Conexão e Processo

24/12/2016

Por José Eduardo de Resende Chaves Júnior – 24/12/2016

“O vivenciar e o compreender são os primeiros a abrir o espaço para a intelecção de que neles desponta uma conexão. Nós só compreendemos conexões. Conexão e compreensão são copertinentes.”

Wilhelm Dilthey, A construção do mundo histórico nas ciências humanas

INTRODUÇÃO

O processo tradicional pressupunha o entrecruzamento da democracia e o direito, sintetizados no conceito de Estado Democrático de Direito. O processo virtual pressupõe a compreensão prévia da imbricação entre democracia digital e os direitos da cidadania em rede.

A democracia tradicional contenta-se pragmaticamente com a democracia representativa. A democracia digital vai além e já cogita da democracia direta e participativa, ou seja, pressupõe a intervenção ativa, interativa e virtual do cidadão na política institucionalizada, até mesmo na elaboração e votação das leis.

Desse caldo da sociedade virtual é que eclode o processo eletrônico, não propriamente de sua automação informática, muito embora como decorrência dos meios dela oriundos.

O que nos parece decisivo no processo eletrônico – inclusive para efeitos da construção de uma nova teoria geral para o processo – não é propriamente seu viés tecnológico, mas, sim, sua característica reticular, ou seja, o fato de ser um processo em rede, acessível pela rede mundial de computadores – Internet – e, como tal, beneficiário da «inteligência coletiva» de que nos fala Pierre Lévy, o grande pensador contemporâneo sobre a Internet, que busca no filósofo francês Gilles Deleuze os planos de seu pensamento.

O processo virtual é muito mais um «rizoma»[1] do que uma mera estrutura ou um sistema. O processo eletrônico é um fluxo ou um workflow rizomático que nos convida a pensar na potência de um processo pós-estruturalista e em contato (rectius: em «conexão») com o ponto de vista externo. É a possibilidade de conexão dos autos com o mundo, possibilidade essa que, a seu turno, altera profundamente a racionalidade, as características e a principiologia da teoria geral do processo.

A conexão é uma hermenêutica; é uma compreensão que liga as partes ao todo (DILTHEY, 2010), em duplo sentido: (i) conecta os fragmentos dos autos processuais ao mundo da vida e liga os sujeitos processo à inteligência vívida, cambiante e coletiva da rede.

1. CONECTIVIDADE E MEDIUM

A conexão coloca em perspectiva duas ideias chaves: a teoria das redes e os meios de comunicação e informação. São ideias profundamente inter-relacionadas. O processo eletrônico pressupõe um meio virtual, mas não um meio puramente eletrônico, senão um meio reticular-eletrônico, que sofre os influxos da potência de uma racionalidade em rede: não hierárquica, indutiva, expansiva e criativa. Vejamos:

1.1. Redes 

Os primeiros passos da chamada teoria das redes foram dados nos trabalhos do Matemático Ëuler, que formulou a ‘teoria dos grafos’. Um grafo é a representação de um conjunto de nodos (nodes) conectados pelas arestas[2]. Erdös e Rényi foram os primeiros a relacionar os grafos a redes sociais. Há vários trabalhos sobre redes complexas, posteriormente aplicados às redes sociais, inclusive às virtuais. Podemos citar os modelos de Barabási, Watts e Strogatz y Erdös y Rényi[3]. O que nos parece importante salientar, sobretudo, é o caráter cumulativo e expansivo da rede, ressaltado por Barry Wellman[4] e Barabási[5]. Na rede tudo tende a crescer em proporções e escalas gigantescas e até fora do controle aparente.

A racionalidade que decorre da rede não se trata de abstração matemática, há fortes efeitos concretos, inclusive sobre a economia.

Temos hoje uma nova economia cuja produção é baseada nas chamadas externalidades da rede, que institui uma nova forma de produção econômica, descentralizada, colaborativa e que pode escapar dos esquemas de mercados - commonsbased peer production[6].

