Concurso, ensino jurídico e (neuro) fraude: O triunfo da impostura (Parte 2)

02/06/2015

Por Atahualpa Fernandez - 02/06/2015

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Leia a Parte 1 aqui

“Un tonto encuentra siempre otro más tonto que lo admira”.

Sherlock Holmes

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Parte 2

Claro que a estupidez existiu sempre e que os estúpidos, independentemente de qualquer outra característica, são perigosos e influem sobre outras pessoas com intensidade muito diferente (C. M. Cipolla). O insólito é que, apesar do difícil que resulta imaginar e entender o poder devastador e destrutor da estupidez, este tipo de ciência fraudulenta nunca havia tido tanta transcendência.

Entendo que não é infrequente que pessoas inteligentes deem crédito a coisas extremadamente estúpidas. Ou, em outras palavras, que pessoas inteligentes e cultas, algo que nem sempre e em todo lugar vai de mãos dadas, façam uso da homeopatia, utilizem plegárias de intercessão quando as circunstâncias são desfavoráveis, se atem pulseiras que atraem “energias” positivas, creiam que os azeites ômega-3 originários do pescado melhoram a inteligência, ou estejam convencidas de que há fórmulas para turbinar o cérebro de forma rápida e confiável, e métodos “perfeitos”, infalíveis ou milagrosos para aprender e memorizar depressa e eficazmente. Desgraçadamente, larga é a lista de ciência vudu.

O único inconveniente, para o que aqui interessa, é que a experiência indica algumas trivialidades que abalam este tipo de fantasia: i) que cada um deve procurar encontrar o método que melhor se adapte a si mesmo; ii) que todo caminho (método [1]) se faz ao caminhar (em nosso caso, ao estudar); iii) que em questão de método, as eleições e decisões acertadas dependem da experiência, e adquirir experiência depende, na maior parte das vezes, de eleições e decisões equivocadas; e iv) que o método de estudo elegido pode não ser o melhor entre todos os concebíveis e sugeridos, mas seguramente será (ainda que potencialmente) o melhor entre todos os possíveis e disponíveis para nossa particular, específica, intransferível e única situação. [2]

O que nos dá sobradas razões para ser otimistas, porque podemos dedicar-nos a fazer nosso próprio cérebro (que é nossa obra), a lançar-nos ao “desafio plástico” e configurar, com autonomia e liberdade, nossa própria e singular capacidade para aprender e recordar [3]. O potencial para aprender habilidades novas e para melhorar as que já temos é amplo, e seguramente dispomos das condições necessárias para aproveitá-lo e desenvolvê-lo. Isto requer, apenas, que pensemos claramente sobre nossa própria experiência (única e intransferível), que questionemos nossas suposições, que saibamos distinguir o que sabemos bem do que só cremos saber que seja certo e, o mais importante, que desafiemos a todo aquele que se dedique a predicar discursos supérfluos sobre o cérebro. Em suma: i) há que decifrar-se, cultivar-se, palpar os próprios limites, questionar tudo e fazer da experiência vivida de estudar/aprender o que ninguém tenha feito antes; e ii)  como sucede com todos os esforços por aprender, a norma é «praticar, praticar e praticar» até que o aprendizado se torne automático e intrinsecamente satisfatório. (W. Mischel)

Por certo que isto não significa que devamos descartar de plano tudo o que nos diz a indústria da “neuroeducação”. Muitos livros, vídeos, palestras e conselhos dessa natureza oferecem consolo (ainda que falsos), nos alentam a assumir nossas responsabilidades, a ter disciplina, a estudar com regularidade e atenção, a enfrentar as dificuldades, a buscar sabedoria e felicidade, a confiar em nossas capacidades, a superar nossos momentos de desânimo e frustração, a ter fé, a acreditar que “tudo passa”... Em geral, como já disse em outra ocasião, todos são bons conselhos.

O verdadeiro problema é que estes conselhos, quando não apelam à intercessão divina, normalmente vêm intercalados com falsos matizes psicológicos, interpretações fantasiosas e com afirmações que contradizem frontalmente algumas evidências científicas atuais (aliás, na maioria das vezes, a ciência sugere detalhes mais básicos de nossa experiência ordinária sumamente incômodos para a mente humana). Como consequência, acabam por produzir nos mais crédulos aquilo que os economistas denominam de custo de oportunidade ou custo alternativo, isto é, o fato de que as pessoas que seguem ou adotam uma medida ineficaz podem estar perdendo a oportunidade de utilizar outro meio efetivo ou obter outro tipo de ajuda que lhes seja mais útil e necessária.

