Condenem aquela preta! Uma história de quilombo, de família, de direito e injustiça    

29/10/2019

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

Quando o escritor Monteiro Lobato, em 1931, escreveu As reinações de Narizinho, da série Sítio do Pica-pau Amarelo, ninguém reclamava ou sequer demonstrava indignação – visto a época das primeiras publicações do livro – de Narizinho tratar tia Nastácia como uma outrora linda princesa branca amaldiçoada com a negritude. Zezé Motta, negra, cantora e atriz brasileira de 75 anos de idade e 52 anos de carreira, recusou tantos papeis de babá e empregada doméstica, depois de ter feito muitos com essa característica, que quase colocou fim à própria carreira. Em 2019, Maria Júlia Coutinho, ou Maju, como prefere ser chamada, então “moça-do-tempo” do telejornal da emissora Rede Globo, assumiu momentaneamente o papel de âncora do Jornal Nacional, por causa disso foi motivo de noticiários pelo país por: 1) primeira vez em 50 anos que uma mulher negra apresentava o jornal; e 2) os diversos ataques racistas das pessoas que não aceitaram uma mulher preta em papel tão “importante” para o jornalismo brasileiro.

Todos os três casos têm uma curiosa interligação: como a mulher negra ao longo dos anos no Brasil tem um importante papel, do qual ninguém faz melhor, do qual não pôde fugir. A herança de uma vida escravocrata ainda latente na sociedade brasileira, que idealizava a mulher preta como babá, empregada, ama de leite das bocas famintas dos senhorzinhos, como objeto de desejo sexual de senhores de engenhos até os brancos que preferem não assumir relacionamento com mulheres negras, mulata de escola de samba, a mãe de santo para horas difíceis...  Seja tia Nastácia, as muitas serviçais de Zezé Motta e outras atrizes negras, ou a “surpresa” do protagonismo de Maju Coutinho, o resultado era o mesmo: personas sem filhos ou vida, mas que cuidavam muito bem da cria de sua senhoria, sujeitas que não têm direito de ser algo além do que a sociedade compõe para sua existência. É evidente que os três casos retratados acima existam em momentos distintos, mas refletem o imaginário popular, tão agarrado às essas características, no qual a submissão da mulher negra é tão obvia que não se pode nunca deixar de ser aquilo que a sociedade acredita que elas “nasceram” para ser.

São pensamentos assim que fazem, por exemplo, o judiciário brasileiro, em especial o catarinense, julgar uma mãe negra e quilombola por “não primar pela qualidade de vida, era inerte em relação aos cuidados básicos de saúde, higiene e alimentação.” Esse é o caso de Maria das Graças de Jesus, a Gracinha, mulher quilombola, que teve suas filhas, na época, de cinco anos e três anos, retiradas arbitrariamente do seu convívio e dos seus familiares no quilombo – por policiais fortemente armados e na calada da noite –, como sentenciou o Juízo da Comarca de Garopaba. Gracinha fora afastada das filhas em novembro de 2014, por decisão judicial com base em relatórios de três assistentes sociais – ou de quase todas elas, visto que duas das três assistentes relataram de maneira detalhadas a atenção e o cuidado que existia dentro da família o que demonstrava divergência primordial em outras informações inverídicas apresentadas no processo. Proibida de visitar constantemente as filhas, por quase dois anos teve esporádicos e rápidos encontros até receber a informação que as meninas já não se encontravam no abrigo e que estavam residindo há meses com famílias substitutas, de origem não quilombola.

O primeiro grande desrespeito do caso Gracinha é a destituição arbitraria do poder familiar das crianças quilombolas e da mãe, que, como era de esperar, tem todos os estigmas sociais evidentes em sua vida, sendo mulher, negra, pobre, catadora de lixo, conjunto que, por si só, já causa repulsa na sociedade civil branca, se juntam as outras grandes realidades: quilombola e mãe solteira. Gracinha é um ser excluído, que não é levado em consideração, um ser estranho aos olhos que condenam, é quase conflitante que se considere aceitar que, mesmo cheias de estigmas, realmente possa ter criado suas filhas com dignidade, já que vivia, para seus algozes, uma vida maldita. Deste modo é muito mais fácil condená-las, e para uma sociedade que tolera esse tipo de indivíduo, como mãe Gracinha, vê-las conseguindo trilhar um caminho diferente do que predestinado, foi assinar a sentença de sua condenação. Gracinha não poderia ter saído do seu lugar próprio, a marginalização.