Giuseppe Cocco aponta que na produção reticular os termos netwares e wetware[7]

“são mobilizados para complementar hardware e software e apreender as novas formas de trabalho e/ou interação produtiva no âmbito das redes de cooperação virtual[8]. MoulierBoutang acrescenta que os bens hegemônicos no capitalismo dito cognitivo são compostos de 4 fatores simultaneamente: (i) hardware; (ii) software; (iii) wetware e (iv) netware. O economista francês observa que o netware desempenha papel hegemônico entre eles, quer dizer, determinante, mas os quatro fatores são irredutíveis a apenas um deles. Observa ainda que não é possível um controle completo por parte do capital, de nenhum dos quatro fatores.[9]

A e-democracia, isto é, a possilidade já presente de superar a democracia representativa, a benefício de uma democracia direta, com os cidadãos votando os projetos de lei diretamente pela Internet, com a certificação digital ICP-Brasil por exemplo, ou a primavera árabe no norte da África, em que ditaduras foram caindo uma a uma, com o efeito dominó do Twitter ou Facebook, são demonstrações claras de que a rede tem forte inflexão em relação à política também. Manuel Castells há muitos anos já havia vaticinado que o poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder.

Se a rede afeta a economia, a política, a sociologia, evidentemente afeta o direito, e por conseqüência o Direito Processual.

1.2. Medium

O processo eletrônico não é uma simples transposição virtual dos autos, sem qualquer inflexão nas características e na teoria tradicional do processo. O grande pensador da mídia no Século XX, o canadense Marshall McLuhan, sintetizou na célebre idéia de que “o meio é a mensagem[10] - isto é, na idéia de que o meio de comunicação e transmissão da mensagem não é neutro, pois ele condiciona inclusive o seu conteúdo - a importância do meio de comunicação e informação para a própria racionalidade[11]. Os meios são concebidos como extensão dos seres humanos[12].

Cândido Dinamarco, por outro lado, difundiu a tese de que o processo é ‘meio’[13], instrumento da efetivação não só dos direitos materiais, mas também dos valores sociais e políticos, ou seja, ressaltou a importância do processo também para a garantia dos escopos metajurídicos. Para Dinamarco a instrumentalidade do processo é dupla: negativa (a instrumentalidade das formas) e positiva (instrumentalidade para efetivação dos direitos). [14]

Confluindo McLuhan e Dinamarco, temos que, se por uma visão esse ‘meio’ não pode se transformar num fim em si mesmo, para puro deleite de processualistas, por outro lado, esse medium não é isento, muito menos neutro, pois ele acaba por influir e contaminar o próprio desenrolar do processo, a forma de participação das partes litigantes e até o conteúdo da decisão do juiz, que se vêem afetados, dessa forma, pela dinâmica hipertextual e reticular do novo procedimento para a decidibilidade.

Assim, o meio eletrônico, além de condicionar sobremaneira o conteúdo da jurisprudência, vai potencializar a própria instrumentalidade[15] do processo, que passará a ter muito menos amarras e limitações materiais, permitirá o aumento de sua deformalização e alargará suas possibilidades probatórias. Enfim, o meio eletrônico sublinhará que o processo é medium e é instrumento, possibilitando, assim, que se privilegie na demanda os escopos sociais e políticos do processo. A instrumentalidade não será apenas dupla como afirma Dinamarco, será exponencial. 

2. A CONEXÃO PROCESSUAL

O processo eletrônico é, sobretudo, um processo em rede, passível de conexão, em tríplice dimensão: (i) do ponto de vista externo - ao direito e ao processo; (ii) do ponto de vista tecno-digital; e (iii) do ponto de vista social, com o mundo da vida. Em suma, é um processo de conexão transversal entre sistemas, informações, dados, máquinas e pessoas.  A idéia de conexão em rede faz toda a diferença. O processo conectado é bem diferente do processo desplugado, e sob vários enfoques. Podemos sistematizá-los em duas perspectivas: (i) a conexão das partes e (ii) a conexão do juiz. Mas é preciso ressaltar, como não podia ser diferente, que as duas perspectivas estão entre si conectadas, e em especial pelo conceito de sujeitos do processo, sujeitos que mantém uma relação dialógica, horizontal e democrática, todos beneficiários do que Pierre Lévy chamou, como já dito, de ‘inteligência coletiva’[16]. Tal dicotomia é apenas didática, já que no processo contemporâneo todos os sujeitos têm uma relação dialógica e complementar entre si. De angular, a relação do processo não penal passa a ser transversal e reticular.

É importante ressaltar, contudo, que o princípio da conexão deve estar articulado com o «principio da interação» com as partes, ou em linguagem tradicional, deve ser necessariamente submetido ao crivo do contraditório.

Esse novo contraditório interativo expande - torna imanente e extensiva - a fronteira do diálogo processual. Por outro lado, com a Internet, não há mais uma delimitação clara do sistema 'autos' que condicionava a cognição processual. É o diálogo, a capacidade de influir no diálogo e na decisão, por meio da interação com as partes, que passa a condicionar o discurso processual.

Esse princípio encontra-se dogmatizado, sobretudo, no artigo 13[17] da Lei 11.419, mas também irrompe nos artigos 1º, § 2o, II, 8º e 14 da mesma lei e no art. 422, § 1o do CPC de 2015.

2.1. Da conexão das partes 

A conexão das partes é reticular, ou seja, com o adjetivo reticular o que se deseja significar e enfatizar é que não se trata apenas de mera conexão, de uma conexão linear, mas de uma conexão qualificada, em rede.

Uma conexão linear é apenas uma aproximação entre duas adjacências. Já uma conexão reticular pressupõe uma mudança de escala, de patamar, de lógica. De uma conexão linear decorre um fluxo previsível e estável, da conexão em rede, o fluxo é complexo, instável. Não há linearidade rígida na sequência do fluxo processual eletrônico conectado. Não há nos autos virtuais nem mesmo folhas numeradas, mas eventos em fluxo.  O processo eletrônico não se diferencia simplesmente pela desmaterialização, mas, sobretudo, pela possibilidade dessa desmaterialização viabilizar a transmissão incessante, em tempo real, do conteúdo dos atos e das práticas processuais. Em sede de processo eletrônico não há falar nem sequer em pedido de vista do processo, já que o processo está conectado às partes e à sociedade, 24 horas por dia, 365 dias do ano.

A publicidade no processo de papel era uma mera possibilidade, a distância física e material transformava a publicidade em mera presunção; com o processo virtual, contudo, ela muito mais do que uma presunção, é uma realidade, isto é, a publicidade é uma virtualidade, mas não no sentido de possibilidade, senão de uma realidade-virtual e efetiva[18], pois, como já se viu, o virtual não se opõe ao real.

O chamado princípio da escritura - quod non est in actis non est in mundo - encerrou no Código Canônico a fase da oralidade em voga desde o processo romano[19] e até no processo germânico medieval[20]. O princípio da escritura, então, visava a dar segurança jurídica e estabilidade aos atos processuais, mas ao mesmo tempo acabava por separar os autos do mundo.

Essa desconexão autos-mundo passou inclusive a modelar toda a estratégia argumentativa e de atuação das partes e do juiz no processo. Nem o posterior resgate da oralidade, cinco séculos depois, a partir da lei processual de Hannover ou do Código austríaco de Franz Klein, teve o condão de alterar a natureza profundamente estruturante do princípio da escritura, porquanto a oralidade na mídia de papel não rompia com a ideia de que o que estava fora dos autos estava fora do processo.

Com advento das novas tecnologias de comunicação e informação e as possibilidades ampliadas de conectividade por elas proporcionadas, rompe-se, finalmente, com a separação rígida entre o mundo do processo e o das relações sociais, porquanto o meio eletrônico transcende as limitações materiais do meio de papel. O hipertexto, o link - a chamada linguagem de marcação no jargão tecnológico - permite a aproximação entre os autos e a verdade (real e virtual) contida na rede, sem que com isso se imprima um grau caótico de desestabilização jurídica na estrutura mediática do processo.

Além disso, o princípio da conexão reticular torna o processo judicial um fenômeno menos segmentado e seqüencial. Torna os atos menos dedutivos, silogísticos e abstratos, ou seja, tornam-se mais indutivos, consistentes – «consistência referencial» e conectados com o caso concreto.

Da preclusão lógica caminha-se para uma indução preclusiva, isto é, enfatiza-se a indução em detrimento da dedução na racionalidade processual. A preclusão reticular não está condicionada a um processo rígido de contradição formal entre atos. A incompatibilidade dos atos não é apenas deduzida logicamente, pois pode também ser induzida de forma muito mais veemente do caso concreto e particular. O saneamento das nulidades formais não está mais condicionado apenas à inércia da parte na primeira oportunidade que tiver de se manifestar nos autos. O princípio da conexão em rede impõe às partes o ônus da vigilância permanente e em tempo real.

A conexão aumenta a responsabilidade das partes no processo, como contrapartida ao próprio alargamento de sua participação. A democracia aumenta direitos, deveres e responsabilidades. O princípio da conexão reticular conduz o processo ao «lugar-comum» - tópos koinós - à ágora virtual, onde os discursos especializados e as tecnicalidades processuais tendem a ceder espaço – em certa medida pode-se pensar em termos de tecnologia da deformalização do processo.

2.2. A conexão do juiz

O princípio da conexão torna naturalmente, pois, o processo mais indutivo. Em sede da prova, o princípio clássico da escritura - quod non est in actis non est in mundo – sempre foi decisivo. Essa separação entre o que está nos autos e o que está no mundo é também um mecanismo de racionalização e organização da produção das provas. No processo de papel, esse princípio é inclusive intuitivo, já que não há como se exigir que o julgador conheça algo fora da realidade materializada e estabilizada nos autos.

A atividade de decisão democrática de um juiz é muito mais um ato de inteligência (e coletiva), do que um ato de vontade. Não decide ele por saber, mas por conhecer. A cognição processual se amplia ante a possibilidade de acesso e conexão ao mundo virtual da informação. Essa cognição potencializada imanentiza as partes, mas também o juiz.  No processo virtual a separação autos-mundo é literalmente desmaterializada. As fronteiras entre os autos e o mundo já não são tão claras, pois ambos pertencem ao mundo virtual. A virtualidade da conexão - o hipertexto - altera profundamente os limites da busca da prova, pois, como se sabe, os links permitem uma navegação indefinida pelo mundo virtual das informações, um link sempre conduz a outro e assim por diante... A chamada Web semântica[21] vai inclusive levar essa irradiação da informação a níveis inimagináveis.  A teoria da prova lançou mão do conceito aberto de ‘fato público e notório’ para lidar processualmente com os fatos públicos. No mundo da internet, a escala do que seja fato de conhecimento público aumenta em proporções gigantescas, já que o decisivo não o conhecimento do fato, mas a possibilidade de acesso a ele, da conexão. É certo que a doutrina, jurisprudência e a legislação vão, com o passar do tempo, estabelecer os limites para a navegação virtual, sob pena de se infundir o caos no fluxo processual, mas essa regulação só indica que de fato o processo reticular coloca os atores do processo em outro mundo, em outra lógica probatória.

O que se tem de ter em mente, contudo, é que essa possibilidade abre perspectivas interessantes quanto à busca da tão almejada construção consensual da verdade, caminha-se da verdade real para a verdade virtual.

A inflexão do hipertexto documental, além disso, transforma enormemente o jogo do cálculo processual dos litigantes quanto ao ônus da prova. Essa possibilidade vai, inclusive, confluir no sentido de tornar o processo um instrumento mais ético, pois o aumento da possibilidade de busca da verdade real - virtual e dialógica - será proporcional à redução da alegação e negação de fatos virtualmente verificáveis.

Em sede do processo eletrônico, melhor que se falar em fato ‘público e notório’, será, portanto, operar com a ideia de fato ‘comum e conectável’. Aqui «comum»[22] entendido também como substantivo, fato extra-estatal, não-governamental, com acesso aberto pela rede mundial de computadores. Será a possibilidade de conexão por parte do juiz – conexão inquisitiva – o critério decisivo para a inserção da informação na esfera probatória do processo em rede.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo judicial passa por um momento de transformação democrática, de diálogo, de cooperação interativa, uma preocupação com a justa efetivação dos direitos do cidadão. O que se espera é que os sujeitos do processo tenham capacidade de aprender com os erros e com a ineficiência do processo tradicional, e não percam a fenomenal oportunidade de catalizar as chamadas externalidades de rede a benefício da efetividade social dos direitos.

O que se percebe é que o processo eletrônico transita em outra ordem, distinta da tradição da escritura, pois traduz a combinação do imaterial dos bits, com o viés reticular e telemático das novas tecnologias de comunicação, informação e combinação – rectius: conexão.

O processo eletrônico tem potencial para ser muito mais do que mera infraestrutura de TI para o processo tradicional. Não se reduz, tampouco, a simples procedimento judiciário digital e, muito menos, concebe-se tão-somente como autos de papel digitalizados. As novas tecnologias de informação e comunicação transformam radicalmente a natureza do processo tradicional, que se caracteriza, primordialmente, pela separação dos autos do mundo. O processo eletrônico é, sobretudo, processo em rede, o que o torna beneficiário, concomitantemente, da inteligência coletiva, da lei da abundância, dos rendimentos crescentes e da sinergia da interação em tempo real.  Não se pode caminhar na linha da mera digitalização dos autos, na lógica do scanner, mas, sim, começar um processo novo, e não apenas um novo procedimento. Digitalizar significa decalcar para o processo eletrônico a lógica viciada do processo de papel, da escritura.

O receio é incidirmos em mera informatização da ineficiência. Não se pode perder a oportunidade de aproveitar o advento do processo eletrônico para fazer uma revolução no processo, que até o momento não passa senão de promessa não cumprida. Em outra palavras, é importante aproveitar a desmaterialização dos autos, para tentar desmaterializar os vícios arraigados na cultura da escrita no processo.

O velho ditado de que papel aceita tudo trouxe em contrapartida a transformação da segurança jurídica em dogma, perdendo com isso a verdade real e, por consequência, a justiça material das decisões. No mundo imaterial, o monitor vai aceitar mais ainda, por isso mesmo é preciso policiar os arroubos paranoicos por segurança virtual.

A preocupação deve se deslocar da segurança, concebida como mera estabilidade, para a ideia de preservação da intimidade e da privacidade no mundo eletrônico, ou seja, é mais importante assegurar tais garantias constitucionais aos cidadãos, que uma excessiva preocupação com segurança tecnológica, já que a possibilidade de redundância na comunidade é a grande chave da segurança e incolumidade dos arquivos eletrônicos.

Não se pode, por outro lado, desprezar não só as tecnologias já disponíveis, mas também estar atento para aquelas que já se ensejam, sob pena de o processo eletrônico já nascer obsoleto.

Insiste-se: não se pode pensar no processo eletrônico como processo escaneado, o «foto-processo» – que significa em última análise como mera migração (inclusive dos vícios) da escritura para o novo processo virtual. O decisivo é que o processo eletrônico seja um banco de dados relacional, manipulável semanticamente, com «integridade referencial», e não um banco de documentos, segmentados.

É preciso, por outro lado, evitar tanto o triunfalismo tecnológico, quanto seu duplo antagônico, qual seja, uma atitude obscurantista, um apelo piegas à especificidade da dignidade humana. O essencial no processo eletrônico, o potencial de emancipação que ele carrega está, justamente, no fato de ser um processo em rede, mas não uma rede de fios e circuitos, e, sim, uma rede que liga pessoas, gente, seres humanos: juiz, partes e sociedade humana. Não se trata de deslumbre com a tecnologia, mas com o potencial político, cultural, econômico e sociológico da rede.

