Por Atahualpa Fernandez - 01/06/2015
Parte 1
“Dígame qué filosofía es la que utiliza (no la que profesa) y le diré lo que vale su ciencia. Y dígame qué ciencia es la que usa (no con la que dice estar de acuerdo) y le diré lo que vale su filosofía.” Mario Bunge
A diferença entre um bom educador e um charlatão está muitas vezes na forma que utilizam a ciência. O charlatão busca a legitimidade da ciência como envoltório para promover-se, aliciar mais seguidores nas redes sociais, vender mais livros, e se move em territórios escorregadiços, como o das meras abstrações mentais, dos conselhos, das fórmulas mágicas ou dos métodos milagrosos de estudo, donde boa parte do afirmado se baseia na mera subjetividade e na carência de honradez intelectual.
Discursos, conselhos, fórmulas e métodos demencialmente impessoais em que a irresponsável e capciosa promessa de “salto qualitativo” ignora deliberadamente a evidência de que não há um modo equivocado de estudar, e que o (único) método correto é o que melhor se adapta e atende aos interesses, à situação particular, às capacidades, possibilidades, oportunidades, necessidades e recursos cognitivo-afetivos próprios de cada pessoa. E por que isto é assim? Pois, em primeiro lugar porque, como cada pessoa é distinta, nem a todos satisfaz as estratégias de outros como tão pouco são adequadas (a todos) as mesmas coisas. Em segundo, porque independentemente de qual seja a estratégia que se utilize, seu êxito dependerá fundamentalmente de duas coisas: as circunstâncias em que se apresentam os desafios e a personalidade de quem os enfrenta (J. K. Norem) [1].
Apesar disso, abundam as falsas promessas, engenhosamente permeadas por uma confusa miscelânea de verdades, semiverdades e mentiras; promessas que, fazendo bom uso do chamado “efeito guru” (D. Sperber) e com o complacente e cúmplice silêncio da comunidade acadêmica, manipulam dolosamente uma prolífica fonte de mitos e distorcidas crenças. Podemos continuar fazendo o que fazemos quando se sabe que este tipo de comportamento é abertamente atentatório à atividade de educar, de ensinar a pensar e a formar bom conhecimento? Não! Não creio que podemos seguir como estamos; não podemos continuar aprovando tudo isso com gesto bovino. Se pretendemos, professores e alunos, ser de fato indivíduos comprometidos com um tipo de educação interessante e significativa, temos que atuar como tais e denunciar as hipocrisias que envenenam o processo pedagógico, incluindo o que se refere a nossos cérebros.
Devemos apreciar (e ensinar a apreciar) que o bom conhecimento é um bem apreciado, e aprender (e ensinar a aprender) a distinguir entre os fatos e a superstição, os rumores e a sabedoria convencional sem examinar. Devemos pensar causal e objetivamente, e não magicamente, e saber distinguir “la causación de la correlación y la coincidencia”. No mais alto do conhecimento, os educadores educados e honrados deveriam converter certos hábitos de racionalidade crítica em uma segunda natureza, evitando as falácias e perigos aos que uma mente sem educar resulta vulnerável. (S. Pinker)
Mas este não é o único problema. Há outro mais grave relacionado com os avanços e as promessas que derivam das novas descobertas neurocientíficas: o de saber discernir até onde chegam as contribuições positivas e onde começam os limites do que sabemos hoje sobre como aprende o cérebro humano. É que por mais que pareça uma questão altamente acadêmica e especializada, qualquer sociedade epistemologicamente civilizada (ou civilizada, apenas) deve dispor de um critério de demarcação o bastante flexível para permitir o livre exame, mas o bastante sólido para distinguir entre ciência e pseudociência.
A razão também é simples: como o cérebro, graças aos avanços científicos, passou a estar em primeiro plano, escrever sobre sua estrutura e funcionamento afiança um caráter mais sofisticado – ou mais “científico” – a todo um evangelho de sandices, ficções e/ou falsas esperanças. A denominada “neurocultura” está fazendo com que a cada dia que passa apareçam novos “educadores” (gurus da motivação, “neurogurus” ou “turbinadores de cérebro”, os autoproclamados professores triunfadores ou “expertos” em concursos públicos) com mirabolantes promessas de solução ou aniquilação de antigos flagelos relativos ao aprendizado, como a desmotivação, o desânimo, a autoestima, o poder da mente, a capacidade de memória, entre muitas outras que revelam opiniões desproporcionadamente elevadas de nós mesmos. [2]
A realidade é que esta extensa indústria do “neurologismo” (e, o mais importante, este fascinante estilo de “cientificismo”) está, neste mesmo instante, penetrando (despercebida e sem críticas) no coração mesmo do sistema acadêmico, por culpa de nossa desesperação por encontrar respostas fáceis para grandes problemas como o aprendizado, por culpa de nossa necessidade coletiva de soluções rápidas e fáceis, por culpa do ambicioso desejo de dar aos estudantes o que querem quando lhes anima a esperança de uma satisfação qualquer, e por culpa da fenomenal credibilidade que entre o grande público alcançaram estes mercenários da ciência fraudulenta ou profetas da impostura científica, em um mundo que, ao parecer, olvidou por completo a importância de avaliar criticamente todas as afirmações “científicas”.