Todo o processo passado pelas crianças, desde ficaram no abrigo Casa de Lar Chico Xavier, localizado no município de Biguaçu/SC por longos dois anos e serem colocadas à adoção compulsória e posteriormente encaminhadas para uma família fora da comunidade quilombola – mesmo que famílias da comunidade quilombola tenham entrado com o pedido de guarda da família extensa – traz em evidência o desrespeito ao devido processo legal e a legislação vigente. Deste modo, sendo completamente contra a lei, uma vez que, pessoas de comunidades tradicionais devem, quando existir casos como esses, ser encaminhadas para uma família extensa, ou seja, alguém, no mínimo, que pertença àquela comunidade, como versa o art. 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), respeitando seu poder de família.

No entanto, vale salientar que todo processo de retirada de guarda em qualquer família, independente de ser quilombola ou de comunidade tradicional, por si só já deve ocorrer de maneira criteriosa, é necessário uma avaliação técnica interdisciplinar baseada em direitos da família e da criança. Por isso, é importante destacar que tomar a decisão de retirada imediata, é violar e ignorar arbitrariamente o direito das crianças – afinal, mesmo que os responsáveis tenham de fato cometido alguma infração, as crianças não podem ser punidas, uma vez que a retirada autocrática do convívio familiar é, antes de tudo, uma dor inenarrável para as garotas.

A cosmovisão aprendida nas comunidades é singular e particular, difere totalmente daquilo compreendido e ensinado pela sociedade civil. O que se instrui e assimila nessas comunidades tradicionais é um dos bens mais importantes para que se mantenham suas tradições. Nossos estudos, livros sobre a temática, ou qualquer outra pessoa de fora, não seriam capazes de abranger detalhadamente todo saber ali contido, por não viver a realidade, retirar alguém desta comunidade é um ato criminal.

A comunidade de Gracinha e suas meninas, desde 2010, já tinha recebido a Certidão de Reconhecimento da Comunidade Remanescente de Quilombo da Fundação Cultural Palmares, e mesmo que ainda não tenha tido todos os regulamentos de identificação, demarcação e titulação das terras quilombolas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria (INCRA), se entender quilombola vai muito além do certificado ou de uma identificação de pessoas de fora da comunidade.

Então, a alegação do juiz de não pertencer a uma comunidade quilombola, ou da Comunidade de Toca\Santa Cruz não ser quilombola, desmancha-se nesse primeiro argumento, mas, se necessário à reafirmação de leis – em um processo quase de ensino, amabilidade e admoestação – para tratar com um judiciário desrespeitador, percebemos que com o certificado ocorre o reconhecimento dos órgãos federais na aplicação do art. 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Brasileira – que tem como finalidade estabelecer as regras de transição entre normas de regimes jurídicos – de 1988 (ADCT\CF88), são essas reconhecidas comunidades remanescentes de quilombos.

Autoidentificar-se como quilombola, mesmo que isso tenha sido arbitrariamente ignorado pelo juizado, é um direito adquirido de Gracinha e suas meninas, e mais uma vez demonstra o quanto seu processo corre em dissonância com o Estado Democrático de Direito. Esta autoidentificação também é encontrada na Convenção no. 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais, de 1989, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), quando versa sobre a autoidentidade indígena ou povos tradicionais como uma inovação do instrumento, e a identificação como critério fundamental e subjetivo para a definição dos povos sujeitos da Convenção OIT. Isto é, nenhum Estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou comunidade tradicional que como tal se autoreconheça.

Apesar das comunidades quilombolas se firmarem no país há muitos anos, e sim, já estão não só inseridas, mas também reconhecidas na sociedade brasileira, ainda existem vestígios de conceitos errôneos e retrógrados que penalizam a mãe e familiares quilombolas não só pela pobreza e pelo estigma social, mas por um racismo estrutural evidente e latente que atinge quase todos os cantos do Brasil, ferindo assim a dignidade humana, macro princípio não só norteador do Estado Democrático de Direito, mas grande representante axiológico da ordem constitucional, que irradia efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, principalmente sendo basilar das relações familiares.