Quando se trata de fazer eleições e tomar decisões muito sérias no mundo real, a banalização de qualidades tão vitais como intangíveis (concentração, conduta, inteligência, vontade, ânimo...) é motivo de desinformação, burla e sofrimento. Por isso resulta uma grande perda de tempo levar a cabo qualquer “prática” que alguém possa sacar da manga para vender um aprendizado milagroso improvável. Dito de forma mais direta: não é o cacarejar do galo que faz com que saia o sol ao amanhecer. (E. Rostand)

Também há a questão da “falácia de autoridade”, quer dizer, de nossa tendência a aceitar qualquer coisa porque o disse determinada pessoa com certa fama e não pelas virtudes (científicas) ou defeitos próprios da afirmação. Enquanto esses gurus ou violadores da ciência buscam dizer à gente o “que pensar” e o “que fazer”, a divulgação da boa ciência, ao promover o pensamento racional, ensina precisamente o contrário, a duvidar, a pedir dados, a utilizar critérios de verdade fiáveis, pretende em todo caso ensinar a como pensar. Este, e somente este, “deveria ser o objetivo da educação”. (J. Beattie)

Mas, para estes indivíduos, não somente a ciência é um monólito, um mistério (antes que um método), senão que fazem caso omisso, por princípio, do fato de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossos argumentos. Em realidade, temos a impressão de que os gurus “de moda”, pelo menos em sua grande maioria, não são capazes de reconhecer uma história verdadeiramente científica nem que esta baile desnuda ante eles [4].

Resultado: as pessoas que crêem equivocamente que os conselhos otimistas e pseudocientíficos, as receitas mágicas e as promessas de êxito divulgadas por algum “especialista no assunto” são um meio eficaz para superar as dificuldades podem estar investindo uma grande quantidade de tempo, dinheiro e recursos (cognitivos e emocionais) em uma atividade inútil. Também podem estar desaproveitando outros meios efetivos para aprender e que poderiam ser-lhes realmente importantes e mais benéficos. Já sabem o que dizem: “As oportunidades marcam nossa vida, inclusive aquelas que não criamos ou as que deixamos passar”.

Evidentemente que no gosto de cada pessoa entram muitos ingredientes distintos, que a mente humana sempre busca algo mais acariciador que a verdade e que a importância das coisas que experimentamos é sempre uma questão de interpretação e valoração pessoal. Há receitas, promessas e conselhos divertidos, atraentes e otimistas que servem para levantar o ânimo, motivar, alegrar o dia e dar certa segurança. Mas não há que fazer-se demasiadas concessões, posto que estudar e aprender não guarda uma relação muito estrita com este tipo de prática.

Além disso, se alguém se expressa com um tom de certeza absoluta ao falar destes temas (ensino, aprendizado, memorização, técnicas, métodos, “turbinagem”, “autoajuda cerebral”...), lhes estará dizendo algo basicamente incorreto, pois as provas de causas e efeitos neste âmbito são quase sempre débeis e circunstanciais, e as diferenças de personalidade de cada indivíduo (tanto as relativas ao “caráter” como as vinculadas com o “temperamento”) podem não ter relação alguma com os problemas que afirmam “tratar”. Somos o que somos. E aqui vai outro conselho: embora cada pessoa ajuste sua visão do mundo e da vida à medida de seus desejos, cuidado com os indivíduos que carecem de “ouvido” para as coisas da ciência, porque a mais cega subjetividade é o mais daninho e perverso “critério de verdade”: dado que o sinto assim, assim é; marca de fábrica do pensamento infantil.

Por último, direi que não me surpreende que haja empreendedores e gurus (indivíduos, em definitiva) que se dediquem a vender suas experiências, técnicas, métodos e ideias no mercado livre. Em certo (ainda que estranho) sentido, sou capaz de respeitar e suportar sua tenacidade, seu patológico excesso de autoestima e sua inquietante falta de autocrítica. O que de verdade me tem assombrado é que algumas instituições de ensino, que (pelo menos em teoria) são depositárias de um conjunto muito distinto de responsabilidades, silenciem, acolham ou incentivem esses profissionais que enganam, confundem e “deslumbram” com explicações de pretendida cientificidade, como o mais condescendente dos doutores vitorianos imaginável.

E, sobretudo, que o façam em um campo como a educação, donde o perigo é muito concreto, fomentando um tipo de prática levada a cabo por indivíduos impelidos em todo momento pelo desejo de criar um mercado para si mesmos, em que eles são os “expertos” nessa classe de enfoque e nós os engambelados e os ignorantes; isto é, levando-nos a pensar que sabem algo que em realidade desconhecem: sujeitos adictos a encontrar as justificações e argumentos que lhes convêm para afilar, limar e alterar seletivamente a mensagem que desejam transmitir através do uso indiscriminado e vicioso da (neuro) ciência. Assim se fabricam os pesadelos.

O que quero dizer é que, pelo menos diante das atuais limitações e carências da investigação neurobiológica, parece de todo razoável (recomendável, inclusive) evitar deixar-se seduzir pelas licenças poéticas ou pelo uso abusivo e charlatão de quimeras acerca do poder da mente, da capacidade do cérebro para aprender e memorizar, do controle motivacional, etc., sob pena de corrermos o risco de descaminhar-nos nos delírios de uma mente vadia ou de perder-nos em uma selva de falsas ideias.