O processo de papel é a própria encarnação da separação entre os atores do processo e o mundo. O que não está nos autos não está no mundo. É o processo individual, isolado do mundo. É preciso, pois, desenvolver-se uma tecnologia jurídica, propriamente dita, para lidar com um novo processo, que conectará os autos ao mundo. Utilizar os mesmos princípios processuais do processo de papel seria o mesmo que operar o computador com tacape. Se se imaginar que uma folha de papel tem a mesma repercussão política e social de um monitor em rede, de uma interface do computador, estaremos perdendo a oportunidade histórica de fazer a tão diferida revolução no processo judicial.  O princípio da conexão não se restringe à interoperacionalidade entre os sistemas judiciários ou à extraoperabilidade dos sistemas de bancos de dados públicos. Não se trata apenas de uma conexão meramente eletrônica, senão da conexão dialógica, das inteligências coletivas em rede. O pensamento e os afetos de todos os sujeitos do processo contemporâneo são reais e virtuais, em profunda, permanente, recursiva e incessante conexão. Toda hermenêutica desconectada é artificial ou ingênua.


Notas e Referências:

[1] A ideia de «rizoma» foi pensada por Deleuze & Guattari como uma espécie de modelo das multiplicidades, por oposição ao modelo de árvore chomskyano (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 8). No pensamento deleuzeano, as multiplicidades - no plural - são a própria realidade (Ibid., p. 8). A filosofia seria, então, a teoria das multiplicidades (DELEUZE, 1996, p. 49). A racionalidade pós-estructuralista não é linear, nem dicotômica, mas pivotante, como a estrutura do rizoma da botânica. Para os autores, a lógica binária e as relações biunívocas dominam a psicanálise, a linguística, o estruturalismo e inclusive a informática, e isso é o que predomina no pensamento da árvore-raiz (DELEUZE & GUATTARRI, 1995, p. 13). A figura do rizoma, tomada da botânica, foi utilizada para marcar uma diferença com a ideia de árvore-raiz: com uma base, um fundamento e uma estrutura linear de desenvolvimento. Estão contidos nessa estrutura princípio, meio e fim (Ibid. p. 33). Há aí também a ideia de dicotomia - árvore-raiz. Se tivesse sido escrito alguns anos depois, a ideia da rede mundial de computadores - a Internet - seria, sem dúvida, um exemplo de rizoma para Deleuze. É interessante observar que no último texto de Deleuze, o tema tratado são justamente as interações entre real e virtual (DELEUZE, 1996, p. 49).

[2]  grafoUm grafo com 6 vértices e 7 arestas. Um grafo G é uma tripla ordenada (V(G), E(G), Ψg) que consiste de um conjunto V(G) de vértices, um conjunto E(G) de arestas sem interseção com V(G), e uma função de incidência Ψg que associa a cada aresta de G uma par não-ordenado de vértices (não necessariamente distintos) em G.” (BONDY, MURTY, 1976, p. 01).

[3] A análise das redes sociais parte de dois grandes troncos: (i) das redes inteiras (whole networks) e das (ii) redes personalizadas (personal networks). No primeiro tronco é focado na relação do grupo com a rede; no outro, do indivíduo com a rede. Está envolvido nas redes complexas, o conceito de multiplexidade, que significa o grau de multiplicidade de fluxos de laços sociais que se verifica em determinada rede social. A novidade no estudo das redes está em perceber a estrutura da rede não como determinada e determinante, mas como cambiante no tempo e no espaço. Outro conceito das teorias das redes é cluster, que é um grupo de grupos sociais em coesão (nodos) conectados. (RECUERO).

[4] Barry Wellman fala da regra ‘quanto mais, mais’, que vigora na interação entre redes na internet; no sentido de que quanto mais se utiliza rede social-física, mais se utiliza internet; quanto mais se utiliza internet, mais se reforça a rede física Cfr. WELLMAN, Barry y GULIA, Mena in Barry Welmman, pp. 331-366 apud CASTELS, 2002, p. 444. Há vários trabalhos disponíveis de Wellman e seu grupo em sua página virtual da Universidade de Toronto.

