Condução Coercitiva e oitiva do investigado ou testemunha à luz dos direitos fundamentais

05/03/2017

Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos – 05/03/2017

A condução coercitiva consiste no tema que, atualmente, ocupa um lugar privilegiado no debate jurídico, em muito graças à ADPF 395, atualmente em trâmite no STF e ao confuso parecer do Procurador-Geral da República apresentado na mencionada ação.

Poderíamos tratar do uso da teoria da proporcionalidade à brasileira pelo Procurador-Geral da República (sonhamos em um dia vermos a utilização correta da teoria de Robert Alexy!!!), poderíamos falar do equivocado uso da distinção entre regras e princípios no contexto teórico do mesmo autor pelo Procurador-Geral da República, como poderíamos ainda falar de como certamente o STF faria o mesmo equivocado uso da proporcionalidade, caso a utilizasse nesta ação, haja vista seu histórico de utilizar não seguir a teoria propriamente dita.

O debate, contudo, se coloca após tais premissas, inclusive porque já tratamos desse tema em alguns artigos desta coluna.

O tema se insere em uma natural tensão existente entre democracia e direitos fundamentais, representando, de certo modo, a tensão entre participação do suposto autor do fato na investigação criminal e o seu direito fundamental em não produzir provas contra si mesmo.

André Ramos Tavares, ao tratar de dez pressupostos para uma democracia deliberativa, afirma que o primeiro pressuposto diz respeito à publicidade das decisões. De acordo com Habermas, numa democracia deliberativa, todos os cidadãos afetados devem ser chamados a participar do processo deliberativo para que tenham a oportunidade de expressar sua visão do tema. O espaço público reclama, naturalmente, essa interatividade entre os destinatários da decisão final e os órgãos detentores de poder. Ademais, é também consequência desse pressuposto, além de o destinatário da decisão final compor o debate, a necessidade de se visualizar tal participação na construção da decisão final, mesmo que o seu fundamento apresentado seja racional e juridicamente refutado.

Em que pese o fato de o inquérito policial ser sigiloso e inquisitivo, é possível fazer a adequação desse primeiro pressuposto ao inquérito policial, como será abaixo analisado. A análise desse primeiro pressuposto deve ser feita no contexto do art. 6º do CPP, em especial o inciso V, o qual determina o dever de a autoridade policial ouvir o indiciado, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura.

Na nossa obra “Delegado de Polícia em Ação: Teoria e Prática no Estado Democrático de Direito”, sustentamos a obrigatoriedade de tal oitiva, a qual somente poderia ser dispensada em casos excepcionais, como, por exemplo, quando o investigado estivesse foragido ou em local desconhecido pela Polícia Judiciária. A finalidade de tal posicionamento é direcionar uma crítica para algumas jurisprudências teratológicas dos tribunais pátrios, tal como a decisão abaixo do STJ que validou a desnecessidade da oitiva do indiciado durante o procedimento investigativo, bem como impossibilitou a sua eventual ativa participação na investigação criminal com o seu depoimento, com pedidos de diligências e com juntada de documentos:

O inquérito policial e o procedimento investigatório efetuado pelo Ministério Público são meramente informativos, logo, não se submetem ao crivo do contraditório e não garantem ao indiciado o exercício da ampla defesa. Desse modo, não se vislumbra nulidade pela ausência de oitiva do investigado na fase indiciária, sobretudo porque ele teve oportunidade de se defender de todas as acusações antes do recebimento da denúncia pelo Tribunal a quo, em virtude das prerrogativas de seu cargo de Promotor de Justiça ( HC 142089, julgado em 28/9/2010, Rel. Ministra Laurita Vaz.).

Essa crítica foi construída ao argumento de que, a partir da base teórica apresentada, é direito subjetivo do suposto autor do fato delituoso ser ouvido durante o curso do inquérito policial para que apresente os seus argumentos, ressalvados alguns casos excepcionalíssimos. Afinal, não se pode concluir uma investigação em andamento em face de determinado cidadão quando o seu endereço para eventual intimação é de conhecimento da Polícia Judiciária.

Pois bem. No artigo, “Investigação Criminal no Estado Constitucional: reflexões sobre um novo paradigma investigatório”, Pedro Ivo de Sousa oferece relevantes contribuições sobre o tema. O estudo foca na relação entre investigação criminal e Estado Constitucional, com a identificação de um novo paradigma da atividade investigativa no Brasil, capaz de respeitar uma natural tensão existente entre direitos humanos, eficiência e democracia, tendo como pano de fundo uma perspectiva do garantismo integral.

A partir de críticas direcionadas ao paradigma indiciário e ao paradigma inquisitório, modelos de investigação já superados no Brasil, Pedro Ivo de Sousa (2015, p. 48) defende que a Constituição Federal de 1988 instituiu o modelo de investigação garantista:

Neste novo modelo brasileiro, há uma tentativa de ampliação quantitativa e qualitativa da participação popular nas decisões públicas, por meio de vários instrumentos e garantias, que lhe conferem papel de destaque, de forma a conferir maior legitimidade às ações do Estado.