Ninguém duvida do fato de que as bases cerebrais resultam indispensáveis para o aprendizado, que a causa mais direta ou imediata do aprendizado deve estar arraigada em uma variação da função cerebral e que é necessário construir e manter uma relação com nosso cérebro dirigida a ajudá-lo (ajudar-nos) a desenvolver-se corretamente para o nosso próprio bem-estar. Tão pouco existe dúvidas de que nos últimos anos os progressos neurocientíficos no conhecimento do cérebro introduziram modificações profundas em noções fundamentais a respeito da natureza humana, relativizaram algumas crenças, desmitificaram dogmas e lançaram novas luzes sobre questões antigas acerca do comportamento humano, da racionalidade, da consciência, da moralidade, do bem e do mal, do livre-arbítrio, do aprendizado, da memória, das relações entre os indivíduos... A lista seria muito larga. Pouco a pouco, o cérebro, o órgão que nos faz humanos, motor do conhecimento e fonte de todo pensamento e comportamento humano, começa a compreender-se a si mesmo.
Contudo, em que pese o extraordinário de todos esses avanços, ainda estamos no começo de semelhante processo, isto é, que só percorremos muito pouco do longo caminho para uma compreensão fundamental do cérebro. A investigação na área da neurociência está dando seus primeiros passos e novos estudos refutam, com frequência, as mais recentes descobertas. Como explica Patricia Churchland, nem sequer sabemos como codificam a informação os neurônios; e isso é muito não saber. Em muitos casos, continua, “la variabilidad natural de la macroestructura no predice nada sobre la función del cerebro (quiero decir, en oposición a las causas de un disparo, por ejemplo). Todavía es más interesante que la variabilidad estructural a menudo no prediga nada sobre microestructura, que es dónde se encuentra la acción. O como lo diría un mercenario político: Es el cableado, estúpido. ¿Los escáneres cerebrales pueden apreciar el microcableado? No. […] Hagamos un brindis por la variabilidad, la adaptabilidad y el cableado del cerebro. Y mientras fluye el Chardonnay, celebremos todo lo que sabemos sobre el cerebro”.
O certo é que não somente resulta muito difícil especificar relações diretas entre os descobrimentos das neurociências e os diferentes aspectos da estrutura e funcionamento do cérebro, senão que também é necessário atuar com muita cautela quando um salto técnico assim permite levar a cabo análises e detecções impossíveis com anterioridade [3]. Consequentemente, é um equívoco pensar que há algo de especial e exclusivo nas afirmações que utilizam temas como “turbinar” o cérebro, poder da mente, aprendizado, inteligência, memória, motivação, etc...etc., para vender-nos conselhos, métodos ou técnicas de estudo poucas vezes fundamentados cientificamente. [4]
Ademais, o bom conhecimento gerado por um aprendizado significativo ou prática deliberada é um logro, uma atividade ou tarefa na qual, além de constante prática, o indivíduo há de estar presente e de experimentá-la (ativamente) em primeira pessoa. Somente por meio da experiência concreta de estudar, focando nossa atenção e praticando de forma repetida é que poderemos influir eficazmente no modo em que os conhecimentos adquiridos irão cambiando e modelando o substrato neural de nossos pensamentos, de nossa memória e de nosso aprendizado. Um tipo de conhecimento que não se pode realizar e adquirir de forma repentina ou por intermédio de terceiros, quer dizer, que somente adquire uma base segura e sólida ao longo de um incessante, pessoal e ativo processo de aprendizagem.
Assim que o “problema” acerca de como aprende o cérebro não está reservado aos gurus da motivação, aos “expertos” em concursos públicos, aos educadores e aos cientistas; é um “problema” de todos e que tem por finalidade fazer surgir em todos nós o sentido de uma comprometida e iniludível responsabilidade individual por nosso próprio aprendizado. Se o cérebro é uma “obra”, nós somos seu sujeito, autor e resultado ao mesmo tempo. Um tipo de compromisso que implica aceitar conscientemente o fato de que nosso papel no processo de aprendizagem é o de dar-se conta e reconhecer que embora seja com o cérebro, e só com ele, que aprendemos, nossa capacidade para aprender (e memorizar) não é somente um produto da cognição e emoção que emergem de nosso cérebro, senão também de respostas que damos às exigências culturais e de nossas experiências pessoais e interpessoais.