[5] O modelo de ‘redes sem escala’ foi formulado por Barabási. Seu modelo está baseado na regra ou fenômeno ‘rico-mais-rico’ (rich get richer phenomenon), no mesmo sentido de Wellman. Isso significa que quanto mais conexões tem um nodo, mais oportunidades tem de ter outros. Nesse sentido, as redes não são igualitárias, pois há uma vinculação preferencial à mais usada. Cfr. BARABÁSI, 2002, pp. 79-82. O nome ‘sem escalas’ vem da representação matemática da rede, que segue uma curva denominada power-law, conhecida também como ‘lei de Pareto’ ou regra ‘80/20, que faz referência a uma proporção que ocorre com freqüência em fenômenos de rede. Cfr. BARABÁSI, 2002, pp. 66-71.

[6] Cfr. BENKLER, p. 60.

[7] Wetware e netware são termos correlatos. O primeiro diz respeito à capacidade individual de operar os sistemas de hardware e software, capacidade essa que é desenvolvida a partir do ponto de vista do usuário ou consumidor, de forma interativa, na produção. A ênfase aqui é no trabalho e na inovação do ponto de vista do consumo. Netware é a perspectiva coletiva dessa mesma interação com o consumo, a partir da rede. Cfr. COCCO, 2003, pp. 9-10. Cfr. Também MOULIER-BOUTANG, 2004, pp.54-55.

[8] Cfr. Ibid., p. 9

[9] Crf. MOULIER-BOUTANG, 2004, p. 55.

[10] “Todos os meios agem sobre nós de modo total. Eles são tão penetrantes que suas conseqüências pessoais, políticas, econômicas, estéticas, psicológicas, morais, éticas e sociais não deixam qualquer fração de nós mesmos inatingida, intocada ou inalterada. O meio é a ‘massage’. Toda compreensão das mudanças sociais e culturais é impossível sem o conhecimento do modo de atuaar dos meios como meio ambiente. Todos os meios são prolongamentos de alguma faculdade humana – psíquica ou física.” McLUHAN, 1969, p. 54.

[11] “Os meios, ao alterar o meio ambiente, fazem germinar em nós percepções sensoriais de agudeza única. O prolongamento de qualquer de nossos sentidos altera nossa maneira de pensar e agir – o modo de perceber o mundo. Quando essas relações se alteram, os homens mudam.” McLUHAN, 1969, p. 69.

[12] “Numa cultura como a nossa, há muito acostumada a dividir e estilhaçar tôdas (sic!) as coisas como meio de controlá-las, não deixa, às vezes,k de ser um tanto chocante lembrar que, para efeitos práticos e operacionais, o meio e a mensagem. Isso apenas significa que as conseqüências sociais e pessoais de qualquer meio – ou seja de qualquer uma das extensões de nós mesmos – constituem o resultado do novo (sic!) estalão introduzido em nossas vidas por uma nova tecnologia ou extensão de nós mesmos.” McLUHAN, 1979, p. 21.

[13] “Todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que destina. p. 206 [...] Em outras palavras, a perspectiva instrumentalista do processo é por definição teleológica e o método teleológico conduz invariavelmente à visão do processo como instrumento predisposto à realização dos objetivos eleitos.” Cfr. DINAMARCO, 1990, p. 207.

[14]Esta tem em comum com a instrumentalidade das formas o seu endereçamento negativo, ou seja, a função de advertir para as limitações funcionais (das formas lá, aqui, do próprio sistema processual). O lado negativo da instrumentalidade do processo é já uma conquista metodolótica da atualidade, uma tomada de consciência de que ele não é um fim em si mesmo [...] . O endereçamento positivo do raciocínio instrumental conduz à idéia de efetividade do processo, entendida no contexto jurídico social e político. Cfr. DINAMARCO, 1990, p. 379.