(...)

A questão, por outro lado, é que esta abertura democrático-interpretativa, especialmente no âmbito do Estado Democrático de Direito brasileiro, tem criado uma verdadeira confusão no nosso sistema jurídico, fruto, salvo engano, de alguns equívocos teóricos e práticos, que envolvem a própria coexistência do constitucionalismo e da democracia.

O equilíbrio necessário entre estes dois grandes pilares do Estado Constitucional brasileiro precisa ser estabelecido com foco na razão de suas existências, evitando, assim, o colapso sistêmico, que lhe retira a integridade, a sistematização, a coerência lógica e a justiça.

Essa proposta, no entender do supramencionado autor, é também uma crítica ao atual modelo de investigação criminal, o qual tem deixado de focar sua atenção na eficiente elucidação dos fatos criminais ao conferir relevância desproporcional à tutela dos direitos fundamentais. É a partir desse pensamento que Pedro Ivo de Sousa (2015, P 63 E 64) faz a seguinte ponderação:

Neste sentido, ainda que se concorde com a construção teórica apresentada por Zanotti da afirmação do direito subjetivo do investigado de ser ouvido durante o inquérito policial, não se entende como cabível a defesa do efeito por ele proposto de obrigatoriedade quase que absoluta de oitiva do investigado, com base no art. 6º, inciso V, do CPP, querendo tornar nula uma investigação que deixasse de ouvir o investigado, salvo nas condições por ele propostas.

(...)

Além disto, ao que tudo indica, também merece melhor análise a afirmação do autor de que a obrigatoriedade da oitiva do investigado decorreria de uma leitura textual do art. 6º, inciso V, do CPP, que, na sua visão, somente poderia ser dispensada no curso do inquérito policial se ele estiver foragido ou em local desconhecido pela Polícia Judiciária.

Por fim, o autor (2015, p. 65) apresenta a seguinte proposta:

É possível, assim, defender a inexistência teórica e prática do dever da Autoridade Policial de oitiva do investigado, ainda que realizável, toda vez que se demonstrar desnecessária para a finalidade da investigação, já que fugiria ao propósito maior desta atividade.

Entretanto, o que se entende por incabível, por outro lado, é a possibilidade de que, ainda que se demonstre aparentemente desnecessário, a Autoridade Policial se negue a ouvir o investigado quando ele próprio demonstre ter interesse no exercício do seu direito de ser ouvido.

De fato, Pedro Ivo de Sousa contribui com várias propostas para o crescimento da investigação criminal. Antes de analisar a proposta, faz-se necessário diferenciar, de um lado, a obrigatoriedade da intimação do investigado pelo Delegado de Polícia e, por outro lado, a faculdade deste investigado em se submeter ao interrogatório.

A posição defendida nesta obra não tem por finalidade garantir uma “cega” obrigatoriedade na intimação do investigado, mas, tão-somente, superar o senso comum de que esse ato é uma questão discricionária da Autoridade Policial. Até porque, existem certas situações, por exemplo, quando o investigado está no estrangeiro, em lugar desconhecido, foragido ou mesmo em coma hospitalar, nas quais a sua intimação pode não acontecer. Contudo, essa dispensabilidade não é algo que está à disposição do Delegado de Polícia e são as circunstâncias fáticas do caso concreto que determinarão a melhor forma de dar seguimento à investigação criminal, a qual pode ser concluída em situações excepcionalíssimas sem a intimação do investigado.

Apesar dessa “obrigatoriedade regrada” do Delegado de Polícia em proceder à intimação do investigado, a oitiva na Delegacia de Polícia consiste em uma faculdade que está à disposição da defesa e que somente ocorrerá com a respectiva concordância. Sobre o tema, como se observou acima, Pedro Ivo de Souza defende a inexistência teórica e prática do dever da Autoridade Policial de oitiva do investigado, ainda que realizável, toda vez que se demonstrar desnecessária para a finalidade da investigação. A fim de concretizar no plano prático a sua posição, o autor entende, ainda, que a não manifestação do investigado no prazo estabelecido pela intimação consiste em exercício da sua vontade democrática e, enquanto não for necessária para o esclarecimento dos fatos que envolvem a investigação, a autoridade policial, desde que devidamente motivada, pode concluir o inquérito sem a oitiva do investigado.

De fato, a não manifestação do investigado após regular intimação consiste em exercício da sua vontade democrática. Não obstante, o poder de condução coercitiva do Delegado de Polícia lhe concede a prerrogativa de exigir a presença do investigado na Delegacia de Polícia, mesmo que ele se negue em comparecer e/ou em ser ouvido. Faz-se necessário encontrar o equilíbrio entre os direitos fundamentais do investigado e as atribuições da Autoridade Policial como consequência do equilíbrio entre constitucionalismo e democracia.

No dia a dia da atividade policial, não é raro um interrogatório supostamente infrutífero tornar-se de grande relevância ou uma condução coercitiva resultar no compartilhamento de dados importantes, seja porque na Delegacia de Polícia e diante das provas apresentadas o investigado decidiu colaborar, seja porque a sua oitiva agregou algum tipo de informação que não era de conhecimento do Delegado de Polícia, seja porque o investigado fez menções a outras pessoas, documentos ou objetos que até então eram desconhecidos da investigação. Em outras palavras, a utilidade da presença do investigado na Delegacia ou de sua oitiva pelo Delegado de Polícia somente devem ser analisada após a sua respectiva realização e, em especial, com o seu confronto com todas as provas documentadas no curso do inquérito policial.

É por isso que cabe à Autoridade Policial promover a intimação do investigado e/ou a sua condução coercitiva à Delegacia de Polícia, mesmo quando a sua oitiva supostamente se mostrar desnecessária, a fim de que seja dada ao investigado a possibilidade de contribuir para a investigação criminal e influenciar a decisão final do Delegado de Polícia.

Sobre o tema da condução coercitiva, cabe um questionamento final: É possível a condução coercitiva do investigado ou testemunha sem intimação prévia?

No curso do inquérito policial, o indiciado, o investigado e as testemunhas são intimados para comparecerem à Delegacia de Polícia e prestarem esclarecimentos sobre o fato. O não comparecimento à data marcada, além de incidir no crime de desobediência (caso haja essa previsão no mandado de intimação), também autoriza a condução coercitiva da pessoa à Delegacia de Polícia. De acordo com o art. 260 do CPP,  se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. Acontece que o art. 260 do CPP, regra em sua essência, deve trazer em si um valor a fim de nortear a sua aplicação no caso concreto:

A diferença é que sempre há uma ligação entre regra e princípio. Não fosse assim e não se poderia afirmar que atrás de cada regra há um princípio instituidor. Esse princípio, que denomino “instituidor”, na verdade, constitui o sentido da regra na situação hermenêutica gestada pelo Estado Democrático de Direito. Essa é a especificidade; não é um princípio geral do direito, um princípio bíblico, um princípio (meramente) político. No fundo, quando se diz que entre regra e princípio há (apenas) uma diferença (ontológica, no sentido da fenomenologia hermenêutica), é porque regra e princípio se dão, isto é, acontecem no interior do círculo hermenêutico. O sentido de um depende do outro, a partir desse engendramento significativo. (STRECK, 2014, 78-79)

Por isso, quando o valor que a determinação legal pretende preservar acaba por violar outros direitos fundamentais, outra deve ser a análise no caso concerto. Claro, só aprofundar nesse tema já demandaria um artigo por si só e foge do tema aqui tratado.

Contudo, é importante ressaltar que, comprovada a necessidade e urgência da condução coercitiva, esse instrumento pode ser utilizado independentemente de um prévio mandado de intimação. Por exemplo, na hipótese de uma testemunha ser ouvida no último prazo da prisão temporária, após ela já ter sido prorrogada, fazer referência a uma testemunha ocular do fato e essencial para a elucidação dos fatos, a condução coercitiva figura-se como instrumento importante ao caso narrado, a fim de não se prolongar ainda mais a investigação criminal. Outros exemplos podem ser tratados, até mais condizentes com a excepcionalidade da medida, dentro da riqueza que somente o caso concreto pode fornecer.

Por fim, registra-se que a utilização da condução coercitiva sem prévio mandado de intimação constitui medida de exceção, devendo ser fundamentada pelo Delegado de Polícia a partir de uma motivação que guarde coerência e integridade com o ordenamento jurídico vigente.


Notas e Referências:

SOUSA, Pedro Ivo de. Investigação Criminal no Estado Constitucional: reflexões sobre um novo paradigma investigatório. In: ZANOTTI, Bruno Taufner; SANTOS, Cleopas Isaías (Coords.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. Bahia: Juspodivm, 2015.

STRECK, Lenio. Lições de crítica hermenêutica do direito. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2014.

TAVARES, André Ramos. Democracia deliberativa: elementos, aplicações e implicações. Revista Brasileira de Direitos Constitucionais. RBEC: Belo Horizonte, ano 1, nº 1, jan. 2007. Disponível em: <http://en.scientificcommons.org/55925692 >. Acesso em: 5 jun. 2012.


Bruno Taufner ZanottiBruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor do MBA em Direito Público da FGV-RJ. Professor do CEI, Curso Preparatório para Delegado de Polícia Civil. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Fundador, em parceria com o juiz André Guasti Motta, do site Penso Direito (www.pensodireito.com.br) e colunista do site www.delegados.com.br.


Cleopas Isaías Santos. Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.


Imagem Ilustrativa do Post: sigue la luz (cuidado no te pierdas) // Foto de: guillermo varela // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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