no Brasil anualmente, e inclusive apoiando os defensores de direitos humanos que lutam pelos direitos dessas minorias. A grave situação de violência no campo que prevalece no Estada do Pará, não advém apenas da impunidade que marca a atuação do Poder Judiciário e repercute como uma espécie de licença para matar. Contribui significativamente também para essa situação a ausência de uma política séria de reforma agrária, onde, sem a mesma (que promova uma verdadeira desconcentração da terra, coibindo e retomando terras griladas) e sem punição para os crimes contra trabalhadores e outros defensores, a violência continuará ceifando a vida das pessoas que lutam pelo justo direito à terra, à preservação do meio ambiente e a uma vida digna no campo.

 

Notas e Referências

________; Decreto Federal 5.051, de 19 de abril de 2004; Promulga a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais; República Federativa do Brasil; Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>; Acesso em: 15 de setembro de 2019.

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