[15] Cfr. PEREIRA, Sebastião Tavares. O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1937, 20 out. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11824>. Acesso em: 08 jun. 2009.

[16]É uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências’. Acrescentamos à nossa definição este complemento indispensável: a base e o objetivo da inteligência coletiva são o reconhecimento e o enriquecimento mútuos das pessoas, e não o culto de comunidades fetichizadas ou hipostasiadas “ Cfr. LÉVY, 2003, pp. 28-29.

[17] Lei n. 11.419/2006 dispõe, em seu Art. 13: O magistrado poderá determinar que sejam realizados por meio eletrônico a exibição e o envio de dados e de documentos necessários à instrução do processo. § 1º. Consideram-se cadastros públicos, para os efeitos deste artigo, dentre outros existentes ou que venham a ser criados, ainda que mantidos por concessionárias de serviço público ou empresas privadas, os que contenham informações indispensáveis ao exercício da função judicante. § 2º. O acesso de que trata este artigo dar-se-á por qualquer meio tecnológico disponível, preferentemente o de menor custo, considerada sua eficiência.

[18] Não é por outra razão que a Lei 11.419/2006 (art. 11, § 6º), cogita permitir o acesso por rede externa dos documentos privados apenas para as partes, procuradores e ministério público.

[19] No período do procedimento das ações da lei o processo romano era totalmente oral. Somente com o processo formular é que passou a ser parcialmente escrito. Cfr. CRUZ E TUCCI & AZEVEDO, 2001, p.78

[20] O processo germânico, bárbaro, na alta idade média, era essencialmente oral, embora na península Ibérica tenha também guardado aspectos do processo romano formular, misto. Cfr. GUEDES, 2003, pp. 21-23.

[21] Também conhecida como Consórcio World Wide Web (W3C). A Web Semântica é uma web de dados. Existe uma grande quantidade de dados que todos nós utilizamos todos os dias, e não é parte da web. A visão da Web Semântica é alargar princípios da Web a partir de documentos para dados. Ela permite que humanos e máquinas trabalhem em verdadeira interação. Enfim, a ideia é transformar a web de um mar de documentos em um mar de dados. Há um excelente FAQ disponível em http://www.w3.org/2001/sw/SWFAQ#What1.

[22] O conceito de ‘comum’ tem sido hoje articulado por uma tendência política pós-estruturalista. O conceito é formulado principalmente por Negri e Hardt e Paolo Virno. A Idoia de ‘comum’, como substantivo, está conectada ao conceito aristotélico de ‘lugar común’. “Cuando hoy hablamos de «lugares comunes», entendemos generalmente locuciones estereotipadas, casi privadas de todo significado, banalidades, metáforas muertas —«tus ojos son dos luceros»—, conversaciones trilladas. Y sin embargo, no era éste el significado originario de la expresión «lugares comunes». Para Aristóteles, los topoi koinoi son las formas lógicas y lingüísticas de valor general, como si dijéramos la estructura ósea de cada uno de nuestros discursos, aquello que permite y ordena toda enunciación particular. Esos «lugares» son comunes porque nadie —ni el orador refinado ni el borracho que murmura palabras sin sentido, ni el comerciante ni el político— puede dejarlos de lado.”. Cfr. VIRNO, 2003, pp. 34-35

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jose-eduardo-de-resende-chaves-juniorJosé Eduardo de Resende Chaves Júnior é Professor Adjunto dos Cursos de Pós-graduação do IEC-PUCMINAS. Doutor em Direitos Fundamentais. Desembargador no TRT-MG. Vice-presidente de Justiça e Novas Tecnologia da Rede Latino-americana de Juízes – REDLAJ. Membro do Grupo de Requisitos para o PJe do Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Coordenador do GEDEL – Grupo de Estudos Justiça e Direito Eletrônicos da Escola Judicial do TRT-MG. Coordenador da obra “Comentários à Lei do Processo Eletrônico” (Ltr, 2010).


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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