Da mesma forma como a religião condena aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também muitos dos grandes mitos sobre “como aprende o cérebro” não somente podem fazer-nos perceber como irrefutavelmente reais as mais disparatadas e nauseabundas fábulas sobre nosso cérebro, senão que também podem levar-nos a tomar decisões poucos acertadas em nossa vida cotidiana de estudantes. Neste preciso momento, basta com saber que já contamos com um cérebro/mente com todo o imprescindível para desenvolver nossa capacidade de aprender e memorizar o que necessitamos e, dessa forma, aprovarmos em qualquer concurso público. Só é necessário um pouco mais de atenção, de entrega pessoal e uma firme disposição para atuar livremente e fazer nosso próprio cérebro.

Depois de tudo, o ingrediente mágico para ter um êxito excepcional na vida, diz Walter Mischel citando a sua avó, “es lo que ella llamaba sitzfleisch: «calentar el asiento» y poner todo el empeño necesario en hacer un trabajo”. Assim de simples.


Notas e Referências:

[1] Palavra que provém do termo grego methodos ( -μετά [meta]= através de, por meio; -οδός  [hodos]= via, caminho) e se refere ao meio utilizado para chegar a um fim ou os passos a seguir para realizar algo. Seu significado original designa o “caminho a seguir”, caminho para intentar lograr um fim. Servir-se de um método é, antes de tudo, tentar ordenar o trajeto através do qual se possa alcançar os objetivos projetados. “Caminante no hay camino, se hace camino al andar” (Antonio Machado).

[2] Sejamos sérios. Dado que não se aprende a nadar ou a tocar piano lendo um livro sobre o assunto ou simplesmente atendendo aos conselhos de outras pessoas, o mais sensato e útil é admitir de uma vez por todas que se aprende a estudar estudando e que nunca é possível prever com absoluta certeza se um determinado método produzirá um determinado efeito – quero dizer, que seguindo tal método se obtém tal êxito. É na experiência concreta de estudar que se descobre o melhor método pessoal para aprender, armazenar e para recordar a informação: “O que temos de aprender a fazer, aprendemos fazendo”(Aristóteles). Daí que o realmente importante é não deixar-se influenciar pela esquizofrenia de conselhos, fórmulas estilos ou métodos de estudo que reina na indústria e no mercado dos concursos. É de pouca serventia porque, às vezes, dada a complexidade de todo esse emaranhado de sugestões e conselhos sobre “como estudar”, resulta mais difícil compreender e pôr em prática um método em particular do que o próprio ato de estudar em si mesmo – em especial no que se referem as suas eventuais possibilidades e vantagens reais e factíveis para um aprendizado significativo.

[3] O que implica que podemos (e devemos) cultivar nosso cérebro, que gozamos da capacidade de adaptar-nos a novas circunstâncias e de adquirir informação até a etapa final da vida (ainda que essa capacidade diminua com a idade). E mais: a plasticidade do cérebro depende do quanto se usa e em que sentido, com o qual trabalhá-lo não somente é possível, senão também recomendável. E uma vez que os mecanismos de aprendizagem e memória são os que fazem que tal coisa ocorra, pode-se dizer que as estruturas do cérebro tornam possível o aprendizado e, ao mesmo tempo, que o aprendizado modifica essas estruturas e também seu funcionamento. Em questão de aquisição de sólidos conhecimentos o cérebro se fortalece principalmente durante e mediante o aprendizado contínuo e atento: somos e aprendemos aquilo que nos interessa.

[4] É certo que alguns deles têm credenciais acadêmicos e outros não; mas isto, no fundo, não é o fundamental. O substancial é que a grande maioria deles oferecem fórmulas para estudar e aprender melhor, mas poucas dessas fórmulas têm uma base científica ou estão rigorosamente baseadas em uma investigação séria e robusta. De toda forma, em defesa de quase todos os gurus, eu mesmo sustentaria que talvez careçam da experiência acadêmica (científica) necessária e adequada para que possamos chamar-lhes de mentirosos. Harry Frankfurt analisou de modo largo e detido essa questão em seu clássico ensaio On Bullshit. Segundo seu modelo, o “bullshit” constitui uma forma de falsidade distinta da mentira. O mentiroso conhece a verdade e esta lhe importa, mas se propõe deliberadamente induzir ao erro; o veraz conhece a verdade e trata de transmiti-la; mas o bullshitter não lhe importa a verdade e o único que pretende é impressionar-nos. “Es imposible que nadie mienta a menos que sepa la verdad. Pero para producir bullshit no se precisa de tal convicción. […] Cuando un hombre honesto habla, sólo dice lo que cree que es verdad. Igualmente, para el mentiroso es indispensable en la misma medida considerar falsos sus propios enunciados. Para el bullshitter, sin embargo, nada de eso tiene importancia: no está del lado de lo verdadero ni del de lo falso. Su ojo no mira para nada los hechos, como lo hacen los ojos del hombre honesto y del mentiroso, salvo en la medida en que puedan serle de utilidad para salirse con la suya diciendo lo que dice. No le incumbe que las cosas que dice describan correctamente la realidad o no. Solamente las selecciona a su antojo —o se las inventa—según convenga a sus fines.”

Artigo escrito em colaboração com Marly Fernandez: Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Brain nebula // Foto de: Ivan // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/47476117@N04/8394780999/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


 

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