Veja a Parte 2 dia 02/06 às 10h!
Notas e Referências:
[1] Assim que pretender e/ou insistir que todos deveríamos seguir determinados métodos, técnicas, fórmulas ou regras de estudo “corretos” e “universais” é simplemente uma falácia. Porque se isto fora possível, não existiria por exemplo a obesidade, nem o consumo de drogas, o alcoolismo ou as reprovações. Explicaríamos às pessoas obesas que têm que levar uma dieta equilibrada e fazer exercício e pronto, solucionado, não haveria obesidade. Aos consumidores lhes explicaríamos que não têm que consumir, que isso está prejudicando sua vida e suas relações; aos reprovados que não têm que estudar de determinada forma, que isso está atrapalhando o aprendizado e prejudicando suas aprovações... e eles diriam: “É verdade, não me havia dado conta!”… e problema resolvido, mundo feliz. Mas não crê o leitor (a) que um obeso, um consumidor ou um reprovado sabe melhor que ninguém o que deveria fazer? Muitas vezes parece que albergamos a estranha ideia de que se alguém é capaz de fazer uma coisa todo mundo pode fazê-la. Que se alguém é capaz de fazer uma dieta, todos podem fazê-lo. Não nos damos conta de que as pessoas são diferentes em tudo: na velocidade com que digerimos uma salada, na velocidade com a que corremos, na velocidade com que aprendemos ou memorizamos determinada assunto, em nosso interesse pela comida ou o sexo, em nossa capacidade de autocontrole, etc... etc. Parece que é impossível que entendamos que quando um endocrinologista dá umas instruções a 100 pessoas com relação à dieta, as 50 pessoas que as seguem são diferentes das 50 que não as seguem, que a efetividade da dieta variará de pessoa para pessoa, etc.. Totalmente. (P. Malo)
[2] “Ciencia patológica, ciencia basura, pseudociencia, ciencia fraudulenta, ´neurocháchara´ o ´porno cerebral´: un conjunto de ideas que pueden inducirnos a pensar que hemos aprendido sobre el cerebro más de lo que en realidad lo hicimos, [...] y que pueden servir más como una herramienta de ventas para su ´ciencia´ que como verdadero instrumento cognitivo”. (D. Chabris & D. Simon)
[3] Não tenho nenhuma dúvida de que, a longo prazo, as ciências do cérebro e da mente, com seus instigantes, extremamente inovadores e em certa medida distantes e perturbadores descobrimentos, nos brindarão relevantes e esclarecedoras respostas ao “problema” do processo de aprendizagem e trarão consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da educação. Também direi que parece insensato esperar até que toda a investigação esteja concluída e ter a “certeza absoluta” de como funciona o cérebro para começar a operar com o que já sabemos acerca de “como aprendemos”. Nossa compreensão atual, embora parcial, imperfeita e revisável, do modo como funcionam determinados mecanismos cognitivos e emocionais de aprendizagem já nos capacita, desde agora, a delinear e aplicar algumas estratégias compatíveis com o modo como o cérebro aprende melhor. Mas sempre com uma condição: que em um terreno tão delicado como o da investigação neurocientífica haverá de tomá-los em conta com muita seriedade e prudência, porque, às vezes, o que “nos mete em problemas não são as coisas que ignoramos; são as coisas que sabemos e não são assim”. (Artemus Ward)
[4] Um conselho de cautela epistemológica: antes de entregar-se a estes tipos de promessas ou receitas milagrosas, tenha em conta que sendo o cérebro humano produto de um desenho acidental, limitado pela evolução, nossa própria humanidade limita a percepção, o processamento e o armazenamento indiscriminado de toda informação que processamos, que nossa capacidade de memorização têm limites e que esquecer não somente é normal e inevitável, senão que é igualmente recomendável e saudável. Aliás, ao igual que a maioria dos matrimônios felizes e duradouros, posso assegurar que um dos segredos de nossas reiteradas e persistentes tentativas de aprovar em um concurso é (precisamente) ter uma memória limitada. Dito de outro modo, se são os recordos que fazem a vida mais bela, somente o olvido a faz suportável.
Artigo escrito em colaboração com Marly Fernandez: Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
Imagem Ilustrativa do Post: right brain // Foto de: Allan Ajifo // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/125992663@N02/14414603887/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode