Concurso e o "inimigo interior" (Parte 2)

23/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 23/05/2015

Leia a Parte 1 aqui

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“No me dedico a decirle a la gente lo que tiene que hacer – ya hay bastantes que se dedican a ello -, sino lo que hago yo.”                                                                                                                                                              Montaigne

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Parte 2

Pois bem, uma crença distorcida capaz de gerar uma espécie de impotência aprendida, que nos impede de controlar nosso presente e a renunciar ao desejo de possibilidades futuras é uma mentalidade não somente errônea e fatalista, senão também perniciosa e que desvirtua a percepção que temos de nós mesmos. Quando isso ocorre, a resignação e o cinismo se impõem à esperança, ao otimismo e à confiança no futuro, nos abandonamos completamente e nos deixamos arrastar pela corrente do descontrole, da vulnerabilidade e da desesperança que voam com ventos perigosos.

Por certo que um realismo ou preocupação vigilante – inclusive incorrendo em algum «pessimismo defensivo» – para dar-se conta do que está sucedendo é essencial para qualquer pessoa viver plenamente todos aqueles fenômenos que têm relação com o autoconhecimento, a virtuosa habilidade para cuidar-se de si mesmo, o sentimento de satisfação pessoal e para calibrar as consequências dos próprios atos. Tem relação com a competência para atender, concentrar-se e corrigir as próprias debilidades, para afrontar os problemas reais com que nos enfrentamos, para aprender dos erros que cometemos, para reconhecer nossas próprias limitações, para superar as más experiências, assim como para equilibrar os desejos impossíveis que modelam nosso trato com um mundo exterior que nos limita e que não podemos cambiar ou controlar mediante um simples artifício de nossa vontade.

Mas se com isto não se logra culminar um processo de identificação positiva, se não se trata de entender e admitir que há determinadas coisas que fogem completamente de nosso controle (quero dizer, que a vida também é caprichosa e tem suas próprias expectativas), se não se trata de encontrar estímulo para tomar decisões ou empreender ações, todo e qualquer ensaio mental negativo é, simplesmente, inútil e depressivo.

Aprender a reconhecer o que está e o que não está baixo nosso controle, portanto, é um primeiro passo para responsabilizar-nos de nosso comportamento e assumir o compromisso de que, para o bem ou para o mal (e em alguma medida), somos os autores de nossa vida. De que nossos pensamentos e sentimentos dirigem nosso comportamento e a forma que temos de sobrelevar as dificuldades; de que não é necessariamente o que realmente está ocorrendo – quer dizer, a realidade objetiva – o que influi em nossas ações e reações, senão como a percebemos: a realidade não decide, porque não ri nem chora. Como disse com demasiada propriedade John Milton, “A mente é seu próprio lugar, e em si mesma pode fazer um céu do inferno  ou um inferno do céu”.

Assim que toda e qualquer ideia ou mentalidade que temos sobre nós mesmos não são mais que crenças, um estado mental psicologicamente construído. São crenças poderosas, é verdade, mas não passam de meras invenções da mente humana; e a mente, já sabemos de sobra, pode cambiar-se. Ademais, trata-se de um princípio moral universal: quanto mais poder se tem sobre alguém, maior é o dever de usá-lo com benevolência. E qual é a pessoa sobre a que temos maior poder? Nós mesmos, o que somos no presente vivido e o que seremos no futuro imaginado. Somente nós podemos eleger interpretar o mundo da forma que nos seja mais útil e produtiva; somente nós podemos fazer com que nosso presente tenha sentido e que nossos objetivos tenham prioridade. Se não o fazemos, quem o fará por nós? Se não o fazemos agora, quando o faremos?

A regra é simples: aprender a tratar-se bem a si mesmo e entender que sentir autocompaixão não é o mesmo que sentir lástima por si mesmo, senão preocupação, bons sentimentos, firmes propósitos e empenho em reduzir o impacto das situações difíceis. Nosso estado presente depende de como reconstruímos o passado, como interpretamos o presente e como construímos o futuro. Se a crença que temos de nós mesmos guia nossos atos, serve para dar significado a nossas experiências e determina o sentido e direção que damos a nossa vida (passado, presente e futuro), cambiar este tipo de mentalidade fatalista implica, na prática, reinventar a maneira como nos formulamos a nós mesmos, como atuamos no presente que nos rodeia e como elaboramos as expectativas que depositamos no futuro. Não há que olvidar que a transformação do observador altera o processo observado.

E uma boa maneira de começar a mudar é aceitar a evidência de que é praticamente inconcebível e frustrante desejar algo de todo coração, pensar, sentir e saber que existe uma oportunidade de consegui-lo, e logo não fazer nada a respeito. O decepcionante, recorda Pascal Bruckner, “no es el mundo, sino las quimeras que encorsetan nuestro espíritu”. Outra forma é procurar aprender a valorar e a sentir entusiasmo pelo que se está fazendo, de adquirir força à medida que avançamos, de desfrutar, entregar-se e formar parte do processo, independentemente de qual seja o resultado anelado. Também é importante entender que se nossas percepções e pensamentos se alteram com as emoções, resulta um equívoco contagiar o pensamento de emoções negativas. Por último, manter-se firme na busca de nossos objetivos e aceitar o fato de que o verdadeiro êxito não é produto de nenhum ato mágico ou milagroso, senão o resultado de muito, muito trabalho, diligência, perseverança, esforço, estóica resistência e entusiasmada dedicação, coisas que nascem da esperança.

Sobra dizer que isto significa reconhecer que se não estamos satisfeitos com certos aspectos de nossa vida, ou se nos encontramos constantemente atados em pensamentos e comportamentos que nos provocam frustração e desânimo, é nossa responsabilidade tomar a iniciativa para reescrever os guiões negativos que mantêm vivos estes problemas, pelo simples fato de que aquilo em que pensamos com mais frequência determina o que somos e em que nos converteremos. Porque quando uma pessoa se converte em escrava de sua própria negatividade é incapaz de assumir a propriedade de seus objetivos e de cultivar um verdadeiro sentido de autocontrole e autonomia do espírito.

Estes pequenos câmbios na forma de pensar, igual que qualquer prática virtuosa (essa força que atua ou que pode atuar, e que confere valor a um ser), se acumulam com o tempo e acabam provocando enormes diferenças. E dado que as decisões que tomamos são as diferenças que fazem diferente nossa vida, nossa decisão de cambiar a forma de ver as coisas nos ajudará a desenvolver estratégias que eliminem nossa tendência a sobrevalorar as faltas passadas, a minimizar nossas habilidades presentes e a exagerar os obstáculos e as dificuldades do futuro. Em último termo, isto é quiçá o único que nos está permitido controlar.

Naturalmente que entendo, dito seja de passagem, que nada resulta mais difícil que ser livre, dono e criador do próprio destino, que nada é mais embrumador que a responsabilidade que nos encadeia às consequências de nossos atos. É sempre mais fácil recorrer às evasivas, às fabulações, ao infantilismo e à vitimização, estas enfermidades de qualquer indivíduo que faz da debilidade da alma, da autocomplacência e do autoengano um eficaz mecanismo para superar a atitude de apreciar com realismo maneiras de atuar alternativas e a virtude permanente de ter que construir-se a si mesmo. O único inconveniente de uma atitude como esta é que, ao sermos produto de nossos pensamentos e sentimentos, nos convertemos em “nosso próprio demônio”. (Oscar Wilde)

Assim as coisas, enquanto não reconhecermos que somos, em um maior ou menor grau, pessoalmente responsáveis pela autoria de nossa vida, enquanto não  interiorizarmos as metas e os valores que nos orientam e nos conduzem na travessia, enquanto não formos capazes de controlar o processo e de manter contínua e ativamente presente nossos objetivos em mente, enquanto não negar-nos o direito de duvidar, aí só nascerão as esporas de uma existência totalmente à deriva, dependente e escrava das circunstâncias e do sempre insensato capricho (ou conselhos) dos demais[1]. Um destino insofrível.