Entendemos que os conflitos existentes no Brasil Colônia ainda são marcas profundas na sociedade civil brasileira atual, mesmo 131 anos depois do “fim” da escravidão. O racismo, a misoginia e o preconceito ainda imperam nas relações, mesmo aquelas que deveriam ser baseadas pelo princípio da igualdade, como o judiciário. O que nos leva a uma pergunta importante: a escravidão realmente acabou no Brasil? Ora, sabemos como a escravidão foi monstruosamente danosa ao povo negro, que mesmo quando foi oficialmente findada sua prática, essa escravidão perdurou nas histórias, no desenvolvimento e principalmente nas relações sociais, ainda vivemos uma realidade muito parecida quando pensamos no desrespeito e na insegurança que vivem o povo negro deste país. Quando o capitalismo precisou de mais força de trabalho, remodelou a escravidão, retirou o negro e a negra da senzala e do tronco e passou a escravizar através do diálogo, inventando a CLT, que escraviza burocraticamente, com carteira assinada, recebendo aquilo que se merece ganhar, mas raramente o que é justo.

Esse entendimento, de maneira subjetiva, é aceito em nossa sociedade civil, mas não é dentro de um quilombo, até porque em sua formação até hoje, a relação capitalista é muito pequena nas relações de dentro de um quilombo, vide Gracinha e seus ascendentes que viviam em busca apenas do pouco necessário para sobrevivência, cantando lixo pelas cidades, revendendo achados, fazendo pequenas trocas, ganhando coisas. E o Estado não considera isso correto, não assegura esse estilo de vida e age como garantidor dessas pessoas que vivem em situação de risco, e ao fazer isso responsabiliza apenas o sujeito por estar naquelas condições. Mas o Estado é falho com esses sujeitos invisíveis, pela falta ou pelas desastrosas políticas públicas que ele lhes apresenta. Gracinha foi condenada antes de ser julgada. Porque Gracinha é tudo o que a sociedade, o judiciário e o Estado tentam não enxergar e negam sua existência. Não importa se Gracinha é uma boa mãe ou não. Não importa quem ela seja e nem de onde ela vem. Importa que a sociedade sempre estará ali para julgá-la e contestar sua humanidade, mas nunca para auxilia-la quando preciso for.

Gracinha, que um dia ganhou a oportunidade de transformar a vida de suas filhas, perdeu para o racismo, afinal, como fica a sanidade de uma pessoa que tem seus direitos usurpados desta maneira? Que se esforçou tanto para dar uma vida digna a suas filhas e que era reconhecida como uma mãe exemplar nas escolas com a assiduidade, com a ida das meninas no posto médico, para que tomassem as vacinas corretamente e em dia, com as roupas limpas e sempre muito bem arrumadas e penteadas, cuidado reconhecido por assistentes sociais, e mesmo diante destas realidades em um instante já não tem mais nem o direito de encontrar suas filhas.

Suas crianças sem entendimento da justiça e da lei sabem apenas que foram retiradas de casa, da mãe e do lar quilombola por não serem bem tratadas ali. E é com esse entendimento que estão crescendo, com esse sentimento que vão continuar em suas vidas: o de abandono. Desconhecem de seu direito assegurado e aos poucos vão esquecendo-se de sua antiga vida quilombola, até nada mais restar desta história.  

Mas Gracinha, a comunidade quilombola e todos que estão ainda lutando para reverter esse processo perverso e corrompido viverão na espera que consigamos tratar com igualdade material, dando tratamento diferenciado a quem se encontra em situação diferenciada. Que consigamos reconhecer nossos erros históricos que perpetuam na dor de uma sociedade muito nova como a nossa, no auge de sua formação, onde a cor não tenha peso discriminatório. Que a mulher negra consiga ter real espaço para deixar o lugar de vulnerabilidade social que se encontra hoje.  Que as crianças quilombolas ou não, tenham seu direito assegurado, resguardado e nunca contaminado pelo heroísmo controverso daqueles que conhecem tudo, menos a verdade.

A justiça brasileira gira em torno daquele que detém mais poder, o poder financeiro, e deste modo está corrompida desde suas raízes até sua copa, mas ainda assim é uma realidade que precisa ser combatida todos os dias; do inicio, na entrada dos estudantes das Faculdades de Direito, na reforma dos agentes do direito, no combate a ideia retrógada de “juiz rei”. A justiça deste país não pode ser para apenas específicos indivíduos, não pode servir de maneira não democrática e nem insistir em ser arma institucional do racismo estrutural brasileiro. Há de se entender que é preciso resgatar a justiça antes que não se consiga mais acreditar em um Estado Democrático de Direito e deste modo possamos garantir que injustiças como o caso de Dona Gracinha e suas filhas não ocorram mais, nunca mais.

Até a finalização deste texto Gracinha não tinha conseguido a guarda, nem ao menos reencontrado suas filhas.

 

Imagem Ilustrativa do Post: untitled // Foto de: Feans // Sem alterações

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