Depois de tudo, a vida em si não é nem bela nem feia. Depende de como se a tome cada um. O que nos afeta não são, tanto como cremos, as coisas em si mesmas, senão as opiniões que nos formamos sobre as coisas. Quero dizer, no que a estados de ânimo se refere, em muitas ocasiões sim que há fumaça sem fogo. Quem observa e experimenta o mundo não se está limitando a contemplá-lo; o está também construindo em sua cabeça. Um indivíduo será mais ou menos ditoso em função de como perceba suas circunstâncias e essa percepção é produto de uma combinação de capacidade de resistência à adversidade, de experiências cognitivas e emocionais, de atitude, de autocontrole, de soberana autarquia, de expectativas positivas, de sensibilidade ao contexto e de atenção, uma mescla de características que condicionam e configuram o modo em que percebemos o mundo e reagimos ante ele.

Como está em nossas mãos o como podemos viver nossas vidas e o como podemos eludir ou superar a carreira de obstáculos que é a existência, o sentimento pessoal de ânimo, de motivação e de entusiasmo não está na realidade que experimentamos, senão na perspectiva com que vemos (valoramos e interpretamos)  as coisas que nos ocorrem. O segredo radica, pois, no pensamento e na atitude. É preciso organizar as ideias para organizar a forma de viver. Modificar o que sentimos, fazemos e finalmente somos é modificar nosso modo de pensar (W. Mischel). Pensar de outra forma é viver de outra forma. O único que falta é saber “como” pensar e atuar em consequência, porque “la acción precede a la esperanza”. (Sartre)

Recordemos – e aqui termino - que embora o próprio Dante tenha afirmado que encontrou “o original para seu inferno no mundo em que vivemos”, o “nirvana” não é outra coisa que este mesmo mundo, esta mesma realidade comum, vista desde outro ângulo (Nâgârjuna).


Notas e Referências:

[1] E logo estão os amigos, sempre prontos e disponíveis para aconselhar (ou seja, para levar a cabo a «mais fácil de todas as coisas» - Tales de Mileto). A questão é: Quantos amigos temos de verdade? Passando por alto a advertência do muito arisco Pío Baroja que calculava que «un amigo en la vida es mucho, dos son demasiado, tres son imposibles», Carol Dweck nos oferece uma preciosa reflexão: A sabedoria convencional diz que os verdadeiros amigos se lhes conhece em tempos de necessidade. E, naturalmente, é uma frase que tem toda sua razão de ser. Quem estará a seu lado, dia trás dia, em tempos de apuro? Nada obstante, talvez ainda seja mais difícil responder a esta outra pergunta: A quem acudirá quando lhe sucedam coisas boas? Quem se alegrará realmente de ouvir as boas notícias? Os fracassos e as desgraças não ameaçam a autoestima dos demais. Para uma pessoa saturada de amor próprio (como a maioria dos mortais) é gratificante sentir empatia por alguém necessitado. Mas são precisamente as habilidades e os êxitos alheios o que mais ataganta ou aborrece aquelas pessoas que para conservar intacta ou aumentar sua autoestima necessitam (têm que) sentir-se superiores aos demais. Como explica Susan Fiske: “Lo que no soportamos no es estar mal, es estar peor que otros. Nos hace sentir inferiores, menos seguros, menos valiosos y nos da un síndrome de bajo estatus que tiene un coste para nuestra autoestima. Se trata de una emoción que sirve para proteger la imagen que uno tiene de sí mismo. Los seres humanos nos estamos comparando continuamente, somos unas máquinas de compararnos. Y siempre deseamos pertenecer al grupo de los mejores, aunque apenas seamos mediocres. Por ello intentamos relativizar, incluso demonizar, el éxito y las habilidades de otros.”


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


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